Por: Cesar Sanson | 22 Março 2016
"Ser de esquerda parece ter se transformado num bem em si. É como se, com o fim de qualquer potência da fé, restasse acreditar nos símbolos, nas bandeiras, numa memória fugidia e vaga de tempos melhores. Quanto mais fraco o vínculo, mais drástico e desesperado o apego aos próprios símbolos. Daí marchas cuja única pauta é defender uma cor, uma fraseologia, uma sigla". O comentário é de Bruno Cava em artigo publicado por UniNômade, 20-03-2017.
Eis o artigo.
O discurso do golpe e do golpismo é moeda corrente governista desde 2005. Está tão batido, tão manjado, que só cola com os já evangelizados. Perdeu o valor de face. Se pensarmos em 64, 73 ou 76 na América Latina, nos grandes arquétipos do imaginário esquerdista, nada sugere um golpe em andamento no Brasil hoje. A menos que entendamos golpe no sentido amplo e generalizável à política e à vida, como Bruce Lee falava: “tudo é golpe”. E foram muitos os golpes do governismo nesse período. Mas se olharmos ao redor, no país e no continente, o que existe a olhos vivos é um desmoronamento irreversível de um longo ciclo que se exauriu principalmente pelos próprios erros, escolhas, alianças e estratégias, do ponto de vista político, econômico, social e até mesmo eleitoral.
Por que então tanto rumor e tanto empenho para restaurar a falsa polarização de outubro de 2014? Não está na cara que acabou, que só há “salida hacia dentro”? O fato é que existe um desejo de governismo que veste vermelho. As pessoas que se polarizam à esquerda para defender o governo realmente acreditam. Não são apenas os aparelhos e estruturas engrenados nos fundos estatais. Isso seria um explicação moral. Ter fé consiste em nutrir um vínculo íntimo com o mundo que nos dá força. O que se crê pode até não existir, mas a ação baseada na crença existe e produz efeitos.
Mas, depois de tudo isto, será que elas acreditam mesmo? Acreditam, apesar das relutâncias, das ressalvas, das contorções retóricas. E quando se acredita, não adianta, o problema passa a ser apenas achar a narrativa, a polarização, a história que poderá, apesar de tudo, conferir alguma boa consciência pra crença primária. É por isso que existe um mal estar na esquerda e que ele precisa ser pensado. Na medida em que, em franco fim de feira, o governismo ainda consegue conduzi-la, malgré-lui, na marcha dos lemingues à borda do fiorde.
É que ser de esquerda parece ter se transformado num bem em si. Lênin falava da colina pra onde o esquerdismo ruma. De cima da colina, assiste à azáfama da multidão, daqueles que não ascenderam a seus valores. É como se, com o fim de qualquer potência da fé, restasse acreditar nos símbolos, nas bandeiras, numa memória fugidia e vaga de tempos melhores. A fé é assim drenada de potência e o vínculo com o mundo se dissolve num plano moral, na justiça da História. Quanto mais fraco o vínculo, mais drástico e desesperado o apego aos próprios símbolos. Daí marchas cuja única pauta é defender uma cor, uma fraseologia, uma sigla.
Contrariam-se todos os ensinamentos materialistas: contra Marx e o método da Einleitung, onde a ida ao abstrato só funciona com o retorno ao concreto, com a necessária descida antropofágica, contra Spinoza, como se um conjunto de crenças compartilhado fosse primeiro para depois se realizarem práticas nele baseadas, em vez de serem as práticas a determinar crenças que só podem existir implicadas naquelas, como uma questão corporalmente vital (os afetos). É o clima do niilismo de fim de ciclo, uma espiral recessiva do desejo até a exaustão definitiva. A saída à esquerda não passa de um “abre-te sésamo”. Uma autorreferência em círculo vicioso. Como o Barão de Münchhausen, a esquerda quer sair do atoleiro puxando-se pelos próprios cabelos. Enquanto isso, o mundo ao redor desmorona, ininteligível e intangível. Decaímos numa espécie de simbolismo místico-romântico, apegados aos derradeiros. Lula hoje não é sobretudo isso: um símbolo?
Existem outros caminhos. Por exemplo, a alegoria, o tensionamento do real até o ponto do paradoxo, do impasse, a partir do que temos que decidir. Assumir o impasse, assumir o campo de problematicidade sem cores delineadas, sem princípios transcendentes, sem sebastianismo. Assumir o deserto, não ter medo da solidão. É o que Glauber pautava na alegoria de “Terra em transe”, ou Walter Benjamin sobre o drama barroco. Fazer como : renunciar à verdade simbólica para resgatar a transmissibilidade. Uma nova fé, uma nova terra. Abandonar a esquerda para resgatar o que importa.
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O deserto e a esquerda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU