12 Janeiro 2016
Em entrevista surpreendente, filósofo da “Multidão” dialoga com David Harvey e reafirma sua aposta nos sujeitos pós-industriais. Mas dispara: chega de cultivar o mito horizontalista e de renegar a política!
Alguns meses atrás, a revista ROAR compareceu ao encontro Euronomade em Passignano (Itália), que reuniu dúzias de ativistas e pensadores da tradição italiana pós-trabalhista. Este ano, o Euronomade convidou o geógrafo marxista David Harvey a participar do evento juntamente com vários outros convidados, inclusive Michael Hardt e Srećko Horvat.
Sentamos com o lendário militante e teórico italiano Antonio Negri para conversar sobre a recente convergência entre seu trabalho e o de Harvey, a centralidade do terreno metropolitano para as lutas sociais contemporâneas, o destino dos levantes globais de 2011, o estado dos movimentos na Europa de hoje e o significado de novas forças políticas como o Syriza e o Podemos.
A entrevista é de Lorenzo Cini e Jerome Roos, publicada por Roar e reproduzida por Outras Palavras, 08-01-2016. A tradução é de Inês Castilho.
Eis a entrevista.
Em anos recentes, parece haver alguma forma de convergência entre sua abordagem e a de Harvey. O que considera serem as coincidências mais importantes no trabalho de vocês? E o que seriam as principais diferenças ou tensões?
Parece haver uma convergência muito clara e explícita entre as posições de Harvey e aquelas da minha própria corrente de pensamento, mais claramente na transformação contemporânea do trabalho produtivo, do trabalho vivo – ou seja, do trabalho capaz de gerar mais valia. Se me permitem usar a linguagem de Marx em The Fragment on Machines [1], diria que há um chão comum substancial entre o trabalho de Harvey e o meu próprio na análise da transformação das formas de valor, ou seja, na passagem do que considera o valor conectado às estruturas da indústria de larga escala para a situação atual, na qual a sociedade está inteiramente sujeita à lógica do capital – não apenas na esfera produtiva, mas também no que tange à reprodução e circulação.
O operaísmo italiano já desenvolvera tal análise no final dos anos 1970, sugerindo, na época, novas formas de luta que as situaria dentro da esfera social mais ampla. Havíamos entendido que o social se tornara um lócus de produção de valor. Já naqueles anos identificamos a mudança crucial no lócus da produção de mais valia: uma mudança para longe da fábrica, em direção à metrópole mais ampla. E essa mesma mudança parece haver se tornado central no trabalho de Harvey. Esse é um ponto essencial: daqui, ambas as questões, a da extração do excedente de produção e a questão da transformação do lucro em renda, tornaram-se centrais na análise crítica do capitalismo contemporâneo que Harvey e eu desenvolvemos.
Quais são, então, as diferenças? Acredito ser simplesmente uma questão de genealogia, da trajetória teórica que nos trouxe a essa análise compartilhada. Eu cheguei a essas conclusões começando com a análise da transformação da natureza do trabalho — que é, na verdade, o conceito sobre o qual se baseia toda a abordagem operaísta. Em outras palavras, parti do conceito operaísta de recusa ao trabalho. Com essa ideia, exprimíamos duas coisas. De um lado, nós a víamos como uma rejeição da lei do valor como norma fundamental da ordem capitalista. De outro, a interpretamos de forma mais construtiva, como um chamado para o reconhecimento de novas formas de produtividade do trabalho para além da fábrica, num nível social mais amplo. Desta análise marxista da transformação interna do trabalho chegamos às mesmas conclusões a que Harvey chegou – e sobre a qual ele desenvolveu uma análise empírica mais minuciosa.
Partindo do que acaba de dizer, o conceito de trabalho produtivo, gostaríamos de refletir com você sobre as formas e conteúdo das lutas contemporâneas. Em seu livro Commonwealth [2], em coautoria com Michael Hardt, você escreveu que hoje a metrópole é para a multidão o que a fábrica foi no passado para a classe trabalhadora. À luz dessa mudança de paradigma, parece adequado identificar nos recentes levantes que irromperam em países como o Brasil e a Turquia um conjunto de lutas ligadas a questões sobre produção e reprodução da vida metropolitana, instâncias de uma nova classe de lutas conduzidas em nível metropolitano?
Sim, muito. Tanto na Turquia como no Brasil, foram lutas claramente biopolíticas. Como, então, podemos ligar essa dimensão biopolítica às novas formas de trabalho que discutimos antes? Essa é uma pergunta com a qual Michael Hardt e eu vimos lidando desde 1995, quando começamos a trabalhar em Império [3]. Parecia-nos que se o trabalho torna-se trabalho social, e se a opressão e a produção capitalista foram engolindo a esfera social, então a questão do bio tornou-se essencial. O conjunto de lutas desenvolvendo-se em torno do Estado de bem-estar social estava se tornando um dos aspectos centrais da luta de classes. Essa descoberta tornou-se ainda mais importante quando entendemos que o trabalho produtivo era não apenas (ou mesmo principalmente) uma atividade material, mas também (e principalmente) imaterial. Isto é, uma atividade ligada ao cuidado, ao afeto, à comunicação e aquilo que podemos chamar de processos e atividades “genericamente humanos”.
Foi essa atenção ao “genericamente humano” que nos ajudou a entender como o processo produtivo se havia tornado fundamentalmente um processo biopolítico. Consequentemente, as lutas politicamente mais significativas tornaram-se aquelas instaladas no terreno biopolítico. O que isso significava, em termos mais concretos? Não tínhamos uma resposta final e exaustiva. Sim, tínhamos alguma intuição de que era preciso lutar contra, por exemplo, a privatização da saúde e da educação, mas àquele tempo não conseguíamos agarrar completamente aquilo que mais tarde se revelou para nós com as lutas formidáveis de 2011. Foram aquelas lutas que revelaram a completa articulação do discurso biopolítico, isto é, o novo caráter das lutas contemporâneas. E tornou-se muito claro que a metrópole é o seu palco essencial. Isso não significa que será sempre assim, mas hoje é certo que a metrópole é o lócus crucial dessa luta.
A greve metropolitana ocorrida em Paris em 1995 foi essencial para que eu compreendesse isso. Uma cidade tão complexa e articulada como Paris apoiou completamente a luta, que bloqueou a cidade inteiramente, a começar pelo transporte. Aquela luta expressou num sentido paradigmático os elementos cooperativos e afetivos das formas de conflito e conhecimento que estavam emergindo no palco metropolitano naqueles aos. Não é coincidência que esses aspectos, ligados a cooperação e à produção de afeto, sejam ainda centrais nas lutas metropolitanas contemporâneas, que são completamente biopoliticas.
O ciclo de lutas que teve início em 2011 sugeriu, por um momento, o possível nascimento de um novo processo constituinte. Hoje parece que muitos desses cinco movimentos estão confrontados com aquilo que você e Michael Hardt chamaram de “fechamento termidoriano”, trazendo à tona o restabelecimento do velho regime. Qual é sua análise do estado atual dessas lutas, e o que de diferente poderia ter sido feito para evitar o resultado presente?
Para começar, é preciso estabelecer algumas diferenças. A mobilização espanhola, por exemplo, tem uma força e um grau de originalidade política que é evidente ainda hoje, e constitui um fenômeno importante que precisa também ser visto como parcialmente surgido da tormentosa história da Espanha no século XX, da guerra civil e da transição democrática incompleta, ao fracasso do Partido Socialista.
De outro lado, há um fenômeno muito mais ambíguo como o Occupy, que parece ser uma mobilização das chamadas classes médias, mais que uma expressão da classe trabalhadora cognitiva. E ainda assim, além dessas fragilidades óbvias, também o Occupy mostrou um importante degrau de originalidade, especialmente em termos da luta desenvolvida na questão da dívida e do capital financeiro.
Finalmente, há o processo árabe, que monopolizou nossa atenção durante um longo tempo, e que – desafortunadamente – teve um final absolutamente trágico. Falando estritamente, o único resultado “termidoriano” foi o da Tunísia, onde uma ordem aparentemente democrática — mas substancialmente falsificada — está agora estabelecida. Quanto ao resto, testemunhamos meramente os inícios de revolução, isto é, a tomada da Bastilha mais do que qualquer outra coisa. De qualquer forma, acredito que esse processo revolucionário extremamente articulado tem muito tempo à frente e ainda está, neste momento, completamente aberto.
Até aqui, esse processo revolucionário revelou a presença de novas forças de liberdade no mundo árabe, de trabalho cognitivo, que se opuseram tenazmente aos velhos regimes militares e feudais. Há ainda, contudo, um problema enorme no Egito, Síria, Líbia e Irã, o problema da natureza “medieval” desses Estados – que são extremamente reacionários e repressivos. Assim, tenho a impressão de que a semente de revolta plantada em 2011 em vários Estados árabes assemelha-se, de algum modo, ao 1848 europeu: um momento de antecipação de um processo revolucionário. Espero, contudo, que não tenha as mesmas consequências que teve na Europa, onde também produziu pensamento e prática nacionalista, que ao final deu combustível para a ascensão do fascismo e nacional socialismo.
A despeito deste ano, ainda acredito fortemente numa dinâmica progressiva da história, e estou confiante de que eventos de ruptura revolucionária conseguirão, no futuro, quebrar a ordem política e social feudal e reacionário de muitos países árabes.
Vamos discutir as lutas de hoje na Europa. Tomando como pista um artigo que você escreveu com Sandro Mezzadra pouco antes das eleições europeias de 2014, e um outro de sequência publicado logo antes das eleições gregas, queríamos perguntar se vê a dimensão européia como a única em que os movimentos podem agir para avançar um projeto do comum como uma alternativa genuína para a crise capitalista atual.
Esta é com certeza a questão política mais oportuna e importante, hoje. Atualmente, na Europa, estamos na fase mais baixa do ciclo de lutas, Não acredito na teoria segundo a qual quanto pior a situação política, social e econômica, mais forte é o movimento revolucionário. Estamos diante de uma séria crise econômica que teve consequências extremamente negativas. O establishment capitalista explorou com sucesso, até aqui, a regressão e transformação produtiva pós-fordista que derrotou a massa trabalhadora industrial. Hoje, estamos vivendo as conseqüências de nossa derrota nos anos 1970, na ausência de uma organização política capaz de expressar os interesses da força de trabalho contemporânea e, mais genericamente, da sociedade produtiva contemporânea que emergiu do processo de transformação capitalista.
Contudo, nessa situação negativa, ainda temos de considerar cuidadosamente se e como o capital será capaz de superar a crise. Por exemplo, tendo a concordar com a análise de Wolfgang Streeck, que examina a crise atual à luz de certa literatura dos anos 1970 tal como Offe, Hirsche e O’Connor, que viam a crise dos tempos como uma consequência da queda da taxa de lucro. Essa queda, no entanto, está intimamente ligada à desvalorização da força de trabalho, à incapacidade de considerar a força de trabalho como um ator central no desenvolvimento.
É necessário ser muito cuidadoso numa série de pontos. Quando se diz que algumas instâncias do comum, certas demandas da luta pelo comum podem ser, e têm sido, reabsorvidas pela e na “gestão da crise” e em todos os mecanismos de gerenciamento do comum, frequentemente se ignora que essa absorção pelo capitalismo não é criativa. Não é, por exemplo, comparável à assimilação da classe trabalhadora que ocorreu no paradigma fordista e keynesiano, quando essa absorção gerou um crescimento de demandas e manifestou-se numa economia forte e enégica.
Hoje, estamos diante de uma contração capitalista que deixa sem ar até mesmo aqueles que operam a contração. Nesse contexto, temos de ser extremamente atentos, porque o risco real é fazer uma leitura completamente pessimista de uma situação que, é claro, é caracterizada como uma crise importante – mas cujo resultado ainda está completamente aberto.
Com esta última pergunta gostaríamos de refletir com você sobre a inovação representada por alguns fenômenos políticos que estão ocorrendo em alguns países europeus neste momento. Vê-se na Europa, hoje, uma organização política capaz de iniciar um processo constituinte e criar um projeto político transnacional com base no comunismo do século 21 – ou seja, um projeto político baseado na prática do comum? E o que você considera que pode ser significativo, sob esta luz, em novas forças políticas como Syriza e Podemos?
Antes de responder sua pergunta, devo confessor que desenvolvi um problema nos últimos anos. Se sou chamado a avaliar as lutas de 2011, não consigo deixar de concentrar minhas observações críticas na questão da horizontalidade – ou de horizontalidade exclusiva, ao menos. Tenho de criticar isso porque penso que não há projeto ou desenvolvimento político capaz de transformar a espontaneidade horizontal numa realidade instituinte. Penso, ao contrário, que essa passagem deve ser governada, de um modo ou de outro. Governada desde a base, claro, na base de programas compartilhados, mas sempre sustentando a necessidade de ter, nessa passagem, uma força política organizada capaz de constituir-se a si mesma e de gerenciar essa transformação.
Penso que a situação atual do movimento nos força a fazer autocrítica sobre o que aconteceu em 2011, e que essa autocrítica deve focar na questão da organização política. Precisamos tomar consciência, por exemplo, de que a experiência da Lista Tsipras na Itália foi um fracasso trágico, ainda que eu, junto com Sandro Mezzadra e outros companheiros, lhe tenhamos dado as boas vindas com fé e esperança. Contudo, de outro lado, poderia ter ficado claro, desde o início, que com partidos organizados tais como o SEL ou a Refundação Comunista teria sido impossível encontrar formas políticas capazes de canalizar e permitir que as forças espontâneas da base se afirmassem.
Com o Podemos, contudo, estamos provavelmente lidando com algo diferente. Além das ideologias questionáveis em torno das quais este partido-movimento se constituiu, acredito que – talvez por causa da boa vontade de seus líderes, ou talvez graças à situação na qual se encontra – o Podemos é infinitamente mais poderoso do que é organizado. Está produzindo, no momento, um movimento extremamente interessante e ativo que pode ser capaz de contribuir com uma saudável institucionalização das lutas.
Nessa questão da luta em nível institucional e de organização política, gostaria de concluir com mais duas proposições gerais. A primeira é que depois de 2011 a horizontalidade deve ser criticada e superada, claramente e sem ambiguidade – e não apenas num sentido hegeliano. Segundo, a situação está provavelmente madura o suficiente para tentar uma vez mais aquela que é a mais política das passagens: a tomada do poder. Entendemos a questão do poder, por tempo demais, de uma forma excessivamente negativa. Agora podemos reinterpretar a questão do poder em termos de multidões, em termos de democracia absoluta – o que significa dizer, em termos de uma democracia que vá além das formas canônicas institucionais tais como monarquia, aristocracia e “democracia”. Acredito que hoje o problema da democracia é melhor formulado e expressa em termos de multidão.
Notas da tradutora
[1] Seção de uma obra conhecida, porém essencial, de Karl Marx: o Grundrisse (1858). Para muitos, é um livro essencial para compreender, a partir de uma perspectiva marxista, a era pós-fordista (ou pós-industrialista), que começaria mais de um século depois.
[2] Commonwealth, Michael Hardt e Antonio Negri, sem tradução para o português.
[3] Empire, de 2000, traduzido para o português em 2005.
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Negri: hora de repensar a Revolução? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU