Cristo Rei ou Cristo servidor? Comentário de Adroaldo Palaoro

Foto: Pixabay

21 Novembro 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho a Solenidade de Cristo Rei, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 23,35-43.

Eis o texto.

“Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o rei dos judeus’” (Lc 23,38).

Ao longo do ano litúrgico fizemos um percurso catequético e espiritual da história da salvação, vivendo e celebrando os momentos mais significativos da vida e missão de Jesus Cristo: encarnação, nascimento, vida pública, anúncio da boa-notícia, paixão-morte-ressurreição-ascensão...

Agora, no fim deste tempo litúrgico nos encontramos com a festa de Cristo Rei, cume do caminho percorrido, de nossa vida pessoal, da história e da missão da Igreja. Ele é o horizonte.

Rei: não há outra palavra menos apropriada para Jesus.

Jesus, rei atípico. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.

Jesus crucificado é um estranho rei: seu reinado não se dá de forma impositiva, violenta ou cruel. N’Ele descobrimos um Rei que não se apoia na força e no poder, mas na fragilidade e no escândalo da Cruz; seu trono é o madeiro da cruz: sinal de fracasso; sua coroa é a de espinhos; seu cetro é a toalha para lavar os pés: sinal de serviço; não tem manto, está desnudo; até os seus seguidores o abandonaram.

Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia. Jesus reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo.

Usamos, ainda hoje, sobretudo na linguagem religiosa, imagens que nasceram em outro tempo e em outro contexto cultural. Que reações provoca o título de “rei” numa sociedade na qual os reis já são tão pouco estimados e menos amados? A realeza atribuída a Jesus necessita de uma oportuna iluminação.

O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias conservadoras, concepções triunfalistas e dominadoras, poderes vazios...

Se continuarmos escondendo Jesus debaixo de vestes suntuosas e trono de ouro, tão distantes do que Ele foi na realidade, o reduziremos a uma entidade quase mítica que só pode interessar às pessoas esotéricas, supersticiosas e saudosas do passado.

Este é o maior paradoxo da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “triunfalistas”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Seu reinado passa pela dinâmica do serviço, do perdão e da disponibilidade, da acolhida, da misericórdia e da proximidade.

Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem riquezas e que não pode defender-se, pois não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem poder. Pobre rei!

Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder. E não só condenou aqueles que que se impõem sobre os outros, como também condenou, com a mesma veemência, aqueles que se deixam submeter e se fazem subservientes.

Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer pessoas ungidas pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.

Jesus quer que todos sejamos “reis”, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência.

Há uma nobreza e uma realeza presentes em nosso interior e que são ativadas no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...

Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI que, em 1926, num momento delicado para a Igreja diante da perda de seu prestígio e de seu poder, quis ressaltar o “poder espiritual” de Cristo como rei da história e do mundo; ao mesmo tempo, quis reafirmar, frente aos poderes deste mundo, o poder de Cristo como origem de toda autoridade real ou política e, sobretudo, como fundamento do poder da própria Igreja.

Uma leitura mais repousada do Evangelho e do Concílio Vaticano II nos convida a reler de novo esta festa para despojá-la, como fizeram com Jesus, de suas roupagens políticas, dos adereços dos poderosos e influentes. A Igreja não deve e não pode ser um poder real no mundo, mas uma presença inspiradora de transformação do coração e das estruturas que excluem o ser humano e o esvaziam de sua dignidade.

Devemos, sim, conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus Cristo, rei do universo”.

Jesus será “Rei do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos sejamos testemunhos da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que hoje estão dependurados nela.

O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Ele nos relata a investidura do rei Jesus de Nazaré, que se dá na Cruz, em meio a zombarias, açoites e blasfêmias. Fixemos nosso olhar nos personagens que assistiam ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não era a multidão que habitualmente O seguia, mas pessoas que assistiam com curiosidade zombadora.

Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tinham um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgavam-se em posse da verdade.

Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se. O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.

Um dos ladrões o insultava: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”.

Ninguém pareceu ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.

A resposta de Jesus diante dos insultos foi o silêncio carregado de mistério. Silêncio que poderia ser interpretado como impotência resignada ou reconhecimento do fracasso. No entanto, Ele transformou a onda de insultos em manifestação de misericórdia e salvação.

Ele só respondeu ao bom ladrão com a força de suas palavras salvadoras: “ainda hoje estarás comigo no Paraíso”. Em sua entrega cumpre a vontade do Pai.

O título da Cruz, registrado pelos quatro evangelhos, provavelmente é uma chave muito completa para interpretar a impressão que Jesus causou às autoridades: “este é o rei dos judeus”.

O crucificado era um rei que colocava em questão os poderes deste mundo. E que, além disso, questionava os valores que regiam a sociedade bem pensante de então e de agora. Dizia que tinha vindo para chamar os pecadores e não os justos.

Deus está mais interessado pelos que se sabem pecadores que pelos que acreditam serem piedosos. As palavras e a maneira de agir de Jesus são uma denúncia para aqueles a quem o poder lhes encanta e para aqueles que se dedicam a condenar os que não pensam ou atuam como eles.

Um denunciante assim só pode acabar expulso, marginalizado, rejeitado.

Para meditar na oração:

Quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplamos mais atentamente, logo descobriremos nesse Rosto o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, clamando por nosso amor solidário e compassivo.

- Diante do Crucificado, trazer à memória os crucificados de hoje: isto o(a) afeta? o(a) deixa inquieto(a)? o(a) incomoda?

Leia mais