A nova sensibilidade de Jesus. Comentário de Ana Maria Casarotti

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06 Setembro 2024

A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 7,31-37, que corresponde ao 23° Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico. O comentário é elaborado por Ana Maria Casarotti, Missionária de Cristo Ressuscitado.

Naquele tempo, Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole. Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão. Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. Olhando para o céu, suspirou e disse: "Efatá!", que quer dizer: "Abre-te!" Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade.

Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam. Muito impressionados, diziam: "Ele tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar".

Eis o comentário.

Neste domingo, continuamos nossa leitura do Evangelho de Marcos. No início de sua jornada por terras estrangeiras, Jesus conheceu uma mulher cananeia, pagã por sua religiosidade e siro-fenícia por sua nacionalidade, que lhe deu uma nova perspectiva sobre sua missão. Os pagãos também são destinatários da mensagem do Reino de Deus.

O texto do Evangelho que meditamos hoje nos diz que “Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole”. Apresenta Jesus como um viajante, como um peregrino que atravessa diferentes regiões para chegar a um determinado lugar. Ele está na terra dos pagãos e pretende voltar para a Galileia e, para isso, precisa atravessar a Decápole.

Em seu caminho, ele é abordado por um homem que fala com dificuldade e lhe é pedido que imponha as mãos sobre ele para que seja curado.

Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele

A história nos permite recriar a cena em que vemos Jesus, com o homem, afastando-se da multidão. O que ele está prestes a realizar é algo “pessoal”, reservado para esse homem que não ouve e fala com dificuldade. Não é um milagre para alimentar a curiosidade, mas responde a uma necessidade pessoal e muito particular. Jesus estabelece uma relação pessoal com ele, com seus desejos, seus anseios mais profundos, e realiza um gesto que, sem dúvida, chama a atenção por sua particularidade: coloca os dedos em seus ouvidos e toca sua língua com a saliva. Jesus não apenas se afasta do homem, mas, com sua própria mão, toca os lugares feridos em seu corpo, ele vai diretamente àquela impossibilidade de se comunicar com outras pessoas, tanto ouvindo quanto falando.

No texto anterior a essa história, a mulher cananeia havia conseguido abrir os ouvidos de Jesus para seu pedido de ajuda, ampliando o horizonte de sua missão. Jesus aceita a súplica da mulher e, assim, pronuncia as palavras que ela tanto queria: “Pelo que disseste, podes ir, porque o demônio saiu de tua filha”. Jesus abriu os ouvidos e se deixou ouvir pelo clamor do povo pagão e, a partir desse momento, sua palavra se torna uma palavra ampliada, que não tem um limite estabelecido pela religião judaica, mas será proclamada a todos os povos ao seu redor. Assim, quando esse homem surdo que fala com dificuldade se aproxima, Jesus percebe e aceita seu clamor de uma maneira diferente, e pode ouvir sua voz mesmo que ele a pronuncie com dificuldade. As palavras da mulher despertaram nele uma nova sensibilidade e uma sensibilidade para reconhecer a origem do problema que, nesse momento, assedia esse homem, que é um sinal de tantas pessoas oprimidas e marginalizadas cujos gritos não são ouvidos.

Jesus se deixou desafiar pelo grito da mulher cananeia e, a partir dessa nova sensibilidade, pôde tocar com os dedos os ouvidos do homem surdo para que seus ouvidos se abrissem à palavra dela: "Efatá!", que quer dizer: "Abre-te!". Não é uma palavra mágica, mas é a voz que emerge de uma interioridade impregnada dos sons de quem foi impregnado pela realidade crua da marginalização, do desprezo, daqueles que foram considerados indignos.

Depois de abrir os ouvidos ao primeiro apelo, ele não pôde mais ficar indiferente às inúmeras pessoas “surdas” e com deficiência auditiva que encontrou pelo caminho. Novas realidades começaram a povoar sua interioridade com sons variados e novos gemidos. Quando abrimos nossos olhos e ouvidos já não há possiblidade de fechá-los.

Alguns tentam ser indiferentes, negando a dura realidade que os cerca, cobrindo os olhos com grandes vendas, fechando os ouvidos e andando como cegos e surdos em seu pequeno mundo protegido por muros altos para que os gritos de socorro de nossos irmãos e irmãs não cheguem até eles. Prisões pequenas, mas confortáveis, cercadas por muros altos, que exalam cheiros ricos, sons pacíficos que não perturbam a aparente tranquilidade, que nos encerram em um micromundo do qual não se pode sair porque se corre o risco de perder aquilo que se considera valioso! São grupos auto excluídos que escolhem um recinto que traz uma aparente tranquilidade, mas que, na realidade, exige cuidado constante para que nenhum clamor possa se infiltrar e causar desconforto...

Diante desta situação o Papa Francisco expressou sua “perplexidade com o nível de indiferença a que chegamos diante de um irmão que vive à margem da sociedade”. E ele se perguntou "Como é que deixamos que a 'cultura do descarte', na qual milhões de homens e mulheres não valem nada em relação aos benefícios econômicos, como é que deixamos que esta cultura domine as nossas vidas, as nossas cidades, o nosso modo de vida?"

Fazemos nossa sua advertência sobre o risco de “desviar o olhar para não ver esta situação” e seu pedido para no “tornar invisíveis" os que estão à margem da sociedade, seja por motivos de pobreza, seja por motivos de dependência, doença mental ou deficiência. "Rezemos para que as pessoas que vivem à margem da sociedade, em condições de vida desumanas, não sejam esquecidas pelas instituições e jamais sejam consideradas descartáveis", é o apelo final de Francisco (cf. Francisco: por favor, “paremos de tornar invisíveis os que são descartados”. O vídeo do Papa).

Neste domingo, pedimos ao Senhor que abra nossos ouvidos para ouvir os gritos de tantas pessoas que vagueiam por nossas cidades e que sejamos portadores de uma palavra profética que grite “abre-te” aos que tentam silenciar esses gritos.

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