Fidelidade no seguimento de Jesus

Foto: cathopic

17 Junho 2022

 

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 12º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lc 9,18-24.

 

Eis o texto.

 

“...quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24).

 

Depois do percurso quaresmal e pascal, a liturgia nos situa novamente no chamado “Tempo Comum”; trata-se de um percurso contemplativo que nos convoca a fazer caminho com Jesus, realizando sua missão e preparando a comunidade dos seus seguidores. Tendo os olhos fixos n’Ele, viveremos uma longa aprendizagem, deixando que o Mestre da Galileia faça emergir o que é mais nobre e humano de nosso interior. Tempo de seguimento e identificação com Aquele que foi “humano” na sua radicalidade.


No evangelho deste domingo, Jesus deixa claro, para todos nós, o preço do seguimento. Responder à pergunta – “quem dizeis que eu sou?" – implica identificação com seu modo de ser e viver. Sua proposta de vida, sua liberdade diante das leis e tradições, seu compromisso com os últimos, sua relação com o Pai... vão provocar conflitos com aqueles que estão “petrificados” em seu modo de viver. E aqueles(as) que se identificam com Ele também vão encontrar oposições, incompreensão e perseguições.


Por isso, ao convidar seus discípulos e discipulas a segui-lo, foi taxativo: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”


Que significa “renunciar a si mesmo” - “tomar a cruz de cada dia”? Será que ele veio “complicar” nossa vida com mais peso, mortificação, sofrimento...? Esta afirmação de Jesus parece estar em contradição com outra afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”. “Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).

 

Na vida e missão de Jesus encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.


A segunda paixão é a da “cruz”, imposta pelos poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de tortura, imposta pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.

 

No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...

 

Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.

 

Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.

 

Infelizmente, a história da espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência... como se isso fosse agradável a Deus.

 

Privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo isso desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada...

 

Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus. Mas Jesus assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta “cruz” assumida é também visibilização da salvação.

 

Nesse sentido, a cruz de Jesus e dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida. Assim, a cruz não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou e condensou o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

 

“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...

 

Tanta radicalidade nos surpreende. De fato, hoje, em nossa sociedade, escutamos expressões totalmente contrárias: “cuide-se”, “seja você mesmo”, “aproveite a vida”, “seja o primeiro” ...

 

São expressões de uma vida centrada no próprio “ego”, ou, “ego-latria”. Tal idolatria reside no próprio interior. O coração humano é uma fábrica de ídolos; há ídolos internos que emergem e que desumanizam, pois rompem todo vínculo e quebram toda relação.

 

Jesus, em seu convite ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe prestar culto, não nos colocar a seu serviço...

 

Nosso ídolo interior, nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe sirvam. Por isso, nos agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que nos incensem.

 

Mas, quando alguém entra no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o veneno do desprezo, da do ódio, da violência, do autoritarismo...

 

Quando Jesus propõe “renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência dia-bólica que nos habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos nossa principal preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que tudo gire em torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das pessoas que nos agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos desordenados, que nos dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.

 

A partir de nossa ego-latria, vamos criando e alimentando muitos outros ídolos externos, que minam as nossas forças, matam nossa criatividade e esvaziam todo espírito solidário: a busca do poder, da riqueza, da fama, da conquista... Tudo isso nos faz entrar no círculo de morte e destruição de nós mesmos.

 

A destruição dos ídolos começa por nós mesmos, esvaziando o ídolo de nosso ego. “Renunciar a si mesmo” não é renunciar o que é mais belo que temos recebido: uma personalidade com características únicas, uma liberdade admirável com capacidade criativa, um espírito compassivo e solidário, uma capacidade de relação gratuita... O que Jesus pretende é tirar nosso “ego” de seu recinto individualista e nos situar no amplo espaço do Reino de Deus. Podemos expressar isso numa linguagem tomada da ciência ecológica: Jesus nos chama a abandonar nosso “ego-sistema” para transladar-nos ao “eco-sistema” de seu Reino.

 

A identificação com Jesus no seu seguimento requer assumir um processo de “morte” e levar a “cruz-staurós” até o fim. É preciso que morra em nós aquilo que não tem futuro, que não é vida, que não é felicidade... O “ego” é pura ilusão, é só uma ficção ou, como dizia Einstein, “uma ilusão ótica da consciência”. Quando ele determina nossa vida, caímos no vazio, pois ele não tem em que se sustentar.

 

A renúncia à “egolatria” não é uma desgraça ou destruição de si mesmo; pelo contrário, é a oportunidade privilegiada para deixar emergir do nosso “eu original” os recursos mais nobres, as potencialidades de vida que não tiveram chance de se expressar, as beatitudes mais profundas que dão sentido e sabor ao nosso viver. Não se trata de massacrar uma dimensão de nosso ser para salvar outra; trata-se de descobrir uma falha na percepção de nós mesmos; ou seja, com frequência cremos ser aquilo que não somos e vivemos enganados. Trata-se de nos libertar de tudo aquilo que nos ata ao caduco e nos impede elevar-nos à plenitude que nosso verdadeiro ser exige.

 

Este é o caminho da vida que se faz doação, presença, compromisso... vida na fidelidade até o fim.


Para meditar na oração:

 

Entendemos por medíocre aquele(a) que renunciou a viver em profundidade; perdeu o elã vital e por isso a capacidade de entusiasmar-se pela vida, de lançar-se, de expandir-se. O realista medíocre fica satisfeito com sua vida, mas “cheira a morte”.

 

A “mediocridade” não tem lugar no caminho do Reino; o seguimento de Jesus não é para “medíocres”, mas para os(as) ousados(as), aqueles(as) que arriscam, que alimentam a capacidade de criar e inovar.

 

- Sua vida: determinada pela mediocridade do “ego” ou pela maneira inspirada de Jesus viver?

 

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