A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 31º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Marcos 12,28-34.
“Amarás o Senhor teu Deus... amaras o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,30-31).
Este é o contexto do Evangelho deste domingo: Jesus já está em Jerusalém há alguns dias; realizou a purificação do tempo, discutiu com os chefes dos sacerdotes, mestres da lei e anciãos sobre sua autoridade para fazer tais coisas; com os fariseus e herodianos discutiu sobre o pagamento do tributo a César; com os saduceus discutiu sobre a ressurreição...
Nesse ambiente marcado por tantos conflitos, um “mestre da lei” se aproxima de Jesus; não demonstra nenhuma agressividade e nem lhe estende uma armadilha, mas vive uma angústia existencial, marcada por um forte legalismo. Sua vida está fundamentada num emaranhado de leis e normas que lhe determinam como comportar-se em cada circunstância, sem dar margem à criatividade e ao desejo de abrir-se ao novo. Do seu coração brota uma pergunta decisiva: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” Qual é o mais importante para acertar na vida? Onde centrar a vida para livrar-se do peso das exigências da lei?
A pergunta do mestre da lei tem sentido porque na Torá encontravam-se 613 preceitos. Para muitos rabinos todos os mandamentos tinham a mesma importância, porque procediam de Deus. Para alguns, o mandamento mais importante era o cumprimento do sábado. Para outros, o amor a Deus era o primeiro.
Jesus entende muito bem o que sente aquele homem que dele se aproxima. Quando na religião vão se acumulando normas e preceitos, costumes e ritos, doutrinas e dogmas, é fácil viver dispersos, sem saber exatamente que é o fundamental para orientar a vida de maneira sadia.
Tanto naquele tempo como hoje somos sufocados por uma abundância de leis, tanto religiosas como civis. No fundo, estão sobrando leis, mas está faltando o amor. O amor não cabe nas leis, só cabe no coração. Quem ama não precisa de leis.
A novidade da resposta de Jesus está no fato de que o mestre da lei lhe perguntou pelo mandamento principal (“amarás o Senhor teu Deus...”), mas Ele acrescenta um segundo, tão importante como o primeiro: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ambos mandamentos estão no mesmo nível, devem ir sempre unidos; Jesus faz dos dois mandamentos um só. Ele não aceita que se possa chegar a Deus por um caminho individual e intimista, esquecendo o próximo. Deus e o próximo não são magnitudes separáveis. Por isso, tampouco se pode dizer que o amor a Deus é mais importante que o amor ao próximo.
Diante da pergunta do mestre da lei pelo mandamento mais importante (no singular), Jesus responde dizendo que são dois (no plural). E não há mandamento maior que eles.
A resposta de Jesus aponta para os dois eixos centrais na vida dos seus seguidores: Deus e o próximo; ambos eixos se exigem mutuamente, a ponto de um levar ao outro, e a ausência de um provoca a ausência do outro. Quem está sintonizado em Deus, está necessariamente aberto ao amor e à solidariedade; e quem está centrado no amor ao próximo está aberto à iniciativa e graça de Deus.
O(a) seguidor de Jesus não se caracteriza por pertencer a uma determinada religião, nem por doutrinas, nem ritos, nem normas morais... mas por viver no “fluxo do amor” que tem sua fonte no coração do Pai.
O mandamento do amor não é apresentado como uma lei que torna nossa vida dura e pesada, mas uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu Amor”.
O Amor que é Deus, temos de descobri-lo dentro de nós, como uma realidade que está unida intimamente ao nosso ser. Por isso, só há um mandamento: manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros; o amor é o divino germinando nos meandros do humano. O amor é a realidade que nos faz mais humanos.
Ser seguidor(a) de Jesus, portanto, é uma questão de amor. Amar como Ele é transformar-se n’Ele.
O seguimento de Jesus nos convida a esta liberdade que se encontra na palavra “Ágape”, o amor da superabundância, o amor de gratuidade, o amor que transborda, que nada pede em troca. Amar sem ter nada de particular para amar. Amar não a partir de nossa carência, mas amar a partir de nossa plenitude. Amar não somente a partir de nossa sede, mas amar a partir de nossa fonte que corre.
Só o “ágape” expressa o amor sem mistura de interesse pessoal. Seria um puro dom de si mesmo, só possível em Deus. Deus não é um Ser que ama, é o Amor. N’Ele, o Amor é sua essência; se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de existir. Não podemos esperar de Deus “amostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar o amor um só instante.
Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o grau mais elevado do dom de si mesmo. Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação, oblativo, expansivo... o puro amor.
O amor (ágape) impregna o ser humano. “Afeta a totalidade humana; roça a sensibilidade, aloja-se na medula dos ossos, pulsa nos batimentos cardíacos, arfa na respiração, circula pelo sangue, aquele o pensamento, rola pelos braços, agita as mãos, baila na consciência, escorre no olhar, sonoriza-se na palavra, recolhe-se no silêncio, peregrina nos passos, oculta-se no inconsciente, murmura na oração...” (Juvenal Arduini). O Amor é onipresença. “É um estado de ser” (Rollo May). O amor é a habitação do ser humano. “O amor jamais acabará” (São Paulo).
O amor é esvaziar-se do “ego” dentro de si mesmo, para que haja lugar para o outro. O amor tem um rosto. Assim como Deus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade... “Amar é encontrar sua riqueza fora de si” (Alain).
Para o poeta Rilke, o amor é constituído por “duas humanidades que se inclinam uma diante da outra”.
Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que os gestos de amizade podem trazer. Com efeito, neste caso, não se ama o outro porque ele é bom (como na amizade verdadeira), mas para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado.
Tal como a água de um rio escavando seu leito profundo, o amor é a força que nos escava, que alarga e aumenta nossa capacidade de irmos para além de nós mesmos. Uma das maiores razões para o amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona.
O amor carrega em si a marca da eternidade. Quem ama vê o tempo se ampliar e a vida ganhar mais sentido. Alguns dizem que há lugares de nós mesmos que só passam a existir após o sofrimento ter penetrado ali. Há lugares em nosso interior que não existem enquanto o amor não tiver penetrado.
- Entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;
- Ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos;
- Considere que toda a Criação saiu das mãos do Criador como presente especial e gratuito, como uma mensagem de Amor a cada um de nós.