31 Agosto 2018
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 22º Domingo do Tempo Comum, 2 de setembro (Mc 7, 1-8.14-15.21-23). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois da leitura do sexto capítulo do Evangelho segundo João, ao longo de cinco domingos, leitura que foi uma verdadeira catequese sobre Jesus como “palavra e pão da vida”, voltamos à proclamação cursiva do Evangelho segundo Marcos. Nós o havíamos deixado no relato da primeira multiplicação dos pães (cf. Mc 6, 30-44) e retomamo-lo no sétimo capítulo, em que Jesus entra em controvérsia com alguns escribas e fariseus.
Estes “vieram de Jerusalém”, na Galileia, como já tinha acontecido quando, durante uma discussão com Jesus sobre o seu poder de expulsar demônios, tinham-no julgado como possuído pelo príncipe dos demônios e tinham condenado o seu agir (cf. Mc 3, 22-30).
Agora, em vez disso, eles contestam a conduta concreta dos discípulos de Jesus e pedem contas disso ao seu rabi. O problema diz respeito à halakah, a prática de preceitos e prescrições recebidos da tradição e, especificamente, ao fato de que os discípulos tomam a sua refeição (lit.: “comem pães”) sem lavar as mãos, portanto, com mãos impuras (adjetivo koinós).
Na verdade, a Torá, a Lei, dirigia o mandamento da ablução ritual das mãos apenas aos sacerdotes que, no templo, faziam a oferta, o sacrifício (cf. Ex 30, 17-21). Mas, no tempo de Jesus, havia movimentos que radicalizavam a Torá e multiplicavam as prescrições da Lei, com uma obsessão particular pelo tema da pureza. Entre eles, haviam os chaverim (companheiros, amigos) e os perushim (separados, fariseus), que consideravam muito importante a prática de lavar as mãos e de outras abluções em vista da pureza, que podia ser rompida por causa do contato com pessoas ou realidades impuras.
Jesus deixava seus discípulos livres dessas observâncias que não tinham sido pedidas por Deus, mas impostas pelos intérpretes das Sagradas Escrituras, que declaravam “a tradição” atribuindo a mesma autoridade reservada à palavra de Deus.
Jesus fazia uma atenta cuidadosa de discernimento, distinguindo bem o que era a expressão da vontade de Deus e o que, em vez disso, era costume humano, norma forjada pelos homens religiosos, que, absolutizada, torna-se um obstáculo para a própria palavra de Deus e uma perversão da sua imagem.
A Lei deve inspirar o comportamento, mas, com o passar do tempo, os costumes e as observâncias correm o risco de contradizer o primado da Palavra, a sua centralidade na vida do fiel. E, muitas vezes, aqueles que invocam as tradições, tornando-as “a tradição”, fazem isso porque são justamente eles que as pensaram e as criaram.
Neste caso, porém, em vez de estarem a serviço do ser humano e da sua relação de comunhão com Deus, essas normas acabam sendo alienantes, sufocam a liberdade dos fiéis, erigem barreiras e traçam fronteiras entre os seres humanos.
Diante dessas contestações de escribas e fariseus, Jesus responde atacando-os: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’ (Is 29, 13). Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.
Jesus confirma a admoestação dirigida pelo profeta ao povo de Jerusalém e denuncia a hipocrisia da distância entre os lábios que aderem a Deus e o coração que, ao contrário, permanece distante dele. Naqueles escribas e fariseus, certamente havia a frequência ao culto, a assiduidade à liturgia, a confissão verbal do Deus vivo, mas faltava uma autêntica adesão do coração, aquela que pede para se realizar aquilo que se diz com as palavras. É questão de unidade da pessoa, de um coração unido, não dividido, não duplo (cf. Sl 12, 3)!
A crítica de Jesus se torna dura e radical: “Vocês esvaziam a Palavra de Deus com a tradição que vocês transmitem” (Mc 7, 13). A vontade de Deus é mal-compreendida, deixada de lado, contradita, enquanto o primado é reservado à suposta tradição. Justamente por isso o discernimento se torna urgente, também por parte do cristão, e essa operação se realiza principalmente passando cada observância e cada prescrição pelo crivo do Evangelho, pela palavra e pela ação de Jesus e, consequentemente, nunca esquecendo que a caridade é o critério último capaz de determinar a bondade ou a perversão daquilo que é exigido. Escrevia Isaac de Stella, o grande abade cisterciense do século XII: “O critério último daquilo que deve ser conservado ou mudado na vida da Igreja é sempre o agápe, a caridade”.
Jesus nunca contradisse a Lei e as suas exigências sobre a vontade de Deus, ao contrário, sempre remeteu à intenção do Legislador, do próprio Deus, como também os profetas, para que a Lei fosse acolhida com o coração e observada na liberdade, com convicção e amor. Mas, diante da tradição e da multiplicação dos seus preceitos, Jesus pede aquilo que ele mesmo fez: o discernimento.
A multiplicação dos preceitos, de fato, aumenta a possibilidade de não os observar, aumentando as oportunidades de hipocrisia. “A palavra do Senhor permanece para sempre” (1Pd 1, 22; Is 40, 8), enquanto as tradições evoluem com base nas mudanças culturais e nas gerações; e, embora veneráveis por causa da antiguidade, continuam sendo humanas, invólucro e revestimento da palavra de Deus.
Depois de indicar alguns casos de contradição à lei de Deus cometidos em nome da observância dos preceitos humanos (cf. Mc 7, 10-13), Jesus volta a se dirigir à multidão chamada ao seu redor e diz: “Escutai todos e compreendei!”. Abertura de autoridade e solene que, paralelamente à advertência conclusiva (“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”: Mc 7, 16), destaca as palavras reveladoras de Jesus: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”.
Palavras breves e apodíticas. Não há nada que possa tornar o discípulo impuro entre as realidades que estão fora do seu corpo: nem a comida, nem o contato, nem as relações. Ao contrário, o que tornam o ser humano impuro vem do seu interior e se manifesta no seu comportamento. É preciso prestar atenção e não acabar opondo, com base nessas palavras de Jesus, interioridade e exterioridade, que em todo ser humano são dimensões inseparáveis. Para Jesus, assim como para todas as Escrituras, “o mal, o pecado está à espreita na porta” (Gn 4, 7) do coração de cada ser humano, e é gerado a partir do coração para se manifestar nos sentimentos, nas palavras e nas ações.
Esse ensinamento de Jesus, porém, parece estar em contraste com as preocupações de muitos escribas, que insistiam, sobretudo, no comportamento exterior. As suas palavras não são facilmente compreensíveis, então ele é forçado, assim que volta para casa, longe da multidão, a repreender os discípulos perplexos e a explicitar os nomes das pulsões, dos pensamentos e dos propósitos que os tornam impuros: uma lista impressionante de pecados, uma das mais detalhadas de todo o Novo Testamento.
Significativamente, porém, ela diz respeito aos pecados consumados contra o amor, contra o próximo, porque o pecado sempre se insere nas relações entre cada um de nós e os outros (cf. Mt 25, 31-46), nas relações: é nas relações humanas que a lei de Deus pede caridade, misericórdia, sinceridade e fidelidade. O mal, a impureza não está nas realidades terrenas, mas está em nós, lá onde afirmamos apenas a nós mesmos e não reconhecemos os outros.
Enfim, levando em conta o fato de que toda a controvérsia nasce de uma questão relacionada com a mesa, pode-se tirar de todo o raciocínio de Jesus um lembrete importante: não podemos excluir ninguém da mesa e, se o fizermos, seremos nós excluídos da mesa do Reino! Quanto à mesa eucarística, além disso, não está excluído dela quem é pecador, quem assim se acredita e oferece humildemente a mão como um mendicante em relação ao corpo do Senhor, enquanto deveriam ser excluídos dela aqueles que não sabem discernir o corpo de Cristo (cf. 1Cor 11, 29) no irmão e na irmã, no pobre, no pecador, no último, no sem dignidade.
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O que é impuro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU