24 Agosto 2018
A fé jamais é adquirida uma vez por todas. As tribos de Israel devem retomar sempre o seu assentimento à Aliança, outrora concluída no Sinai. Os discípulos de Jesus foram testemunhas dos sinais realizados por Jesus, mas também eles devem renovar a fé em sua palavra. No evangelho de hoje, após seu discurso sobre o Pão da Vida, vemos muitos se afastarem de Jesus. Pedro, no entanto, reconhece que só ele tem "palavras de Vida eterna"; mas, mesmo assim, não está ainda pronto para compreender e aceitar todo o percurso do Cristo.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 21º Domingo do Tempo comum, do Ciclo B (26 de agosto de 2018). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas:
1ª leitura: «Nós também serviremos ao Senhor, porque Ele é o nosso Deus» (Josué 24,1-2.15-18)
Salmo: Sl. 33(34) - R/ Provai e vede quão suave é o Senhor!
2ª leitura: «Este mistério é grande, e eu o interpreto em relação a Cristo e à Igreja» (Efésios 5,21-32)
Evangelho: «A quem iremos Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (João 6,60-69)
Não nos enganemos: o relato que hoje lemos, a famosa crise ou «divisão de Cafarnaum», não é um simples incidente de percurso na vida de Jesus. Trata-se do que de fato está em jogo no Evangelho. Simeão tinha anunciado a Maria e a José, quando estes apresentaram Jesus no templo, que esta criança seria «como um sinal de contradição» (Lucas 2,34). E sua palavra é esta espada que penetra no mais profundo de nós mesmos, para separar o pleno e o vazio, o que vale para sempre e o que não vale lá grande coisa ou, mesmo, não vale nada. Simeão concluiu afirmando que «serão revelados os pensamentos íntimos de muitos corações» (ver também Hebreus 4,12: «A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração.»).
A maior parte de nós não gosta muito disto, que podemos chamar de «julgamento» e que nos faz descobrir o que se esconde dentro de nós, às vezes até mesmo sob a aparência de «bons sentimentos» ou de boas razões. Em Cafarnaum, Jesus, Palavra viva em nossa carne, revela-nos que a nossa verdade é entregarmo-nos aos outros para, como Ele, ser-lhes seu alimento. Ora, um reflexo de defesa impele os homens a ignorarem o sentido profundo de suas palavras, a recusarem-nas, delimitando-as ao seu sentido material. Nos versículos 62-63, Jesus repreende seus interlocutores por terem tomado as suas palavras em sentido «carnal» -«a carne não adianta para nada»-, em vez de, o que seria mais custoso de aceitarem, reconhecê-las como «espírito e vida». Assim, em todas as épocas, os homens têm preferido dar de ombros ao ouvirem a mensagem que diz só se salvar aquilo que se dá, inclusive a própria vida.
Para que fique bem entendido, podemos recorrer a uma impostura mais ou menos consciente. Em vez de fazermos nossas as atitudes de Cristo por toda a sua vida, até o seu ponto culminante na Cruz, podemos contentar-nos com o rito eucarístico: vamos à missa, comungamos e está tudo resolvido. Compreendamos ser preciso passar deste comportamento «religioso» para chegarmos à fé de que ele é expressão. O pertencimento a Cristo supera o rito, e até mesmo a «piedade», para fazer-nos alcançar o que eles significam: a nossa conformidade com tudo o que foi o Cristo. Mais do que uma imitação: uma comunhão, no sentido primeiro da palavra. Esta é a única maneira de sermos filhos, imagens de Deus no Filho e pelo Filho.
Ele é único: Filho, existe somente um ; por isso devemos fazer-nos um só com todos os outros seres humanos. Uma só carne, um só sangue. E o caminho para chegarmos até aí não é outro senão a fé em Jesus, o Cristo. Por isso ele termina sua brusca interpelação aos que se revoltaram contra as suas palavras sobre o dom da carne e do sangue, dizendo: «Entre vós há alguns que não creem». E estamos assim de volta, portanto, ao primeiro discurso (18º e 19º Domingos, João 6,35-47). Tratava-se aí de irmos até ele, de crermos nele, para nunca mais voltar a ter fome nem sede. E esta fé não pode contentar-se com confiar nele para simplesmente se obter dele algum benefício, nem mesmo o de nos «salvar». Esta fé também não é uma adesão ideológica a uma doutrina, mas sim, aceitar perder tudo, para nos fazermos um só com Ele. Os dois discursos se encontram.
Recusar admitir «para onde vai o Cristo», ou seja, que irá realizar o dom da sua carne e do seu sangue, é não crer que ele verdadeiramente venha de Deus (versículos 41-42: «Eu sou o pão descido do céu...»). Crer isto não significa uma simples adesão intelectual, que sempre corre o risco de permanecer um assentimento superficial, mas implica numa adesão de fundo, de todo o ser. «Adesão» esta (palavra que vem do verbo aderir: «colar em») que nos põe no seguimento a Ele, com Ele, no caminho tomado por Ele. Para dizer a verdade, não podemos nunca estar seguros de que nos mantemos com Cristo até este ponto. É que isto se assemelha aos inúmeros «Eu te amo» do amor «humano»: são sentimentos, por certo, mas até onde pode ir o engajamento de todo o ser? A sequência é que dirá. «Vós também vos quereis ir embora?», pergunta Jesus aos Doze, diante da deserção da multidão.
Leiamos atentamente a resposta de Pedro e veremos que ela nos traz de volta à questão da identidade do primeiro discurso. Pedro não se pronuncia sobre o comer e beber o corpo e o sangue de Cristo. Ele, no fundo, está sempre em Mateus 16,22: «Isso jamais te acontecerá». Permanece, portanto, a meio caminho da fé e do amor. De fato, ficar assim no meio do caminho, implica em que a fé na origem de Jesus permanece sendo superficial, apesar de todos os «credo» que se possam recitar. Em Lucas 22,32-33, Jesus, dirigindo-se a Pedro, diz que orou para que a sua fé não desfalecesse. E Pedro respondeu que o seguiria até mesmo na prisão, até mesmo na morte. Na hora decisiva, contudo, Pedro renegou Jesus. Sabemos o que aconteceu em seguida. Pois, nossa fé consiste muitas vezes em confiar em Cristo, mesmo não tendo a pretensão de superarmos a fragilidade de Pedro.
Concluímos, assim, hoje, a leitura do capítulo 6 do Evangelho de João. Para ser mais preciso, concluímos a leitura dos discursos sobre o pão da vida e o dom da carne e do sangue. Pão que se revela como provação, da mesma forma que o maná (Êxodo 16,2-4), tão presente em todo este capítulo. Os ouvintes se dividiram entre crentes e não crentes. Pois, a ideia de comer a carne de um homem e beber o seu sangue é intolerável (versículo 60). E não será tornando este texto mais palatável que se retiraria dele o escândalo. Para bem da verdade, podemos verificar todos os dias o que diz o Salmo 14 (14,4): «o pão que eles comem é o meu povo que devoram». Ricos, vivemos da miséria, da fome e da morte de uma multidão de homens, mulheres e crianças que o atual sistema econômico reduz ao desamparo em nosso terceiro mundo e nos terceiros mundos dos países desenvolvidos. A antropofagia dissimulada, oculta, é generalizada. Esta carne e este sangue que arrancamos da maior parte da humanidade, contra a sua vontade, Cristo veio dá-las a nós voluntariamente. É inútil dizer que isto não resolve o problema dos que são as vítimas, mas nos conclama a entrarmos na lógica deste dom total. Deus não vem nos impor o amor à base da força, o que seria totalmente contraditório. Ele traz aos nossos olhos a imagem desta via estreita que é a única que conduz à Vida. Devemos então, primeiro, tomar a carne e o sangue que Ele nos dá, e, em seguida, fazer nosso o amor que comanda este dom.
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Na lógica do dom total - Instituto Humanitas Unisinos - IHU