24 Outubro 2018
"Meter-se na política para lutar por direitos sociais, antes que por verdades metafísicas, é um modo pacífico de vencer a Cultura da Morte com a Cultura da Vida", escreve Emilce Cuda, doutora em Ética Teológica, em artigo publicado por Religión Digital, 23-10-2018. A tradução é de Graziela Wolfart.
Pelos que trabalham, pelos que buscam trabalho, pelos que se cansaram de buscar, pelos aposentados. Por estas suficientes razões a Igreja Católica Argentina "se mete na política" porque – segundo o Papa Francisco – a política é a forma mais elevada de caridade, mas não só por isso.
Não podemos esquecer que a primeira encíclica social Rerum Novarum surge no contexto de um catolicismo que havia perdido a soberania política na quase totalidade de seus territórios pontifícios, pelas mãos do novo Estado Liberal, e estava a ponto de perder soberania moral entre os pobres trabalhadores organizados em função de suas necessidades vitais, pelo socialismo do século XIX. A história se repete, para pior.
Na América Latina, setores evangélicos atuam entre os pobres, atendem suas necessidades, e legitimam politicamente candidatos de direita e ultradireita. Se a Igreja Católica não voltar a se relocalizar entre os trabalhadores como fez no final do século XIX, não como ONG assistencialista, mas acompanhando sua organização da forma como fez na América do Norte e na América Latina, não só o catolicismo está em perigo, como também a democracia e todo o Estado de Direito liberal, ameaçado na América Latina e no Caribe por um novo estado paralelo, o narcotráfico, como Estado da morte, onde o trabalhador já não vale sequer como exército de reserva.
Sob o pedido "Paz, Pão e Trabalho", surgido de necessidades reais, e não de ideologias esquerdistas, cerca de 800.000 pessoas pertencentes à classe trabalhadora do povo argentino – agora desempregada ou empregada em condições de precarização –, marcharam ao Santuário de Nossa Senhora de Luján no último sábado, dia 20 de outubro, em Buenos Aires.
Os trabalhadores argentinos, organizados na CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores), na CTA (Central de Trabalhadores Argentinos), na FT (Frente Sindical para o Projeto Nacional), e nos Movimentos Sociais da Economia Popular, se mobilizaram em torno do amparo de uma mulher. Hoje é Nossa Senhora de Luján, amanhã será Aparecida, Guadalupe, Copacabana. Os trabalhadores organizados, e não os pastores, foram os protagonistas do cenário político-religioso que teve a Igreja Católica como ente legitimador do protesto social em um clima ecumênico, já que na celebração participaram também pastores protestantes, judeus e islâmicos.
Na homilia, Mons. Agustín Radrizzani propôs colocar a economia a serviço do povo, e não do capital, praticando uma cultura do encontro. O caminho é o diálogo, primeiro entre os líderes das organizações de trabalhadores, diferenciados em distintas posições dentro do mesmo movimento peronista como partido que historicamente os representa, mas também entre: o setor dos trabalhadores organizados em sindicatos, o setor dos desempregados organizados em movimentos sociais, e o setor dos produtores organizados em câmaras. Desse modo, a Igreja Católica tenta construir pontes com o objetivo de conseguir uma unidade conjuntural que permita reconstruir os vínculos sociais corrompidos como consequência da situação econômica.
A Igreja em saída defendida pelo Papa Francisco não busca aprofundar o mal-estar social, mas, pelo contrário, busca a unidade na diferença. A unidade, na política, não faz referência a uma unidade como totalidade fechada de todos os setores da sociedade sob um discurso único, mas a unidade dos setores marginalizados para que possam se organizar na defesa de seus direitos frente a outro setor que hoje é o sistema financeiro. Em Luján estavam tanto os sindicalistas de direita como de esquerda, e os militantes "pró-vida" tanto como os de "livre decisão". Este último é uma amostra de que o que compõe o campo do político é, finalmente, o conflito social como luta por direitos, e não o conflito metafísico como guerra por verdades.
O conflito social como demanda pacífica por necessidades vitais é expressão legítima da luta pela vida digna (Jo 10,10 e Documentos de Aparecida). O conflito social não é outra coisa senão a visibilidade de um agonismo já existente sob a forma de desocupação, fome e violência, convertido mediante a política como palavra pública em demandas sociais por: Paz, Pão e Trabalho. Estas demandas poderão ter um fundamento moral, religioso ou laico, mas no campo político se expressam como luta por direitos. Quando isto se perde de vista, a democracia está em perigo e o totalitarismo ameaça.
Pastores argentinos de distintas denominações, interpelados por essa realidade concreta – que é a de todo o continente latino-americano –, unem-se à prece da Igreja Católica conduzida pelo atual papa Argentino, alertando os setores marginalizados de que não se deixem roubar: o entusiasmo, a esperança, a alegria, a comunidade, o amor fraterno.
Isso de que "a religião não deve se meter na política" – instalado pela opinião pública, novo soberano que julga depois da filosofia, da teologia e da ciência terem ocupado esse lugar no passado –, pode ser uma expressão de desejo muito respeitável, inclusive por parte de certo setor do catolicismo, mais próximo das elites do que do povo. No entanto, a religião atua politicamente na região. A maior ameaça que o Catolicismo tem hoje é a operação política dos evangélicos na base da estrutura social, por um lado, praticando assistencialismo, mas por outro lado legitimando candidatos de direita com medidas não só antipopulares, como também antidemocráticas e até antirrepublicanas.
A articulação da reivindicação peronista com os fundamentos evangélicos da Teologia do Povo tem longa data na Argentina. Começou com os sacerdotes Lucio Gera e Rafael Tello – para nomear alguns –, mas hoje continua com bispos como Víctor Manuel Fernández, Jorge Lugones e Agustín Radrizzani – entre outros. O que cabe à religião em política nessas latitudes é a evidência – proveniente da realidade e não da ideia –, de que o capital financeiro do século XXI gera desocupação estrutural naqueles países e/ou continentes que, na divisão internacional do trabalho, ficaram de fora do desenvolvimento econômico industrial. Consideram que essa é a verdadeira causa que põe em risco a paz social, e não o discurso dos pastores em defesa dos direitos dos pobres. A situação agonizante é evidente, porém, para vê-la é preciso sensibilidade social.
Bispos argentinos, sensíveis ao sofrimento humano – antes que a qualquer modo de ideologia –, discerniram evangelicamente e passaram a atuar em função da unidade na diferença. Primeiro, Víctor Manuel Fernández, arcebispo de La Plata, chamou a participar de uma missa pela paz social, na sexta-feira, dia 5 de outubro, as organizações dos setores trabalhadores, a partir das quais se constituem os partidos políticos desse setor. Depois, na quarta-feira, 17 de outubro, Jorge Rubén Lugones, bispo de Lomas de Zamora e Presidente da Pastoral Social Argentina, recebeu Hugo Moyano, um dos principais dirigentes sindicais do país, cujo filho foi acusado de corrupção. Terceiro, Agustín Radrizzani, bispo de Mercedes-Luján, recebeu todos no santuário mariano.
A Igreja Católica na Argentina se mete na política quando pratica um trabalho de contenção social e econômica nos bairros pobres das periferias. Ali, a falta de trabalho é terreno fértil para o avanço do narcotráfico – situação que na América Latina e no Caribe está sendo estrutural. Essas duas coisas articuladas – desocupação e narcotráfico – resultam na destruição do vínculo social que, em condições de emprego, se traduz em Convênios Coletivos de Trabalho como lógica política em contextos democráticos com trabalhadores organizados. No entanto, quando estas condições não se dão, emerge, paralelamente, o Estado de Morte; reino do individualismo onde não existe possibilidade de organização social alguma que proteja os direitos das pessoas.
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Emilce Cuda: "Na Argentina, a religião se mete na política como ente legitimador do protesto social" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU