25 Agosto 2018
Até namorar era proibido em garimpo aberto dentro de área de proteção no Pará. Endividados e isolados, trabalhadores viviam sob o rígido comando da proprietária.
A reportagem é de Ana Aranha, publicada por Repórter Brasil, 23-08-2018.
O garimpo de Raimunda Oliveira Nunes desenvolveu um eficiente sistema de produção. Mas o seu diferencial não está no modo como extrai metal do solo, e sim na técnica para tirar o ouro dos seus funcionários. Há 36 anos ela e sua família aprimoram o sistema na propriedade, ilegalmente instalada dentro da Floresta Nacional do Amana, no município de Itaituba, oeste do Pará.
Além de patroa, Raimunda também é o banco e o comércio do local. Ela “guarda” o pagamento dos funcionários (entre 3 e 7% do ouro que extraem) e usa esse crédito para descontar os gastos deles no garimpo. Todo o controle é mantido por ela, em um famoso caderno que fica na sede e ninguém acessa, apenas ela. A dívida só é revelada quando eles vão embora, momento em que a patroa faz as contas. Os garimpeiros se referem com temor ao momento em que ela “risca o caderno”.
Raimunda criou uma série de regras, atípicas até para os garimpeiros mais rodados, que fazem os trabalhadores gastar o que ganham dentro do seu garimpo. É proibido trazer comida de fora, compras apenas na sua cantina. É proibido namorar, as relações são intermediadas pelo pagamento de programas. É proibido usar a internet disponível na sede, obrigando quem quer falar com a família a pagar o transporte até o local onde há um rádio. Tudo isso vira dívida.
Na hora que ela risca o caderno, alguns devem tanto que não têm saldo nem para para sair do local. Era o caso de um trabalhador sentado na beira da estrada que liga a sede à porteira quando o comboio de dez carros entrou na propriedade, na quinta dia 16.
Foi quando os 38 homens e mulheres que trabalhavam ali foram resgatados pelo grupo de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho. Os fiscais consideraram que os 30 garimpeiros e 8 cozinheiras viviam em situação análoga à de escravos. Como o garimpo estava dentro da Floresta Nacional do Amana, a ação foi em parceria com o Icmbio, o Instituto Chico Mendes de Conservação para a Biodiversidade, que interditou as frentes de extração. Participaram também o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Polícia Militar.
Olhando para os lados e muitas vezes sussurrando para falar com a equipe da Repórter Brasil, os trabalhadores só revelaram o esquema ao qual eram submetidos depois que foram retirados dali. Mesmo assim, com medo. “Prefiro viver”, respondeu uma das mulheres quando questionada se o seu nome poderia ser publicado. Respeitando a vontade da maioria, a identidade dos trabalhadores não será revelada.
Entre as primeiras regras impostas pela proprietária, estava a proibição do namoro. Os relacionamentos monetizados eram permitidos. O valor do programa era anotado por ela no caderno de controle, onde o crédito passava do garimpeiro para a cozinheira. Na hora de acertar as contas, Raimunda cobrava primeiro o que o trabalhador devia a ela. Sobrando, as mulheres recebiam pelos programas.
Havia casais que namoravam na clandestinidade. Se descobertos, ou a mulher era expulsa, ou o casal era separado em frentes de extração distantes.
Alguns trabalhadores relatam que era proibido trazer comida ou bebida de fora, sob o risco dos produtos serem confiscados na revista à qual foram submetidos na portaria. Regra que os obrigava a comprar da venda que fica dentro da casa de Raimunda, onde tudo vale ouro.
Uma garrafa de cachaça sai por um grama, cerca de 100 reais. Um pacote com 12 latas de cerveja, dois gramas, 200 reais. Os preços na cantina e na farmácia eram de cinco a dez vezes maiores que os da cidade, segundo apuraram os fiscais do trabalho, que encontraram vários itens com a validade vencida. A maioria dos trabalhadores, porém, nem sabia os valores. “A gente pergunta o preço das coisas, ela dá de costas”, diz um garimpeiro.
Equipamentos de trabalho também eram vendidos por preços altos. Segundo um trabalhador, as botas custavam 2,5 gramas (250 reais). Talvez por isso a maioria deles trabalhava descalça, com as pernas enfiadas na lama, onde muitas vezes cai o mercúrio utilizado para separar o ouro. Entre os resgatados, um senhor tinha os pés e as pernas cobertos de machucados e erupções.
A regra que mais gerava indignação era a proibição em usar a internet ou o rádio na sede. Para falar com a família, eles precisavam pagar quatro gramas (400 reais) para ir e voltar ao ponto onde Raimunda autorizava o uso do rádio.
Uma das mulheres que têm experiência em outros garimpos fez uma rica leitura de como Raimunda operava: “Ali todo mundo tem livre arbítrio, ninguém é obrigado a nada. Mas a situação não te deixa outra opção”, ela diz. “É assim. Tu não é obrigada a pagar pra falar com a família, mas a outra opção é andar 30 quilômetros embaixo do sol. Só de ida. Do mesmo modo, ninguém te impõe a prostituição. Mas o gerente fica no teu ouvido toda noite, insistindo. Ele pode te queimar, tu não pode perder a vaga, acaba se submetendo. Mas a mulher é esperta, o cabra gosta, e ela começa a pedir pra ele comprar um monte de coisa, como agrado. O garimpeiro vai pegando da cantina sem nem saber a conta. Pra mim, tudo isso aí é um grande comércio”.
Pior do que trabalhar e gastar tudo no garimpo, é trabalhar e economizar, mas mesmo assim não receber. Foi a situação relatada por um trabalhador que, quando quis sair, não conseguiu receber de Raimunda. No dia do acerto das contas, ele ouviu da proprietária que não havia ouro para lhe pagar. “Ela disse pra voltar pro trabalho, eu voltei”, ele diz.
Por que não contestou? Exigiu o seu pagamento? “Ninguém tem essa força ali, dona”, ele responde, incomodado. “Acho que a senhora ainda não sabe de metade da história. Quem é doido de mexer com uma diaba daquela?”.
Raimunda não é bem quista pelos funcionários. Nem mesmo um dos seus empregados de confiança, que trabalha como operador de máquinas, encontrou palavras boas para descrevê-la. Falando com ênfase positiva, como quem faz um elogio, ele disse: “ela é uma mulher dura. Muito dura”.
Para um dos gerentes dos barracões, uma mistura de respeito e medo impede os trabalhadores de “encarar a véia”. A Polícia Militar encontrou quatro pistolas na propriedade. Segundo um trabalhador, o gerente principal da fazenda, braço direito de Raimunda, andava com uma arma dentro do seu carro. “Bem a vista”, diz.
Raimunda tem 59 anos e herdou o garimpo do marido, Francisco Pereira Nunes, o Chicão. Conhecido na região por ter sido um patrão ainda mais duro que ela, Chicão foi assassinado a tiros dentro do garimpo em 2010.
“O boato é que ele era ruim, que mandou enterrar muito couro [corpos] lá dentro”, diz um antigo morador de Itaituba, que não quer se identificar. Não há provas para as acusações, mas o boato se espalhou entre os homens e mulheres do garimpo.
Raimunda mantém um retrato imponente de Chicão na entrada da sede, pendurado entre a farmácia e a cantina. Na sala da casa, há retratos dos filhos pendurados na parede. Em um deles, uma jovem exibe um diploma dentro de uma moldura que imita a capa da revista Caras, em tamanho ampliado.
“Desde que ele morreu, eu assumi tudo aqui com os meus filhos e meu genro”, diz Raimunda. Uma de suas filhas, que mora na sede da cidade de Itaituba, é a responsável por encontrar os trabalhadores e providenciar o transporte até o garimpo. Os equipamentos utilizados no local, todos de propriedade da família, valiam mais de um milhão de reais, segundo cálculo do Icmbio.
Raimunda confirma que retinha o pagamento dos funcionários “para preservar eles e a gente. Se alguém rouba ouro, e o garimpeiro tem guardado, vão dizer que foi ele”. Ela justifica ainda a proibição do namoro como um jeito de garantir que a cozinheira não tenha favoritos no barracão: “Dizem que, quando amiga [quando um casal se junta], elas guardam pedaço de carne maior pro marido. Então faço isso para não ter privilégio”.
A carne é um tópico sensível na propriedade. Raimunda diz que sua criação de gado e cabras é apenas para alimentar os garimpeiros. Nos barracões, porém, a reportagem não conversou com um homem ou mulher que não reclamasse da ausência de proteína animal nas refeições. Todos dizem que a carne enviada dura apenas dois dias. No resto da semana, o almoço e o jantar se limitam a arroz e feijão. Só come mais quem compra da cantina.
Raimunda diz que é injustiçada, que mata um boi por semana para eles. Ao final da entrevista, sentada no sofá de sua casa, ela tira os óculos e chora. “O bandido que tá na rua ninguém pega. A gente, que tá aqui trabalhando, merecia mais consideração”, argumenta. “Estão me tratando que nem bandido”, diz, em voz baixa, olhando para as viaturas e acampamento montado pela operação na frente da sua casa.
A chegada dos trabalhadores de volta à cidade fez outra pessoa chorar, mas de alívio. “Eu passei esses meses acordada à noite e agoniada de dia, achei que tinham enterrado meu filho lá dentro”, disse a mãe de um dos garimpeiros, feliz em ver o filho chegar em casa. Ele ficou mais de seis meses sem dar notícia, pois não queria gastar os 400 reais de transporte até o rádio. Ela repara que ele perdeu peso, e o faz prometer que vai no médico passar por “todos os exames”.
No riscado do caderno da operação, a conta de Raimunda ficou alta. “Os auditores fiscais do trabalho apuraram um total de R$366.812 de verbas salariais e rescisórias devidas aos trabalhadores resgatados, a serem pagos pela proprietária do garimpo”, afirma Maurício Krepsky Fagundes, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo.
A dívida da proprietária com seus funcionários chama a atenção mesmo entre outros casos de trabalho escravo. O valor corresponde a mais da metade do total das verbas recebidas pelos 324 trabalhadores resgatados até agosto deste ano, segundo Fagundes. Ela ainda pode ser alvo de ações de danos morais, que estão sendo avaliadas pelo Ministério Público do Trabalho.
Além do endividamento, outro elemento que caracterizou o trabalho escravo foram as péssimas condições e os riscos aos quais os garimpeiros estavam expostos. Vivendo em um barracão de lona e chão pisado, os homens e mulheres dormiam a poucos metros do lugar de onde extraiam o ouro: crateras de areia e lama cavadas no meio da floresta.
A reportagem viu uma cobra venenosa e pisadas de onça no caminho para o local. Nos poços cavados para cada barracão, de onde se retirava a água para o consumo, havia sapos mortos.
Apesar de ser uma ameaça aos trabalhadores, a floresta alta e a fauna local chamavam atenção pela sua riqueza. Ao redor do rastro deixado pela onça, havia marcas de patas menores que sugerem a presença de filhotes.
Pela destruição causada pelas dez frentes de garimpo, a multa aplicada pelo Icmbio foi ainda maior: 4,8 milhões de reais. O órgão interditou os equipamentos e embargou 224 hectares que ficavam dentro da Floresta Nacional.
“Esse era um alvo importante, mas claro que apenas essa ação seria muito pouco. O trabalho tem que ser continuo”, afirma Diego Rodrigues, analista ambiental e chefe do setor de proteção do órgão em Itaituba. Estima-se que existam mais de 3 mil garimpos ilegais na região do rio Tapajós, o setor é o segundo maior vetor de desmatamento na área, perdendo apenas para a pecuária.
Raimunda e seus filhos têm outras terras, fora dali, onde exploram ainda mais frentes de garimpo. Na hora de pagar os trabalhadores, na sala da Justiça do Trabalho em Itaituba, ela pediu tempo para vender ativos e acessar o valor. Boa cobradora, agora é ela quem tem uma alta dívida pendurada com os trabalhadores e com o órgão ambiental.
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Escravos do ouro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU