12 Julho 2018
“Em outras ocasiões, eu já debati com o colega Giulio Meiattini sobre o magistério do Papa Francisco. Com ele, somos professores na mesma instituição romana, Santo Anselmo, que, como dizia São Tomás para os próprios alunos, não impede que dois colegas pensem coisas diferentes. Essa é uma grande tradição monástica. Uma recente entrevista concedida a Catholica (disponível aqui, em italiano) me leva a lhe escrever uma carta, para esclarecer a minha discordância com a sua discordância.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo é publicado por Come Se Non, 10-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caro Pe. Giulio,
A teologia vive de argumentações. Li com interesse o modo como que você também critica, em analogia com o que já escreveu sobre a Amoris laetitia, as iniciativas de Francisco e, depois, dos bispos alemães em matéria de “intercomunhão”. Gostaria de expressar aqui a minha dificuldade em relação a essas suas considerações, que, na minha opinião, não captam, de fato, as intenções em jogo e as reduzem a um modelo abstrato que não consegue entendê-las.
Parto do cerne do seu raciocínio. Na sua opinião, o que deve ser salvaguardado, tanto no campo matrimonial, quanto no campo eucarístico, é o “primado do sacramento sobre a ética”. Do modo como você descreve, esse quase parece ser o coração da “diferença teológica” em relação a toda redução antropológica da tradição. No primado do sacramento, está em jogo o primado de Deus, a própria razão da tradição eclesial.
Sobre isso, eu estou totalmente de acordo com você. Se desaparece esse primado do sacramento sobre a ética, não há mais espaço algum não só para a Igreja, mas para o próprio Deus. Justamente aqui, no entanto, abre-se também uma lacuna entre a sua leitura do magistério de Francisco e a minha.
De fato, eu considero que Francisco está preocupado exatamente com a mesma coisa que está no seu coração, ou seja, salvaguardar o primado do sacramento sobre a ética. Mas Francisco sabe que esse primado deve ser conjugado hoje de um modo novo em comparação com o modelo moderno e tridentino. Em outras palavras, ele assumiu plenamente a “virada pastoral” do Concílio Vaticano II, que impõe uma “tradução da tradição”.
Tento me explicar melhor. Analiso brevemente duas grandes questões sobre as quais a tradição tridentina quis salvaguardar o “primado do sacramento” com soluções que hoje, a partir do Concílio Vaticano II, não são mais convincentes.
A primeira diz respeito à missa e ao modo com que Trento “salvaguardou o sacramento”, contrapondo sacrifício e comunhão. Desse modo, desempenhou uma preciosa função “defensiva”, que hoje reconhecemos como bastante limitada e muito unilateral. Uma verdadeira tutela do “primado da eucaristia” passa hoje por uma profunda releitura da comunhão, sem temor de se tornar “protestante”.
O mesmo vale para o matrimônio: a defesa do “primado do sacramento”, desde 1563, tornou-se a “forma canônica”. Mas, com o passar dos séculos, ficou evidente que a “forma natural” e a “forma civil” tornam-se terrenos originais não só de contestação do sacramento, mas também de nova experiência dele. O que você chama de “incerteza e imprecisão” é, na realidade, uma retomada de temas pré-modernos e abertura a estilos pós-modernos da tradição eclesial.
Eis, portanto, o ponto sistemático importante: a história nos oferece diversos modelos de “primado do sacramento”. Se hoje não sabemos sair com decisão do “modelo tridentino” e entrar corajosamente em novos modelos, obtemos facilmente um efeito indesejado, mas garantido: em vez de promover o primado do sacramento sobre a ética, produzimos um primado de ética eclesial sobre a força teológica e profética do sacramento.
Gostaria de mostrar como as suas críticas ao magistério de Francisco correm o risco desse resultado, precisamente. Eu me concentro no tema da chamada “intercomunhão”. Na realidade, como você bem sabe, esse termo já é ambíguo em si mesmo, mas o é ainda mais quando aplicado às palavras de Francisco e dos bispos alemães.
Aqui não se fala em geral de “intercomunhão”, mas sim de “admissão à comunhão eucarística do cônjuge de outra confissão”. Na sua rápida análise, você ignora totalmente que o que está em jogo não é simplesmente o “primado da eucaristia” sobre a intenção de sujeitos individuais, mas sim a abençoada interferência entre “comunhão eucarística” e “comunhão matrimonial”.
Precisamente em razão do “primado do sacramento”, o fato de haver, entre um católico e uma protestante, “comunhão matrimonial”, embora em um contexto de pertencimento a Igrejas que carecem de “comunhão eucarística”, possibilita reconhecer, em determinadas condições, a profecia matrimonial como relevante em nível eclesial.
Aqui, parece-me, são justamente essas aberturas que salvaguardam melhor o primado do sacramento sobre a ética, enquanto as suas críticas, assim como as hesitações da Congregação para a Doutrina da Fé sobre esse mesmo tema, assemelham-se muito a um primado da ética eclesial sobre o poder e a liberdade do sacramento.
Eis: esse me parece ser o motivo de fundo pelo qual, diante do mesmo magistério, você parece carrancudo e preocupado, enquanto eu me sinto confortado e tranquilo. Não porque eu queira um primado da ética sobre o sacramento, mas porque acredito que o primado do sacramento, quando deve ser anunciado em uma sociedade aberta, exige outra linguagem e outro estilo. Que eu reencontro anunciado pelo Concílio Vaticano II e assumido com prudente seriedade e com generosa audácia pelo magistério de Francisco.
Com uma cordial saudação,
Andrea
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O primado do sacramento sobre a ética e a intercomunhão segundo Francisco. Carta a um colega, monge dissidente. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU