06 Junho 2018
Depois de 50 dias exatos desde o seu pronunciamento, a Santa Sé divulgou na tarde dessa terça-feira, 5, o texto completo do diálogo do Papa Francisco com cerca de 2.000 estudantes dos Colégios superiores eclesiásticos romanos durante uma audiência ocorrida no dia 16 de março passado, na Sala Paulo VI.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada em Vatican Insider, 05-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um discurso muito longo, todo de improviso, no qual o pontífice, em meio a piadas e metáforas, fornece sugestões úteis para a formação e para viver a vocação e o sacerdócio. O texto não havia sido publicado naquele dia pela Sala de Imprensa vaticana por vontade do próprio pontífice (à tarde, no entanto, havia sido publicado um relato conciso no L’Osservatore Romano e uma nota do Vatican News que relatava alguns conteúdos a mais do encontro).
Em um contexto evidentemente descontraído e confidencial, Francisco respondeu amplamente às perguntas de cinco seminaristas, diáconos e sacerdotes: um francês, um sudanês, um mexicano, um ítalo-americano e um filipino.
Ao primeiro, chamado Louis, que perguntava sobre como “perseverar no caminho do discipulado”, Francisco explicou, acima de tudo, que “o discípulo missionário não pode caminhar sozinho”.
“O missionário está a caminho. Se você é padre, não pode ser um padre ‘quieto’, um padre de sacristia, de escritório paroquial, um padre que escreveu na porta: ‘Aberto apenas segundas, quartas e sextas-feiras de tal a tal hora’ e ‘Confissões em tal dia, de tal a tal hora’: ‘Pequem antes, porque depois não se confessa’... Não se pode. Você está a caminho”, explica Francisco.
E, nesse caminho, há surpresas para descobrir através da “escuta”. A escuta “do Senhor”, naturalmente, mas também “das necessidades da humanidade, dos problemas”. Escuta que, portanto, se torna “oração” para não correr o risco de se tornar “surdos” às palavras de Deus. E, se a Palavra está “desligada” para você, isso significa que “você desligou o zelo, você mudou um pouco de registro e só aprendeu a escutar outras coisas”.
Caminho e escuta, mas também “fraternidade”. “‘Mas isso é fácil!’. Não é fácil – diz o Papa Francisco –. agora é fácil, porque vocês estão todos reunidos, todos em um colégio com tantos sacerdotes a seu serviço e em sua ajuda. Mas quando você estiver em uma paróquia, quando você estiver em uma universidade fazendo escola, isso não será fácil, porque a comodidade, o mundanismo levarão você a não estar a caminho. Porque estar a caminho cansa”.
Atenção, porém, porque, depois, “a vida começa a encolher” e se torna “como aqueles surdos que não escutam certas coisas, mas escutam as outras”. “Surdo por escolha”, afirma Bergoglio. Se você não estiver vigilante, acabará assim. Por isso, é importante viver a “fraternidade”: com os amigos, com os padres mais próximos e com o próprio pai espiritual. Que não deve ser necessariamente um presbítero, porque a direção espiritual é “um carisma leigo”.
O papa aconselha até a se deixar “acompanhar” por dois guias diferentes: um como confessor, outro como pai espiritual. O importante é que tenham “o carisma para acompanhá-lo” e "a capacidade de escutar”.
O acompanhamento é fundamental, de fato, quando começam a se soltar os “demônios da vida”. O “demônio meridiano”, o famoso “cuarentazo” como o chamam na Argentina, o diabo da “meia-idade”, que se apresenta em meio a “tantas outras dificuldades, todas nascidas do pecado original e da tentação”.
Por falar em diabo, o Papa Francisco traz uma anedota pessoal: “No outro dia, aproximou-se um padre que tinha lido algo que eu tinha escrito sobre a vida espiritual, não me lembro o quê, e me disse: ‘Tenha cuidado, porque o senhor nomeou o diabo naquela vez, e ele vai se vingar! É melhor não nomear o diabo, fingir que ele não existe’. Não, o diabo existe! E o diabo – como diz Pedro – faz a ronda, como ‘leo rugens’”.
Respondendo, depois, a Nebil, proveniente da África, que abordou o tema do discernimento, o bispo de Roma tira uma pedra do sapato: “As más línguas dizem que, ‘agora, o discernimento está na moda: este papa veio aqui com essa história... O que isso tem a ver?’ Mas o discernimento está no Evangelho!’”.
Toda a história da Igreja “é uma história de discernimento”. “Saber entender, na vida: isto está certo, isto não está certo; isto vem de Deus, isto vem de mim, isto vem do diabo. Isso é elementar, é elementar: é uma linguagem fundamental para a vida de cada cristão, ainda mais de um sacerdote”.
E para que o discernimento seja “justo e verdadeiro”, são necessárias duas condições. Primeira: a oração; depois o confronto, talvez com “uma testemunha próxima, que não fala, mas escuta e depois dá orientações”. Uma pessoa que “não resolve [o problema] para você, mas lhe diz: ‘Olhe isto... Esta não parece ser uma boa inspiração por este motivo. Esta sim...’”.
Isso ajuda muito. Jorge Mario Bergoglio experimentou isso por conta própria: “Descobri o desejo do discernimento quando estudava filosofia. Tinha feito dois anos de noviciado... sem discernimento”, diz entre as risadas dos presentes. Depois, lembrou o seu professor de metafísica, “um jesuíta muito bom, padre Fiorito”, que “era um ‘fã’ da espiritualidade inaciana e um especialista, não apenas teórico, mas também prático, no discernimento”, e que o ajudou tanto na nomeação como provincial, quanto para “outro cargo”.
“O discernimento é importante”, continua o papa. Na vida sacerdotal, quando não há discernimento, “há rigidez e casuística”. E tudo se torna “fechado”, o Espírito Santo “não trabalha”, e se apaga qualquer “emoção espiritual”. Isto é, entra-se na “prisão da casuística” e “na rigidez”. O contrário não é fazer tudo o que se quiser, especifica o papa, mas sim usar “outra linguagem”, deixar-se envolver “de uma maneira diferente”. “Não deixe aos livros que digam uma coisa ou outra”, em síntese.
“Tantos, tantos padres, tantos padres – e eu isso digo com bom espírito, com ternura e com amor – tantos padres vivem bem, na graça de Deus, mas como se o Espírito não existisse. Sim, eles sabem que existe um Espírito Santo, mas ele não entra na vida”, observa Francisco, acrescentando também que “a bondade está sempre na bondade interior unida ao diálogo com o Espírito”.
E, quando ele está, o Espírito Santo também traz “o senso de humor”. “Para entender se uma pessoa chegou a uma grande maturidade espiritual, perguntemo-nos: ‘Ela tem senso de humor?’. É a atitude humana mais próxima da graça”, reitera Francisco.
“É aquele ‘relativismo’ bom, o relativismo da alegria.” Por isso, aos jovens também, muitas vezes “narcisistas”, que se olham no espelho, se penteiam...”, às vezes faria bem se olharem no espelho e rirem de si mesmos. “Riam de vocês mesmos. Isso vai lhes fazer bem.”
Na mesma linha, o papa dialoga com o mexicano Jorge Moreno falando daqueles sacerdotes “bons”, mas que “têm uma falta de desenvolvimento da personalidade, uma falta de educação”. “Você encontra um sacerdote assim, por exemplo um sacerdote triste, mas que humanamente é incapaz de chorar; ou que é incapaz – este critério me foi dado uma vez por um sacerdote, quando eu era estudante – para brincar com as crianças... Este é um critério de maturidade, de integridade”, observa o papa.
Quando se encontra um padre “incapaz de se alegrar, até mesmo de passar tempo com outros sacerdotes amigos”, falta alguma coisa aí, afirma, “falta a formação humana”, falta “a parte humana”. E “tantos sacerdotes sofrem porque não são capazes de expressar aquilo que trazem dentro de si: foram bloqueados, cortaram da sua personalidade coisas muito boas, capacidades grandes, e não cresceram nisso”.
Por outro lado, é importante salvaguardar “a capacidade social, a sociabilidade, a capacidade de respeitar os outros, até mesmo aqueles que pensam de outro modo, a capacidade de se alegrar com os amigos, de fazer um bom jogo de futebol... Dessas coisas sobre as quais [alguém pensa]: ‘Não, mas um sacerdote não pode...’. Tantas capacidades humanas que não se desenvolvem...”.
Infelizmente, observa Francisco, “em alguns lugares, em alguns tempos, a capacidade humana de se inserir socialmente não foi ajudada na formação”. Alguns presbíteros foram “educados mal”: “Você deve se comportar assim, rigidamente”, e assim por diante.
“Isso faz mal à capacidade humana da espontaneidade.” É verdade que ela “pode levar a algo ruim, mas este é um perigo que você deve discernir e se defender dele. Mas uma pessoa normal – digo normal, humana – que vai visitar um doente e o escuta, e pega em sua mão, em silêncio: isso é humano”.
Humano também é “ser pais”, não padrastos. Humano é saber “acariciar bem”. “Sintam bem isto”, diz Bergoglio: “Se vocês não sabem acariciar bem como pais e como irmãos, é possível que o diabo leve vocês a pagarem para acariciar. Estejam atentos”.
A partir daí, mais uma vez, a recomendação a não se tornarem “funcionários do sagrado”, “empregados de Deus” que são “bons, fazem o seu trabalho”, mas “não sabem dar vida”. “Quantos dentre nós são solteirões!”, exclama Francisco, “que, quando você os ouve pregar ou os ouve falar, tem vontade de perguntar: ‘Mas, me diga, o que você tomou no café da manhã hoje? Café com leite ou vinagre?’”.
Respondendo ao diácono Luigi, o papa aborda ainda o tema da “diocesanidade” entendida como a relação com o bispo, que nem sempre pode ser fácil, mas que é basilar, porque, quando ela está ausente, “falta a relação com o pai”.
“Cada um de vocês deve se perguntar: como é a minha relação com o bispo? ‘Mas ele é mau, é neurótico...’ Como é a minha relação com o meu pai, que é mau e neurótico? O que você aconselharia a um rapaz que vem e lhe diz que seu pai está na prisão, por exemplo? Ou que o pai bate na mãe – o bispo que bate na Igreja. Vocês dariam um conselho: ‘Reze pelo seu pai, aproxime-se do seu pai’, mas nunca diriam: ‘Apague o seu pai da sua vida’”, explica Francisco.
Há também uma advertência sobre a “fofoca”, que “é a lepra do presbítero” e é algo muito diferente do falar com lealdade e franqueza. “Você se permite dizer tudo o que lhe vem à mente” no corpo presbiteral “ou aprendeu a ter censuras para não causar uma má impressão?”, pergunta o pontífice.
Quando “fala alguém que você não gosta, você o julga imediatamente ou tenta escutar bem e entender o que ele disse?”. Ou, talvez, depois do encontro, você sai com dois ou três amigos dizendo: “Mas veja o que aquele estúpido disse, o que aquele e aquele outro disseram...”.
Atenção, portanto, para salvaguardar a própria relação com o pai (o bispo) e com os irmãos (os outros presbíteros). Disso depende também a futura relação com os fiéis.
Por último, o Papa Francisco fala de “fraquezas”, sexuais e relacionadas com a comunicação virtual. O tema é levantado pela pergunta do Pe. Michael Aguilar, das Filipinas (foi simpática a conversa entre o papa e o sacerdote, que disse: “Eu venho do continente da Ásia, onde Jesus nasceu, onde a Igreja nasceu”, e Francisco, que respondeu: “Eu não entendi bem: Jesus nasceu em Manila?”).
Francisco explica que “a formação permanente nasce um pouco da experiência da própria fraqueza. Não lhe dão um certificado de santidade perpétua quando lhe ordenam: mandam você para lá, para trabalhar, e que Deus lhe ajude e que os corvos não lhe comam”.
Por isso, é preciso estar “conscientes” da própria fraqueza, especialmente nesta cultura contemporânea hipertecnologizada que “entra na alma”. “Como eu entro no meu celular, nas minhas comunicações virtuais? Vocês sabem do que eu estou falando: o que eu procuro olhar, por curiosidade? E vocês sabem disso”, pergunta Bergoglio.
De mãos dadas com os riscos da web, caminha “a atração do poder e das riquezas”. É sempre assim, há “três degraus”, como ensinava Santo Inácio: “O primeiro é a riqueza, o segundo é a vaidade, e o terceiro é a soberba, isto é, o poder”. E o diabo se enfia por um deles.
O papa também fala do “desafio do celibato”. “Estejam preparados porque: ‘Se eu tivesse conhecido esta mulher antes de me ordenar!’ Em espanhol se diz: ‘tarde piaste’, isto é, ‘você percebeu tarde’. Mas vocês são homens normais, vocês têm o desejo de ter uma mulher, para amar. E quando viesse essa possibilidade, como vocês reagiriam? Vocês têm o desejo de gerar filhos? Não só espirituais, mas de outro tipo? Isso é algo que temos na nossa natureza, dada por Deus. E, depois, a comodidade no próprio ministério: ‘Mas, se for um pouco mais cômodo, não faça com tanto esforço...’”.
Todas essas coisas, agora no tempo dos estudos, “são fáceis de resolver, mas, depois, na vida, vocês estarão sozinhos, e essas coisas existirão. Algumas são más, outras boas; mas existirão”, adverte o papa. Por isso, ele convida a uma sólida “formação permanente” baseada em “quatro pilares”: espiritual, intelectual, apostólico e comunitário. Essa formação é necessária não só “para resolver as tentações, mas também para estar um pouco na atualidade, no desenvolvimento da pastoral, da teologia, da vida da Igreja”.
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Papa aos padres: o celibato é um desafio. Cuidado com o que se olha na internet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU