12 Janeiro 2018
O valor da solidariedade, não só como “reparadora”, mas também como aquilo que confere qualidade ao laço social, impôs-se progressivamente na história do Ocidente e, marcadamente, a partir da Revolução Francesa, desembocando, no início do século XX, nos mecanismos redistributivos do imposto de renda.
Por que esse valor está em crise hoje? Pierre Rosanvallon, diretor da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris e titular da cátedra de História Moderna e Contemporânea no Collège de France, se faz essa pergunta, em um artigo que será publicado na próxima edição de Vita e Pensiero, a revista da Universidade Católica do Sagrado Coração, de Milão. O jornal La Stampa, 10-01-2018, publicou um trecho do artigo. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Retornamos à velha questão dos comportamentos, com uma nova tendência de fazer com que a solidariedade dependa de uma análise dos comportamentos alheios. A categoria de risco não aparece mais simplesmente como um dado objetivo, mas os comportamentos são distinguidos por trás dela: por trás do doente, vê-se também o fumante, ou, por trás do acidentado, o mau motorista. Portanto, observam-se e discernem-se comportamentos que podem, eventualmente, ser julgados, discutidos ou criticados.
Mas há também um sentimento totalmente novo nas nossas sociedades: a impressão de que apenas a homogeneidade pode fundar a solidariedade. A heterogeneidade da sociedade faz com que, nela, já prospere a desconfiança. Assiste-se à multiplicação dos encurvamentos, dos separatismos locais e nacionais. Como se o regresso das instituições de solidariedade e o regresso do ciclo redistributivo previdenciário estivessem ligados, no fim, à percepção de uma certa homogeneidade nas sociedades industriais.
O caso mais exemplar é o dos países escandinavos. Esses países, antigamente, eram os defensores do Estado de bem-estar e da redistribuição, mas também os defensores da homogeneidade e do conformismo cultural graças a uma cultura religiosa muito compacta para cada país e graças à origem étnica dos seus habitantes.
O trauma da imigração introduziu formas de diversidade que dilaceraram radicalmente o sentimento de solidariedade, porque ele estava ancorado em uma visão de homogeneidade. Tal relação entre declínio da homogeneidade, advento de uma sociedade da diversidade e fim do ciclo redistributivo previdenciário é fundamental e deve ser levado em consideração.
Um segundo elemento é a transformação do modo de produção. O modo de produção industrial clássico produzia efeitos de agregação. O trabalho na linha de montagem tomava indivíduos diferentes e os tornava semelhantes na linha de produção. Utilizava o que havia de comum entre eles, isto é, apenas a força de trabalho. Todo o modo de produção industrial produzia, assim, uma forma de homogeneidade e de agregação social.
Ao contrário, o modo de produção atual não mobiliza no indivíduo aquilo que ele tem em comum com os outros, mas aquilo que há de particular nele. O capitalismo moderno precisa de disponibilidade, de inventividade individual, da possibilidade de encontrar uma solução imediata a um pequeno problema de fabricação, e não simplesmente da capacidade de seguir, de modo repetitivo e sem qualquer iniciativa, um processo de produção. [...]
Por fim, há um terceiro elemento explicativo, ligado aos dois anteriores, dessa crise do modelo redistributivo. É, para dizer sem rodeios, uma crise moral da solidariedade. Não se pode falar de solidariedade hoje se não olharmos na cara do fato fundamental de uma nova forma de consenso à desigualdade nas nossas sociedades.
Enquanto, durante um longo tempo, no passado, no rastro de Tocqueville, impôs-se a ideia da igualdade como um caminho silencioso, mas contínuo, na história, hoje constatamos uma grande divergência sobre tal questão. Com efeito, coexistem um sentimento fortalecido da desigualdade em certos campos e um sentimento atenuado da igualdade em outros.
A igualdade redistributiva recua, enquanto a igualdade de status, de reconhecimento ou de “respeito” – para usar palavras muito difundidas hoje – progride. Uma falta de respeito (ou de um respeito igual) já parece ser absolutamente insuportável nas nossas sociedades, enquanto certas desigualdades de renda, ao contrário, são muito mais facilmente toleradas. Diante disso, assiste-se, acima de tudo, ao desenvolvimento de perversões da solidariedade.
Eu defino como “compaixão de substituição” a forma de perversão da solidariedade que veio dos Estados Unidos. Assim como a compaixão foi uma palavra importante no vocabulário da filosofia moral dos séculos XVII e XVIII, assim também ela mudou totalmente de sentido quando foi retomada, depois, pelos conservadores estadunidenses.
Um sociólogo estadunidense, Marvin Olasky, publicou diversas obras sobre a american compassion, com prefácios de George W. Bush. A sua mensagem era que, diante de um Welfare State assistencial que custava muito caro, era necessário desinstitucionalizar a solidariedade e retornar, pouco à pouco, à caridade individual.
Procedendo em sentido contrário a mecanismos muito pesados, era preciso favorecer o senso individual da proximidade. É evidente que o senso individual da proximidade é fundamental. Não há solidariedade sem a ideia, bem explicada por Paul Ricoeur, de que estar perto de alguém não significa simplesmente ser o seu sócio, mas também ser e se tornar o seu próximo. Mas a visão do conservadorismo compassivo é realmente uma verdadeira perversão da ideia da atenção aos outros, porque preconiza a destruição metódica das instituições da solidariedade.
A segunda perversão da solidariedade é aquilo que podemos chamar de “solidariedade de exclusão”. A Europa, em particular, conheceu tais formas de solidariedade no fim do século XIX. Enquanto a primeira globalização produzia todos os seus efeitos a partir dos anos 1885-1886, por toda a Europa desenvolveram-se formas de xenofobia e de nacionalismo.
Diante do crescimento das desigualdades naquela época, a resposta não foi a solidariedade, mas sim a busca de bodes expiatórios. Pela primeira vez na história, desenvolveu-se aquilo que chamamos de nacionalismo. A nação, que era uma palavra simbólica da construção de uma proximidade, de uma solidariedade, de uma igualdade interna, a partir de então, definiu-se unicamente por aquilo que a opunha a outros. Uma nação definida pela rejeição e não mais pela solidariedade: eis, na prática, a invenção do nacionalismo.
Diante de tais perversões, quais podem ser as perspectivas futuras? Vou indicar algumas. Em primeiro lugar, no capitalismo de novo tipo em que já vivemos, é preciso dar um novo sentido aumentado à noção de atenção à particularidade. Não se pode mais gerir a solidariedade apenas com regras gerais, porque os incidentes da vida ou as situações de dificuldade são cada vez mais particulares. Na era do capitalismo da particularidade, é preciso dar um novo sentido à atenção às singularidades.
Uma consequência institucional muito importante é a necessidade de novas relações de combinação entre mundo público e mundo associativo – um mundo público assimilado ao mundo da regra, embora este último também esteja mudando.
Não se trata mais simplesmente de enviar cheques de subsídios de desemprego e de verificar situações jurídicas, mas também de tentar fazer com que as pessoas em situações de falta de emprego sejam acompanhadas por conselheiros individuais. [...]
Outra reflexão a ser retomada é a das taxas de imposto e da legitimidade de uma sociedade da redistribuição. De fato, se ainda existem formas de redistribuição, estas últimas são cada vez mais consideradas ilegítimas e não simplesmente pelos proprietários mais ricos.
A questão é fundamental, mas, ao mesmo tempo, não devemos esquecer que a revolução da redistribuição no início do século XX só foi possível pelas revoluções de ordem sociológica e política. Portanto, não podemos reconstruir hoje instituições solidárias sem uma sociedade que não seja, acima de tudo, marcada pelos imperativos da cidadania. Em outras palavras, não podemos formar uma sociedade mais solidária se não reconstruirmos um tecido democrático.
O objetivo da solidariedade não é simplesmente de ordem material, mas continua sendo sempre o de formar uma sociedade. Talvez porque as instituições eram poderosas, em certos períodos, acabou-se considerando que o verdadeiro sinal da solidariedade eram os mecanismos de subsídio. Mas não!
O sinal da solidariedade é a qualidade da sociedade. Restaurar um sentido forte à solidariedade, restituindo-lhe, ao mesmo tempo, legitimidade e uma base econômica acrescida, passa pelo imperativo de reconstruir uma cidadania e um tecido democrático.
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Aonde foi parar a solidariedade? Artigo de Pierre Rosanvallon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU