02 Dezembro 2017
Quatro sobrinhos de Vicente Cañas SJ viajaram da Espanha para o Brasil para participar do julgamento do assassinato de seu tio, que ocorreu nos dias 29 e 30-11-2017, visitar o túmulo dele e conhecer dois dos povoados indígenas com os quais ele trabalhou, os Mÿky e os Enawenê-nawê. Angelita, José Ángel, María e Rosa são primos, filhos de três irmãs e um irmão de Kiwxi, nome Mÿky dado a Vicente pelos indígenas.
Dos dez irmãos, Vicente foi o primeiro que faleceu, assassinado, aos 48 anos. Hoje, cinco de seus irmãos seguem vivos, todos eles já bem idosos. A recordação de Vicente e de toda sua obra segue muito presente e muito viva em toda a família. Eles vieram para cumprir o sonho de seus pais, despedir-se de seu tio diante de seu túmulo.
A pedido da IHU On-Line, o padre e antropólogo Aloir Pacini conversou com os sobrinhos de Ir. Vicente Cãnas, que responderam coletivamente as questões enviadas. A entrevista foi feita por e-mail. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
IHU On-Line - Que recordações vocês têm de seu tio Vicente Cañas?
José Ángel, que esteve com ele por quinze anos, lembra de que maneira ele se relacionava através de cartas familiares e também às vezes por correspondência pessoal. "Era algo muito pontual, porque uma carta era um elemento muito limitado", diz ele. "Quando vinha para a Espanha, ele ficava uma temporada. Quando estava em minha casa, tínhamos longas conversas, saíamos às quatro da tarde e voltávamos às dez da noite. Contava-me suas experiências, mas matizava tudo, porque para compreender a problemática necessitava que você fosse introduzido no assunto. Umas das conversas mais fortes que tivemos foi sobre a Teologia da Libertação.
Eu lhe dizia que a Igreja era um sistema muito conservador e arcaico, e necessitava uma reestruturação. Perguntava-lhe por que motivos ele não passava à luta armada, mas ele dizia que essa não era uma solução, pois o caminho para as mudanças nunca pode transcorrer pela violência". Então, José Ángel ficava agitado por dentro porque ele lhes contava que "enquanto houve ditadura, os militares rodeavam os povoados e, ao amanhecer, metralhavam a todos, e que o ditador dizia que no ano 2000 não haveria mais nenhum índio no Brasil".
Se em suas recordações há alguma coisa que coincide é a sua bondade. "Era amável, dava tudo de si", pontua Angelita.
Rosa consegue recordar apenas uma de suas viagens à Madri, quando ela tinha 10 anos. Eles foram com ele ao seu povoado natal, à Alborea, em Albacete. Logo, retornaram outras vezes a Madrid: "Ele nos contava coisas que os índios faziam, e nós chegamos a deixar ele saturado com nossas perguntas. Familiares e vizinhos vinham vê-lo e escutá-lo, e embora fossem conversas de adultos, nós, as crianças, também ficávamos junto a eles, pois ele nos atraía como um imã, nos hipnotizava com as coisas que contava. E nós fazíamos muitas perguntas a ele: Por que eles são mortos? Como eles os matam? Queríamos apenas estar com ele".
Angelita recorda como ele contava sobre os modos de vida dos índios, como as mulheres trabalhavam a mandioca e os homens saíam para pescar.
Todos também têm claro que, para Vicente, seu lugar no mundo era a Amazônia, junto a "seus índios", como ele os chamava.
A primeira recordação de María, acerca de seu tio Vicente, é uma lembrança de medo: "Eu tinha 3 ou 4 anos e lembro-me de que me assustei e me escondi debaixo das pernas de meu pai. A segunda vez que veio já não me dava mais medo e lembro como saímos todos zunindo para o aeroporto".
Para María, seu tio Vicente estava muito presente: "Sempre nos falaram dele, em minha casa todos lhe escrevíamos e ele nos respondia a todos. Tenho guardada a carta onde ele dava a 'boa hora' a meus pais por meu nascimento. Dizia: “Que alegria ter uma filha, depois de 3 filhos...”. E em outra carta, mais tarde, eu dizia-lhe que tentaria aprender a escrever logo para escrever-lhe coisas. Tenho todas as suas cartas guardadas".
Algo que Angelita tem nítido é que seu tio "amava aqueles para os quais trabalhava e os defendia em tudo o que podia e muito mais, porque eles estavam muito indefesos".
Na imagem os sobrinhos de Vicente Cãnas com Thomas Lisbôa, que encontrou o corpo de Kiwxi.
(Foto: Guilherme Cavalli/ CIMI)
IHU On-Line - Quando ele regressava à Espanha e como se relacionavam com ele enquanto vivia no Brasil?
Ele veio somente duas vezes à Espanha. Tinha permissão para vir a cada cinco anos. Quando o mataram, já fazia oito anos que ele não havia regressado. As duas vezes que veio passou uns dois meses e visitou toda a família que vivia em distintas cidades. Também dava conferências sobre seu trabalho.
José Ángel lembra que aos seus 23 anos deixava Vicente em seu quarto com o toca-discos tocando "minha música, e logo saíamos por aí. Pareciam-lhe interessantes algumas das letras, embora dissesse que eram negativas, mas... O rock and roll não lhe desagradava!"
Angelita lembra que uma vez ele veio visitar um companheiro seu, o Pe. Manteca - ela crê que esse era seu nome. E José Ángel acrescenta que a última vez que veio disse que seu mundo estava aqui, no Brasil. A mãe de Rosa insistia para que ele ficasse: a última vez que lhe viu, despedindo-se no aeroporto, sabendo das ameaças que sofria, advertia-o sobre o perigo de morte, com os índios. María pensou: "Não o verei nunca mais". Porque ele, embora não dissesse, era consciente dos riscos que corria.
IHU On-Line - Como a família percebia o trabalho que ele realizava no Brasil, junto às comunidades indígenas?
Sabíamos que seu trabalho era muito bom, de muito sacrifício. Ele era de uma imensa bondade e de uma total entrega. A família está muito orgulhosa dele, sempre esteve. Era de uma bondade infinita.
Desde crianças, falava-se muito de Vicente. Muito frequentemente falávamos dele, e do tema indígena também. Maria tem bem claro que "conhecíamos o tema indigenista desde pequenos, sabíamos da problemática, que queriam matá-lo, tirar suas terras... Nascemos com isto. Nos inculcaram desde sempre".
De sua bondade já havia dado mostras desde pequeno e de jovem. Entre os primos comentam-se algumas anedotas sobre Vicente, que seus pais lhes contaram, como quando houve uma inundação em Valência, em 1957. Vicente esteve dois dias desaparecido porque foi ao bairro para auxiliar com a retirada dos mortos. Além disso, aos domingos ia aos hospitais para ajudar, e também ao Cottolengo. Ele tinha também uma fé muito forte.
IHU On-Line - Como a família recebeu a notícia do assassinato de Vicente?
Angelita soube pelo jornal que haviam assassinado Vicente: "Tenho-o guardado. Olhando o jornal, meu marido Manolo me disse: 'Olha! Mataram teu tio!' Então liguei para o jornal, mas eles não sabiam de nada. Lembro-me daquilo como se fosse hoje. Naquele momento, queríamos vir para o Brasil, mas não nos foi ofertada a oportunidade".
Maria ficou sabendo pela tia Plácida. Os jesuítas ligaram para ela e contaram que ele havia falecido, mas não que o haviam matado: "Com o passar dos dias, o jornal divulgou que ele havia sido assassinado".
A vó, a mãe de Vicente, morreu sem saber que ele havia falecido, porque decidiram não contar a ela. Sempre perguntava se sabíamos de Vicente. Ela suspeitava, porque fazia muitos anos que ele não aparecia. Quando María, a mãe de Rosa, ficou sabendo da notícia por uma vizinha que havia escutado no rádio, desligou a televisão de sua mãe para que ela não se inteirasse. A avó morreu dois anos depois de Vicente, sem saber de seu paradeiro.
José Ángel lamenta muito que "quando soubemos, ele já estava enterrado. Teria sido melhor que tivéssemos a notícia antes, diretamente pelos jesuítas, não pela imprensa".
IHU On-Line - Que expectativas vocês têm frente ao julgamento?
Diante desta pergunta, os sobrinhos soltam uma expiração bem grande, um "uff..." bem longo. Rosa é sincera: "Gostaria muito que fosse feita justiça para com ele e para com o que ele defendia, pela razão que ele deu sua vida. Mataram ele, mas o problema segue acontecendo. Ele conseguiu frear a visão de uma concepção diferente sobre como deveria ser administrado o tratamento com esses povos, mantendo sua cultura e visando inculturar-se com ele. Não ia convencê-los de Jesus Cristo, mas manteria seu sistema de vida, que permanecia vivo há milhares de anos.
Todos estão de acordo que depois de 30 anos, há muitos interesses. "Nossas expectativas não coincidem com o que desejaríamos, que seu legado, e os de outros como ele, se mantivesse. Observamos que a problemática continua sendo a mesma, e em alguns aspectos, muito mais explícita".
IHU On-Line - Desejam acrescentar algo?
Esta viagem é muito emotiva para todos nós. É muito importante visitar sua lápide; nossos pais queriam estar aqui, mas eles não tiveram essa oportunidade. Viemos para cumprir o sonho de nossos pais.
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"Viemos para cumprir o sonho de nossos pais". Entrevista com os sobrinhos de Vicente Cañas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU