03 Novembro 2017
Reproduzimos a seguir a entrevista com a professora Emília Viotti da Costa, publicada na edição 147 da revista IHU On-Line, por ocasião da sua morte em 02-11-2017.
O último IHU Ideias do semestre será realizado na próxima quinta-feira, dia 30 de junho. O tema Sucessos e fracassos do Mercado Comum Centro-Americano: dilemas do neoliberalismo será apresentado pela Prof.ª Dr.ª Emília Viotti da Costa, da USP. O evento acontece das 17h30min às 19h, na sala 1G119, junto ao IHU.
Emília Viotti é graduada e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP), onde também obteve livre-docência. Recebeu o título de professora emérita da USP em 1999. É autora de diversos livros, entre os quais citamos: Da Senzala à Colônia. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998; Da Monarquia à República. 7. ed. São Paulo: Unesp, 1999; Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: Iejê, 2001; e A Abolição. 7.ed. São Paulo: Global, 2001. O livro Da Monarquia à República, de Emília Viotti da Costa, foi apresentado no II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, em 28 de outubro de 2004, pela Prof.ª Dr.ª Eloisa Capovilla da Luz Ramos, da Unisinos, que elaborou um artigo sobre a obra, publicado no IHU On-Line número 120, de 25 de outubro de 2004. Após o IHU Ideias, a professora ministrará a conferência magistral do III Ciclo de Estudos sobre o Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Quais os aspectos centrais que apontaria hoje como sucessos e fracassos do Mercado Comum Centro-Americano? Quais são os principais desafios desse mercado?
Emília Viotti da Costa — O Mercado Comum Centro-Americano não é uma tentativa recente. Sua iniciativa data dos anos 1950, quando se cogitou da sua criação. Vencidas as dificuldades iniciais que implicavam na criação de várias instituições e acordos entre os países que vieram a constituí-lo, o mercado comum começou parcialmente a funcionar já nos anos 1960. O modelo de desenvolvimento adotado era o proposto pela Cepal. Os resultados foram imediatos. A economia, até então fundamentada na exportação de uns poucos produtos agrícolas ou derivados da indústria extrativa, começou a se diversificar e, ao mesmo tempo, aumentou visivelmente a circulação inter-regional de produtos. Um dos beneficiados foi o pequeno produtor que se aproveitou da expansão do mercado interno. Os capitais regionais também foram favorecidos assim como os estrangeiros. No final da década, no entanto, já se observavam os primeiros sinais que indicavam dificuldades crescentes para seu funcionamento. Alguns países, cujas indústrias tiveram um grande impulso -, a Guatemala, por exemplo, pareciam colher todos os benefícios, enquanto outros, Honduras, por exemplo, registravam resultados medíocres. O desenvolvimento desigual causava conflitos entre os países e entre as classes sociais. A tentativa desenvolvimentista gerava inflação e o aumento da dívida externa. Em 1973, a crise do petróleo veio agravar a situação. O Mercado Comum Centro-Americano, depois de uma breve fase de sucesso, praticamente desapareceu. As agitações políticas da década 1970: revoluções na Nicarágua, Guatemala, e Salvador, abalaram profundamente a economia regional que só tomou novo impulso a partir dos anos 1990, mas agora não mais obedecendo à política desenvolvimentista que prevalecera nos anos 1960. Hoje o Mercado Comum Centro-Americano tenta se organizar, com base nas políticas neoliberais voltadas para a exportação. A nova orientação cria novos problemas e novos desafios. É desse período que devemos falar na palestra na Unisinos.
IHU On-Line — Quais as perspectivas desse mercado para os próximos anos e quais suas possíveis relações com os países do Sul?
Emília Viotti da Costa — A pressão norte-americana para a criação na América Central de um acordo semelhante ao que tem com o México (Nafta), gera novos desafios para o Mercado Comum Centro-Americano, principalmente a dificuldade de conciliar políticas que beneficiam o setor exportador, favorecido pela nova orientação, com os interesses do mercado interno. Igualmente importante é como resolver o impacto negativo das políticas neoliberais nas classes subalternas. As repercussões na sociedade do tipo de desenvolvimento que está ocorrendo hoje na América Central, onde se impõe uma reestruturação cujas diretrizes provém do Banco Mundial e do FMI, prenunciam, de certa forma, os problemas que o Mercosul poderá vir a enfrentar proximamente, daí sua relevância para nós.
IHU On-Line — Em Da Senzala à Colônia, a senhora refere-se ao significado limitado da abolição. O que significou, de fato, a abolição nesse momento da história brasileira?
Emília Viotti da Costa — Em Da Senzala à Colônia, tentei mostrar que a abolição veio quando já estava praticamente abolida a escravidão devido a transformações ocorridas na sociedade brasileira ao longo do século XIX: a suspensão do tráfico de escravos. na década dos cinquenta; as transformações no Estado, que passou a ser mais capaz de impedir o contrabando; as alterações nos meios de transporte e nas vias de comunicação, devido à construção de estradas de ferro que vieram substituir o carro de boi e as mulas, o que liberou mão-de-obra escrava e melhorou a qualidade e a quantidade dos produtos exportados, permitindo, também, a especialização das fazendas por causa da maior facilidade de abastecimento; os progressos tecnológicos no processamento dos produtos que também tiveram o efeito de liberar mão-de-obra, aumentar a produtividade e a qualidade do produto; o crescimento da população livre e diminuição da população escrava; o encarecimento do preço de escravos; deslocamento destes para as áreas cafeeiras e a diminuição do número de escravos em outras regiões, e a expansão de setores da população menos dependentes do trabalho escravo, todas essas alterações ocorreram paralelamente a mudanças ideológicas com o enfraquecimento do pensamento escravista e sua progressiva desmoralização, acelerada pela extinção da escravidão em outros países da América. As leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, embora medidas paliativas, pairaram como ameaça sobre a propriedade escrava. A entrada de emigrantes e seu emprego na lavoura de café, a mais necessitada de braços, abriu possibilidades novas nas áreas cafeeiras para a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Finalmente, a campanha abolicionista, que cresceu ao longo do século, em virtude das transformações mencionadas, e a revolta dos escravos cuja resistência aumentou à medida que a opinião pública passou a dar-lhes maior apoio, chegando, na década dos oitenta, a abandonar as lavouras em massa, e a decisão do exército de não perseguir escravos fugidos, deram o golpe de morte na escravidão. A abolição abandonou os escravos à sua própria sorte. A maioria dos abolicionistas, mais interessados em libertar os brancos do fardo da escravidão do que integrar os ex-escravos na sociedade dos homens livres, não se interessou em atender a população liberta. Os preconceitos contra os negros, herança da sociedade escravista, continuaram a dificultar a integração do negro. Nada foi feito em benefício dos libertos.
IHU On-Line — Que sinais da presença da escravidão e de como aconteceu a abolição podem ser constatados no Brasil contemporâneo?
Emília Viotti da Costa — O preconceito e a discriminação contra o negro, o descaso pela educação do povo, a violência nas relações humanas, a arbitrariedade e autoritarismo das classes dominantes são heranças da escravidão. Os dados estatísticos confirmam a discriminação contra os negros na sociedade. Se, no passado, tomaram-se algumas medidas visando a eliminar o preconceito contra os negros, só recentemente foram adotadas algumas medidas mais concretas tendentes a melhorar a situação do negro, como as quotas nas universidades a fim de aumentar o número de negros nos cursos superiores, tal como fora feito nos Estados Unidos. Evidentemente, essas medidas são apenas paliativas. O movimento negro tem tentado lidar com os problemas que afetam a população negra. No Brasil, onde a miséria do povo é avassaladora, há muito a fazer tanto pelos pretos como pelos brancos, pois assim como existe um problema específico do negro, há também o problema mais universal da falta de recursos para os pobres em geral.
IHU On-Line — Como se refletem esses processos politicamente? Por onde passa a emancipação política do Brasil no presente?
Emília Viotti da Costa — A democratização do sistema político deve ser o alvo a ser alcançado. Para isso é urgente que se constitua disciplina partidária. Não é possível que se vote num candidato filiado a um partido e que, pouco tempo depois, ele decida mudar de partido. Isso precisa acabar. Quem discorda do partido que o elegeu deve sair e deixar que o suplente do mesmo partido o substitua. É preciso acabar também com o sistema de clientela e patronagem que marcou negativamente a nossa história republicana e tem dado tanta margem à corrupção. É preciso aperfeiçoar o sistema eleitoral. Temos eleições e supostamente um governo representativo, mas o eleitor desconhece o desempenho do seu representante no congresso. A situação está começando a mudar. O povo já começa a ser informado do que fazem seus representantes. Para isso contribuem programas como os da TV Senado que divulgam as atividades dos senadores. Isso já é um pequeno passo, mas insuficiente, na medida em que o povo não tem tempo para assistir a esses programas. Seria necessário que fossem distribuídos, mensalmente, folhetos, indicando leis aprovadas, votação de cada partido e de cada deputado e senador, seguidas de explicação do significado das medidas aprovadas. Um povo mal informado não tem condições para se fazer representar. É preciso melhorar a educação pública em todos os níveis.
Multiplicar os espaços públicos onde se realizarão cursos de divulgação, como os organizados na Biblioteca Municipal de São Paulo na gestão Marta Suplicy. A Internet também tem contribuído para a difusão de conhecimento pondo à disposição de todos, gratuitamente, uma série de obras, como, por exemplo, as de romancistas brasileiros. Infelizmente, no entanto, só tem acesso a essas obras quem possui computador, e estes ainda são bastante caros. A universidade pública pela televisão é outra opção. A utilização pela comunidade, do espaço das escolas públicas, quando este não está sendo ocupado, a fim de promover atividades extracurriculares, tais como o ensino de artes e práticas esportivas também é uma possibilidade de melhoria do ensino. Algumas dessas iniciativas estão sendo experimentadas, nos últimos anos no Brasil, com maior ou menor sucesso mas é preciso continuá-las e ampliá-las. Há, no entanto, muitas forças contrárias que pretendem, cada vez mais, privatizar o espaço público e transformar cultura em mercadoria, o que tem como resultado a exclusão da maioria do povo que não tem recursos para pagar os preços exorbitantes cobradas pelas iniciativas criadas com o propósito de lucro. Há muita coisa a fazer no País e muita luta política pela frente para realizá-las.
IHU On-Line — Como a senhora vê a atual crise do governo federal? Quais as dimensões e consequências nas diferentes ordens da vida do País que essa crise pode tomar?
Emília Viotti da Costa — Acho que a crise é, sobretudo, fabricada para desestabilizar o governo. Não quero com isso dizer que não haja motivos para investigações de qualquer irregularidade que possa ocorrer ou tenha ocorrido. Entretanto, a proporção que a chamada crise está atingindo me parece anormal, tendo em vista o que sucedeu em governos anteriores, quando irregularidades foram cometidas, algumas investigadas, outras não, mas os escândalos nunca atingiram essa proporção. A virulência faz lembrar os ataques a Vargas, Juscelino, e Goulart, por isso a impressão que se tem é que há grupos interessados em desmoralizar o governo. Investigue-se o que deva ser investigado. Não há necessidade para tanto alarde. A leviandade com que se fazem acusações, a falta de decoro no Parlamento, as atitudes grotescas na CPI, só servem para desmoralizar a democracia. O povo já está farto de tudo isso e acabará convencido (se já não está) de que todos os políticos são corruptos. Governos ditatoriais sempre nascem de situações semelhantes. É preciso indagar a quem interessa essa “crise”.
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Dilemas no neoliberalismo. Entrevista especial com Emília Viotti da Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU