16 Outubro 2017
"A cassação do patronato é apenas o primeiro movimento de um jogo mais demorado e mais profundo. Começa-se por destruir o ícone situado no ponto mais alto do culto, depois se condenam as práticas (não como heréticas, mas como 'ineficazes', um termo mais moderno para abrigar os Tribunais do Santo Ofício Pedagógico), alterando os currículos, suprimindo disciplinas, modificando o perfil da formação dos professores, dirigindo a escolha dos livros didáticos (que filão!), tudo com assessoramento privado para os municípios que aderirem à “Revolução Pedagógica Pós-Freireana” e, em seguida, se perseguem os oficiantes resistentes. Se tudo der certo, os Centros de Educação das Universidades Públicas (com forte presença das ideias de Freire) deverão desaparecer e o que restar será entregue a grandes empresas educacionais (nacionais e estrangeiras)".
A afirmação é de Flávio Brayner, professor da Universidade Federal de Pernambuco.
Ganhei a reputação – aliás, injusta!- de ser um “antipaulofreireano” quando, na verdade, eu considero Freire um humanista, elaborador de ideias pedagógicas, algumas datadas, outras questionáveis, outras válidas e que, acima de tudo, inscreveu seu nome, honradamente, no rol das grandes personalidades educativas do século XX. Meu desentendimento é com alguns de seus epígonos e, sobretudo, com a esterilização de suas ideias mais vivas em decorrência da institucionalização das práticas de “educação popular” e da mitificação de que ele pessoalmente foi alvo, transformando sua pedagogia naquilo que chamei de uma “teologia laica”.
Mas eis que diante da ameaça de cassação do título de Patrono da Educação Nacional de Paulo Freire, alguns colegas professores pediram-me para escrever algo sobre este verdadeiro acinte contra a memória educativa do país. Esta solicitação depõe, antes de tudo, a meu favor: há, pelo menos, quem veja nos meus escritos uma forma de manter viva a chama crítica a que a obra de Freire tanto nos incitou.
No entanto, o que vou fazer aqui não é uma defesa apaixonada da obra do educador, nem tampouco lançar minha fúria crítica contra tal provocação, o que teria pouco valor argumentativo. Opto por outra angulação: tentar desvendar o que se esconde nesta iniciativa, pois desconfio que a proposta de cassação do Patronato é apenas a ponta visível (e mais apelativa) de um projeto de calado bem mais profundo.
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Acho que nunca passou pela cabeça do mais radical esquerdista brasileiro ou do mais raivoso antimilitarista, propor a cassação do título de Patrono do Exército concedido ao Duque de Caxias e outorgado em 1962 (por João Goulart!), mesmo que, após a redemocratização, inúmeras monografias tenham mostrado o papel cruelmente repressor que ele exerceu em diversos movimentos separatistas (e também no genocídio praticado na Guerra do Paraguai). Pois não é que a deputada Stefanny Papaiano, com o apoio do movimento “Escola Sem... Juízo” sob o argumento de que “os resultados são catastróficos (...) e as avaliações internacionais mostraram que é um fracasso retumbante”, vem propor a cassação daquele título, concedido a Freire por unanimidade pelo Congresso em 2012, por sugestão de Luiza Erundina!
Não me surpreende que Paulo Freire seja mais uma vez acusado pela direita de ser responsável pelo “fracasso da educação nacional”, atribuindo-lhe (e à sua pedagogia) um poder fantasioso. Sejamos honestos: as orientações pedagógicas das principais instituições públicas e privadas brasileiras não são freireanas e, portanto, as avaliações internacionais não incidem sobre elas! Mas, eu gostaria muito que Freire fosse o único responsável por nossa tragédia educativa, desde modo teríamos uma solução imediata para nossos fracassos: queimem-se os livros de Freire, destitua-se seu Patronato, que a casa onde nasceu seja arrasada e salgada, para que ali nem a erva cresça mais, seus bens e de seus descendentes confiscados, sua obra queimada em praça pública, seu nome amaldiçoado e que seu corpo seja exumado, “esquartejado” e exposto pelas ruas do mundo, onde o educador exerceu suas infames práticas pedagógicas. Seus detratores, ansiosos para promover autos-de-fé e, muito em breve, Tribunais do Santo Ofício Pedagógico, sabem que ele não tem nenhuma responsabilidade nisso, mas estão já há algum tempo insistindo no tema (o “Fora Paulo Freire”), o que me acende a suspeita de que se trata de ação diversionista. Sugiro, assim, que procuremos as razões em outro lugar.
Como disse, não pretendo lançar nenhum contra ataque a esta verdadeira provocação, imatura e raivosa. Rogo, inicialmente, que tenhamos um pouco de bom senso.
1) Em primeiro lugar, bem antes de Freire nascer, nossa educação já era um desastre republicano! Ao fim da Primeira Guerra (1918), apenas 8% da população nordestina era alfabetizada e, se tínhamos aqui e acolá uma escola pública de qualidade (como o Ginásio Pernambucano), esta estava exclusivamente voltada para formação das elites.
2) Em segundo lugar, muito depois de Freire, quando muitas propostas pedagógicas foram tentadas e apontadas (sobretudo por grupos privados de assessoramento pedagógico) como a redenção de nossos males educativos (tecnicistas, construtivistas, pedagogia de projetos, por competências, interdisciplinares, didáticas específicas, formação integrada, tempo integral, etc, etc.), nossa educação pública continuou um desastre!
3) Para que Freire (ou sua pedagogia) pudesse ser inteiramente responsabilizado, teríamos que admitir que suas ideias se tornaram tão definitivamente “hegemônicas”, seja na formação, seja nas práticas exercidas pelos professores nas escolas públicas e privadas (que também entram na lista dos fracassos escolares!), seja na definição das políticas educacionais que, caso fosse verdade, teríamos um modelo de absoluto sucesso de pedagogia totalitária, algo que nem o stalinismo conseguiu!
4) É preciso lembrar que o principal documento educativo que marcou o governo Dilma - o “Pátria Educadora”, divisa governamental -, foi elaborado por dois liberais - Mangabeira Unger e Mozart Neves - (este último representando um poderoso grupo, o Instituto Airton Senna), documento que, inclusive, suprimia de seu texto a palavra “crítica”, substituída por uma tal de “inteligência analítica” e propondo “competências sócio-emocionais” (joia da coroa do ideário pedagógico de Mozart) que, nada mais são do que psicometria a serviço de um neo-lombrosianismo social voltado a estabelecer precocemente itinerários escolares para os pobres. Algo que já se prenunciava desde o início da República.
5) Na mesma época (e sob o mesmo governo), a Secretaria de Articulação Social da Presidência (Dilma Roussef) elaborou o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas Federais, documento completamente inspirado nas ideias de Paulo Freire (e do qual sou signatário!). Vejam bem: o mesmo governo (“de esquerda”?!) propõe dois documentos com orientações contrárias e conflitantes para a educação. Mas a verdadeira intenção era fazer valer o “Pátria Educadora”, adequando o modelo de educação pública às demandas do mercado e da competição global. O “esquerdismo” do segundo documento (que inclusive via a “Amorosidade” de Freire como um princípio... “epistemológico”!) servia apenas para oferecer tinturas “progressistas” a um governo que já adotara para a educação, outra orientação: esta que está sendo aprofundada por Mendonça Filho! Assim, o ataque ao freireanismo vinha tanto da direita como de certa esquerda, sendo que se permitiu que convivessem por algum tempo, ora acenando para os movimentos sociais, ora para o empresariado, até que o projeto de Mangabeira Unger/Mozart Neves ganhasse a dianteira, com apoio dos grandes grupos da educação empresarial. Com a cassação de Dilma, não há mais entraves para a eliminação radical do que restou de Paulo Freire.
6) A cassação do patronato é apenas o primeiro movimento de um jogo mais demorado e mais profundo. Começa-se por destruir o ícone situado no ponto mais alto do culto, depois se condenam as práticas (não como heréticas, mas como “ineficazes”, um termo mais moderno para abrigar os Tribunais do Santo Ofício Pedagógico), alterando os currículos, suprimindo disciplinas, modificando o perfil da formação dos professores, dirigindo a escolha dos livros didáticos (que filão!), tudo com assessoramento privado para os municípios que aderirem à “Revolução Pedagógica Pós-Freireana” e, em seguida, se perseguem os oficiantes resistentes. Se tudo der certo, os Centros de Educação das Universidades Públicas (com forte presença das ideias de Freire) deverão desaparecer e o que restar será entregue a grandes empresas educacionais (nacionais e estrangeiras).
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O mentor intelectual do Movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib, procurador do Estado de São Paulo, católico praticante, assustado com o fato de que sua filha chegou em casa com a história - contada por seu professor - de que Che Guevara e São Francisco de Assis se assemelhavam na renúncia à uma vida de conforto material para seguir um chamado (religioso, num caso, ou político, no outro) e temeroso de que Guevara fosse “santificado”, findou por produzir um documento em que deixa muito claro os alvos de sua denúncia: Frei Betto e... Paulo Freire (2004)! O que se acusa na pedagogia de Freire é seu caráter “ideológico”, “partidário” ou “doutrinário” (e sua imediata identificação com o PT). Trata-se de instituir uma espécie de “Caça aos ídolos” (muito característico das seitas fundamentalistas e da iconoclastia ingênua), ídolos que marcaram uma fase da política brasileira e que teve em Lula sua figura pontifícia. Outros virão! Mas, na verdade, isto quer dizer o seguinte: numa época de mercado globalizado e ferozmente competitivo, precisamos de um novo projeto de subjetivação, ou seja, precisamos oferecer às pessoas, egressas de um sistema escolar, os predicados necessários para sua adaptação à nova ordem econômica. Atributos tais como, flexibilidade, espírito de equipe (nada a ver com espírito solidário), inovação, adaptabilidade, uso de tecnologias, liderança, empreendedorismo... e todas estas exigências “meritocráticas” que tomaram de assalto o senso comum. Aqui reside um enigma que tenho dificuldade em decifrar!
Ei-lo. Enchem tanto as páginas dos jornais com a cantilena de que países como a Coréia do Sul, China, Cingapura... investiram massivamente em educação nos últimos anos, obtendo como resultado este fabuloso crescimento econômico, iniciativas tecnologicamente inovadoras e dispondo de índices muito aceitáveis de desenvolvimento humano, estabelecendo uma relação imediata entre educação e competitividade global/crescimento econômico, que me pergunto duas coisas: a) como explicar que os países nórdicos que apresentam os melhores índices educativos do mundo não estejam nem entre as 20 economias mais fortes? b) Como entender que o país do “fracasso freireano”, o nosso (!), esteja entre os 10 primeiros? Ou não há relação direta entre eles, ou a relação se encontra em outro lugar, bem menos visível [1].
A Revolução Industrial (1750-1850), que tornou a Inglaterra o país economicamente mais poderoso do planeta até a Primeira Guerra, não foi o resultado de investimento educacional! A França, que instituiu a educação pública universal, gratuita e obrigatória desde meados do século XIX (Lei Guizot e mais tarde com Jules Ferry), permaneceu um atrasado país agrário até o fim da Segunda Guerra. O que a China faz é simples: no interior de um estado politicamente autoritário, submete a população a um regime de trabalho semiescravo e, após uma colossal acumulação de capital (forte tributação e ausência de direitos trabalhistas, previdenciários, securitários, etc) investe em educação com vistas exclusivamente ao desenvolvimento tecnológico e à competitividade global, baseada nos critérios de avaliação educacional da OCDE e na cópia do modelo americano de universidade.
Isto me faz lembrar o mito do subdesenvolvimento (anos 50), fortemente criticado, nos anos 70 por intelectuais como Rodolpho Stavenhagen e André Gunder Franck. A história é a seguinte: estávamos certos de que nosso subdesenvolvimento poderia ser superado se seguíssemos as etapas realizadas histórica e economicamente pelos países centrais. Ou seja: felizmente dispúnhamos de um “espelho” no qual se mirar e orientar nosso destino histórico: bastava seguir a fórmula! Até que alguém disse algo de uma evidência acaciana (Cf; Sete teses equivocadas sobre a América Latina. Stavenhagen): os países desenvolvidos nunca foram, antes, “subdesenvolvidos”! A Europa foi medieval e realizou uma acumulação primitiva centrada, exatamente, na exploração colonial, na proletarização e no fechamento das terras (o ouro brasileiro financiou parte da revolução industrial inglesa); os EUA foram um tipo muito particular de colônia que pouco interessou à Inglaterra e tinha uma economia voltada para o mercado interno. Isto significava que o subdesenvolvimento não era uma “etapa” do desenvolvimento: era sua contraface. Sem exploração da periferia não havia nem mercado nem matéria prima para o desenvolvimento dos países centrais. Isto colocou uma pá de cal nas teorias (inclusive dos comunistas!) que acreditavam em “etapismos” e numa “burguesia nacional” supostamente interessada em rupturas com o “imperialismo”.
Esta digressão, talvez longa, nos permite perceber que a “lição” que nos dão sobre desenvolvimento, globalização, competitividade... não são seguidas nem mesmo pelos próprios proponentes! E aceitá-la é cair numa armadilha: no nosso caso, a abertura do mercado educacional para grupos empresariais estrangeiros. O problema é que a pedagogia de Paulo Freire é “criação nacional” – com grande aceitação internacional- e um obstáculo às pretensões de tais grupos: o pensamento de Freire faz exigências políticas e subjetivas que não podem ser aceitas pelo programa de financeirização da educação, que a deputada Popiani representa. Ele é um obstáculo.
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E o obstáculo se encontra nas duas formas de “transitividade” que Freire propôs nos anos 50. A transitividade da situação de colônia (heteronomia) para a situação de nação (autonomia) e a transitividade da consciência individual (de “ingênua” para “crítica”). A primeira trabalhava com a ideia de que um país podia assumir as rédeas de seu destino; a segunda, com a ideia de que as pessoas podiam pensar por si mesmas e se colocar no mundo como Sujeitos, e esta passagem tinha uma exigência: a criticidade. Para remover o “obstáculo freireano” é necessário produzir a confusão deliberada e carregada de interesses subalternos identificando criticidade com partidarismo. É aqui onde o mito da “neutralidade de cátedra”, proposta pelo Escola Sem Juízo, cumpre a contento sua função.
Permitam-me uma rápida nota. A palavra “crítica” (da mesma origem de crivo, critério, crise) significa, etimologicamente, “separar”, no sentido, de dispor de critérios que nos permitam ver melhor a realidade e poder pensá-la e conduzir nossos julgamentos. A crítica é o que permite que toda autoridade intelectual, política ou religiosa, toda dogmática possam ser examinados à luz de um critério dito “universal” (que não é válido apenas para quem o utiliza); a crítica é o que permite, por exemplo, que não confundamos “meios” com “fins”, que possamos separá-los. Sendo que os meios são uma dimensão técnica ou operativa e os fins uma dimensão moral (a legitimidade de nossas ações). Isto não quer dizer que a “técnica” seja neutra e serviria a qualquer fim, como no repetido exemplo de uma arma que, “em si” não seria nem boa nem má: tudo dependeria de quem usa! Não é bem assim: os meios estão implicados nos fins (como um celular, que não atinge apenas um “fim” - a comunicação entre pessoas-, mas altera nossa relação com o outro e, assim, o fim é alterado pelo meio). A ideia de que os fins justificam os meios, por exemplo, nos leva a concluir que para fins honestos, nada me impediria de usar meios desonestos. Ora, meios desonestos são um testemunho de que os meios não estão isentos de uma conotação moral, logo, não são neutros. A Crítica, para ser breve, é o que permite que possamos submeter nosso próprio pensamento (e as ações que lhe correspondem) a critérios que o avaliam a partir de suas consequências (para mim e para os outros), e da base social que o sustenta. Quando exerço a crítica é como se, milagrosamente, eu pudesse sair de mim mesmo para me examinar pensando e agindo, como se eu me dividisse (o dois-em-um socrático), me “separasse” de mim mesmo.
Mas eu não posso fazer isto sozinho (não tendo ninguém como interlocutor, Robinson Crusoé pode achar o que quiser de si mesmo e do mundo, e jamais mudar de opinião). É a presença do outro na minha vida que vai constituindo o que chamo de minha identidade, que se faz com, a partir e contra o outro. A democracia é o regime de governo (mas também um modo de vida) que exige, pelo menos duas coisas: a presença visível e audível do outro (Crusoé não pode ser um democrata, mesmo com a presença do Sexta-Feira!) e que cada um dos participantes tenha construído o que chamarei de um ponto-de-vista. Era isto o que Freire pretendia com sua noção de Dialogia.
Estou chamando de ponto-de-vista aquele lugar único que “ocupamos” no mundo e que é resultado de nossas experiências, de nossa filiação a uma tradição, de nossas leituras e conversas, do polimento de nossa sensibilidade e que permite que nós vejamos o mundo de um determinado lugar (uma “leitura do mundo” que antecede a leitura da palavra escrita). Sozinho este ponto de vista não vale nada, ele é puramente solipsista: ele só existe porque outros pontos de vista (a pluralidade deles) me permitem sair de minhas certezas, de minhas convicções para examiná-las à luz das convicções dos outros. Agora posso voltar pro meu lugar e, depois de ter me colocado no lugar do outro, posso julgar os objetos que aparecem no debate público. A democracia não é o lugar da certeza apodítica (da ciência ou da demonstração matemática), mas do confronto entre pontos de vista ou opiniões (esta mesma “opinião” que desde Parmênides e Platão fora condenada como saber do “vulgo”, em contraste com a “episteme” do filósofo), alguns mais qualificados que outros, mas todos orientados para as consequências (legitimidade do ato). Portanto, a maior ou menor qualificação para o debate público não é um problema de competência técnica, mas de consciência judicativa. A resolução técnica dos problemas “sociais” vem depois.
No entanto, o problema é que para adquirir um ponto de vista eu preciso de... educação.
Diferentemente da instrução, do treinamento, da capacitação que me preparam para ações técnicas (meios), a educação/formação me prepara para assumir um ponto de vista, um lugar no mundo único e intersubjetivamente mediado (diálogo), com vistas a decisões relativas ao mundo comum (fins). Exigir a neutralidade do professor na condução de sua aula (como se, apresentando Marx, mas também Adam Smith – o exemplo é do ministro Mendonça!-, eu assegurasse minha neutralidade), não é apenas uma aberração humana (antes de ser pedagógica) é uma estratégia para eliminar a construção do ponto de vista que fundamenta a democracia, e uma tentativa de fazer do espaço público um lugar técnico. O que está em jogo é o fim do espaço público como expressão da pluralidade de pontos de vista. Ninguém adquire uma opinião autônoma e pessoal apenas porque, a ela, foi apresentado diversas posições a respeito do mesmo tema: no máximo se torna “enciclopédica”. Para se adquirir uma opinião crítica eu preciso dispor de conceitos e categorias adequadas que me permitam, na massa volumosa de informações colocada à minha disposição pela tecnologia atual, dispor de critérios para examiná-las, separá-las e julgá-las.
Paulo Freire foi um educador que se situou a igual distância da neutralidade e do partidarismo. Mas plenamente a favor da criticidade. Assim, qualquer acusação de partidarismo, lançada pelo “Escola Sem Prurido” é simplesmente falsa.
Examinemos. A ciência é supostamente o campo por excelência da neutralidade axiológica e da objetividade, uma tradição que vem do experimentalismo indutivista, passa pelo positivismo, pelo weberianismo e pelo positivismo lógico do Círculo de Viena. Mas, neutralidade e objetividade são duas coisas diferentes, embora fazendo parte do mesmo corpus ideológico da ciência moderna. A neutralidade se situa do lado do observador (sujeito que conhece), quer dizer, o pressuposto de que ele não conduzirá sua observação movido por suas próprias idiossincrasias, preferências pessoais, inclinações passionais, ou opções ideológicas e que obedecerá rigorosamente à distinção weberiana entre juízo de fato e juízo de valor. Já a objetividade se situa do lado da coisa observada (objeto cognoscível): a ideia de que a coisa existe independentemente de mim. Ambas seriam uma espécie de garantia de que aquilo que estamos dizendo da realidade corresponde, de fato, ao que a realidade “é” e que pode ser universalizado (o ponto de ebulição da água é igual para católicos e protestantes..., desde que seja adotada uma determinada escala de medição, que é arbitrária e culturalmente situada[2] ). O problema não está na suposta objetividade da coisa observada, ou do fato a ser narrado (os “fatos”, de fato, existem), e sim, na escolha do fato a ser objetivamente narrado ou experimentado, como ele será contado ou explicado (relação de causa e efeito), a que auditor (ou época) ele se dirige (a uma comunidade científica, a alunos através de um livro didático) e, claro, considerando o repetitivo “lugar de onde fala” o observador. Esta escolha do “fato objetivo”, pelo fato mesmo de ser uma escolha, mostra a presença de simpatias e opções que estão longe de serem “neutras”. Os “fatos” (científicos ou sociais) não estão “por aí”, à solta na paisagem, esperando historiadores e cientistas para serem colhidos e levados à mesa de trabalho ou ao laboratório: eles são vistos por alguém (e nem todo mundo os vê) e escolhidos entre incontáveis outros possíveis e eventuais “fatos”, colocados numa ordem narrativa (causal ou outra) e visando a uma finalidade que não está inscrita a priori nele mesmo: ele é, de certa forma, fabricado. A educação é, entre outras coisas, a prática que nos fornece os elementos com os quais nós podemos distinguir, no meio de discursos confusos e insidiosos sobre a realidade, e a partir de critérios minimamente racionais e razoáveis, os meios dos fins e, sobretudo, permite fazer uma avaliação do sentido ético destes fins. A educação diz respeito ao nosso SER; a instrução ao FAZER. O SER exige escolhas morais; o FAZER escolhas técnicas. A escola neutra quer, na verdade, reduzir o SER ao FAZER.
* * *
Não sejamos ingênuos ao ponto de crer que uma frase como “Educar é um ato político” não fosse, mais cedo ou mais tarde, enviesadamente entendida pelos antifreireanos de olhos injetados e boca espumando, como uma afirmação do caráter partidário da educação. Ao identificar Paulo Freire com o PT (ao qual foi filiado) estavam atadas as pontas.
O que Freire queria dizer com esta frase – cuja fortuna crítica e recepção social eram imprevisíveis- era simplesmente que sem educação (que não precisa ser formal) o espaço da Polis não se constitui, porque não adquirimos um “ponto de vista”; que sem a Polis (o caso de Robinson Crusoé) a educação não tem sentido nem “função”. Em segundo lugar, a frase nos remete a um ponto fundamental: a ideia moderna de liberdade. As concepções de política e pedagogia em Freire estiveram mais ligadas à ideia de “libertação” (ele preferia chamar de “pedagogia da libertação”) do que da “liberdade”, portanto, ainda ligada à “necessidade” – num país de desigualdades e misérias sociais ignominiosas-, situadas, assim, ainda muito aquém da liberdade. Se, por exemplo, Hannah Arendt situou a política para além da necessidade, quando já havíamos resolvido os problemas da sobrevivência e podíamos participar do espaço público como “iguais” (isonomia e isegoria), então, Freire se aproxima, aqui, muito mais de Heirinch Blücher, o marido de Arendt, que se preocupava mais em saber como faríamos para chegar a ser livres (libertação) e poder participar da Polis.
Ora, a Política em Arendt - e seu conceito de Ação é o que melhor representa isto- só ocorre quando, entre os homens (inter homines esse), algo é colocado (embora possa ser invisível: uma ideia, ou um autor, por exemplo) e se torna visível a todos, assim como cada um se torna visível ao outro. O que é colocado entre nós é o Mundo, não como mundo fisco, mas como mundo de significações, Mundo visto por cada um que pode, livremente, exprimir uma opinião sobre ele, ou ter sua opinião modificada em função da opinião do outro. Por mais opressora que seja uma determinada situação social ou econômica, este momento efêmero em que o Mundo se torna objeto de uma mediação linguística, através do diálogo, somos “livres”. A questão está em expandir esta liberdade que a interação linguística permite para as esferas colonizadas da vida e instrumentalizadas pelo poder e pelo dinheiro. Assim, em Freire a educação só pode ser exercida na liberdade (na opressão se faz doutrinamento ou catequese) embora também possa ser um meio para a liberdade.
Esta liberdade permitida pela relativa simetria da relação dialógica (iguais em isonomia e isegoria e gozando de igual legitimidade expressiva) só pode existir se uma pluralidade de pontos de vista observar o Mundo e atribuir a ele diferentes e novas significações. Suspender ou anular tal pluralidade implica duas coisas: a) a instauração de um ambiente totalitário, anulando a opinião individual (a “crítica” só pode aparecer com a emergência do indivíduo moderno) e transformando-a em “opinião pública” (típica da sociedade de massas) e, b) a transformação da educação em instrução, retirando dela a possibilidade de avaliarmos a finalidade humana da formação e sua legitimidade moral. Instrução, repito, diz respeito a meios; formação a fins.
Um partido é uma estrutura política hierarquizada (até mesmo no leninismo!), detendo uma determinada compreensão do social (ideologia), elaborada por seus intelectuais, pretendendo fazer desta compreensão (conservadora, reacionária, reformista, revolucionária, etc.) um projeto de sociedade, ligado a uma das classes ou a setores de classe e visando obter o máximo de adesão social possível, seja através da violência, seja pelo convencimento e, em geral, criticando a forma e o conteúdo das instituições atuais, seja para retornar a um estado anterior, seja para realizar uma forma qualquer de utopia. Em todos reside uma essência comum: qualquer que seja o projeto, ele é apresentado como produzindo benefícios humanos, mesmo que para isto seja necessário eliminar uma parte destes “humanos” (os judeus em relação ao partido nazista). O partido do Escola sem Partido quer eliminar uma parte destes humanos: os freireanos e petistas!
O partido não alberga uma relação propriamente pedagógica entre educadores e educandos, visando à formação humana (os cursos de formação política visam a formação dos militantes do e para o partido), nem trata da relação entre gerações (uma que estaria há mais tempo no mundo e outra que acabaria de chegar e precisaria de orientação). O partido trata com adultos que já passaram por uma forma qualquer de educação, formal ou informal, e que já adquiriram uma determinada “leitura do mundo” (um ponto de vista), o que não ocorre na relação propriamente “pedagógica” (que é condução da criança). Ora, toda a perspectiva do freireanismo, sua natureza pedagógica original estava centrada na chamada “alfabetização de adultos”, assim, mesmo que a chamemos de uma “pedagogia” (etimologicamente falando), ela não tratava com crianças, nem tratava os adultos como crianças a serem conduzidas pela mão. E o que foi usado do freireanismo em experiências pedagógicas outras, inclusive com crianças, procurou desenvolver, bem ou mal, a capacidade de pensar, de falar e de julgar de cada um. Um sistema doutrinário-partidarista alcançaria o máximo de porosidade possível, quer dizer, sendo capaz de preencher todos os “poros” do social (totalitarismo), quando cada membro deste social só pudesse pensar, falar ou julgar a partir das categorias, do léxico e dos valores fornecidos pelo próprio sistema doutrinário.
Ora, a existência de coisas como o Escola sem Partido, Movimento Brasil Livre, bolsonaristas, neonazistas, mozartianos, lgbtfóbicos, racistas, feminicidas, antidemocratas, tecnocratas, etnocidas, fascistas, xenófobos, fundamentalistas, stalinistas (ufa!),..., concepções completamente contrárias ao humanismo de Freire, apenas mostra que o freireanismo – tal como eles o veem!- não funcionou! Ou seja, jamais ocupou doutrinariamente todos os poros ideológicos do social, ou esses personagens não existiriam! É porque os bolsonaristas, por exemplo, tiveram a oportunidade de escolher outra formação, contrária ao freireanismo, que eles existem e tem a oportunidade de se manifestar (inclusive com violência). O problema de toda ordem democrática que o freireanismo defende, é ter que tolerar o intolerante: aquele que quer ter espaço para exprimir sua intolerância, mas, uma vez no poder suprime tal espaço e não permite mais que eles mesmos não sejam tolerados!
Estes intolerantes, finalmente, esquecem que as avaliações internacionais de proficiência pedagógica também incidem sobre as escolas em que eles estudaram e, se os resultados “são catastróficos”, eles precisam assumir uma parte importante do desastre e não sacudi-lo nas costas de Paulo Freire. Simples questão de bom senso!
Cassar o Patronato não passa de uma provocação inconsequente e leviana tão característica de grupos que enxergam na escuridão intelectual e na penumbra moral, o meio ideal para agir.
Notas:
[1] O fato de que Pernambuco saiu da 19° para a 1° posição no ranking nacional do Ensino Médio, não significa uma real qualificação -como “formação humana integral”- dos seus alunos: significa apenas a esperta adaptação dos programas do Ensino Médio aos critérios de avaliação do ENEM. Os “fins” se curvaram aos “meios”!
[2] É aqui que se introduz o dilema do universalismo e do relativismo-particularismo. Isahia Berlin usava o conceito de “incomensurabilidade” para dizer que não dispomos de um “metro” neutro e universal capaz de avaliar o valor relativo de cada cultura, e quem quer que proponha tal “metro” estará situado, por sua vez, numa tradição cultural... particular!
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A cassação de Paulo Freire - Instituto Humanitas Unisinos - IHU