12 Julho 2017
Poucos pastores nos EUA têm se colocado mais a favor das pessoas vulneráveis e sofredoras do que o Cardeal Sean O’Malley, de Boston. “Por mais difícil que estes ministérios sejam, a convicção que tenho é a de que essa é a coisa mais importante que a Igreja pode fazer, e me sinto um privilegiado em fazer parte dela”, disse ele.
A reportagem é de John L. Allen Jr. e Inés San Martín, publicada por Crux, 07-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Qualquer pastor, de qualquer religião, passa diferentes momentos de seus dias lidando com as almas sofredoras. As pessoas têm uma propensão especial em estender a mão a um pastor nos momentos mais difíceis de suas vidas – o divórcio, morte na família, doença grave, ou alguma crise existencial ou espiritual.
Nesse sentido, poucos pastores na Igreja Católica americana têm passado mais tempo com os que sofrem grandes dores do que o cardeal-arcebispo de Boston, Sean O’Malley.
Hoje com 73 anos, O’Malley começou a sua carreira ministrando a latinos da área de Washington, DC, que incluía refugiados da América Central fugidos dos horrores da guerra civil. Ao se tornar bispo, assumiu o comando de dioceses abaladas por escândalos sexuais: Falls River, Massachusetts; Palm Beach, Flórida; e Boston. Com o passar dos anos, em relação a seus iguais nos EUA ele provavelmente se tornou o bispo que mais se dedicou à proteção das vítimas de abuso, ouvindo suas histórias e procurando se desculpar e dar apoio.
Em palestra durante “Convocação das Lideranças Católicas” (Convocation of Catholic Leaders), encontro inédito que reuniu quase 3.500 bispos, padres, religiosos e leigos entre os dias 1º e 4 de julho em Orlando, Flórida, O’Malley escolheu abordar uma outra forma de sofrimento: a cura pós-aborto.
A ideia central era que as mulheres que praticaram o aborto e carregam um fardo de culpa precisam ouvir uma mensagem de perdão e misericórdia divina. O cardeal disse que ficou surpreso com a resposta recebida.
“As pessoas vieram até mim depois, me paravam e diziam que estavam à espera para ouvir esta mensagem há anos”, disse, acrescentando: “Tenho certeza de que a mensagem já estava aí presente, mas talvez hoje foi a primeira vez que as pessoas tiveram a chance de realmente refletir sobre o tema”.
Perguntado sobre como pode lidar com tanto sofrimento de tantas pessoas, e não se tornar, ele próprio, afetado negativamente por estas fortes emoções, O’Malley respondeu que esta força vem das suas convicções a respeito do que a Igreja tem como missão fazer.
“Por mais difícil que estes ministérios sejam, a convicção que tenho é a de que esta é a coisa mais importante que a Igreja pode fazer, e me sinto um privilegiado em fazer parte dela”, falou.
O’Malley igualmente disse que a experiência tem lhe trazido benefícios espirituais.
“Acho que estar em contato com a dor das pessoas ajudou a me tornar mais empático, e a ter um entendimento dos problemas que as pessoas passam”, disse, “e talvez ter condições de dividir com elas uma visão do perdão de Cristo”.
O’Malley conversou com o Crux em 3 de julho, durante o terceiro dia de encontro em Orlando.
O cardeal ainda abordou outros temas na entrevista. Ele falou:
• Este encontro é uma oportunidade para “imbuir a nossa conferência episcopal e o nosso país com o espírito do Papa Francisco”, especialmente com a visão do documento de 2013 Evangelii Gaudium (“A Alegria do Evangelho”).
• Com princípios centrais do documento “A Alegria do Evangelho” com relevância especial para os EUA, O’Malley mencionou que não devemos ser uma Igreja autorreferencial, e sim fazer as pessoas nas periferias uma prioridade, tendo presente o chamado à misericórdia e a centralidade dos pobres.
• De todos os Anos Santos que viveu em sua vida, disse O’Malley, “não há nenhum tão bem-sucedido quanto o Ano da Misericórdia” convocado pelo Papa Francisco, pois “todo mundo estava ciente e participando. As pessoas perceberam a necessidade da misericórdia em suas vidas e nas vidas dos entes queridos, daquelas pessoas ao nosso redor”.
• Muito embora a ideia original do encontro em Orlando fosse reunir ativistas pró-vida e defensores da justiça social para além da percepção de que eles estejam divididos, O’Malley afirmou que uma análise mais próxima revela que havia um problema entre as lideranças católicas, mas não nas bases, onde o povo “não percebe absolutamente nenhuma dicotomia”.
Quantos havia na delegação que o senhor trouxe de Orlando para este encontro?
Acho que éramos 15.
O que está achando do encontro?
Todos estão muito entusiasmados, e eu fico muito feliz por isso, porque o encontro significou pedir que as pessoas abrissem mão do feriado de 4 de Julho para vir a Orlando. Acho que a animação entre as pessoas aqui está ótima, que o encontro está sendo um grande sucesso. Estou bem feliz e satisfeito com que conferência dos bispos tenha realizado um evento assim.
O que espera que saia deste encontro?
Acho que as pessoas estão animadas com os seus ministérios, e estão focalizando a mensagem presente em “A Alegria do Evangelho”, que é um documento extremamente importante. Penso que muitos não tiveram realmente a oportunidade de absorver a mensagem do Santo Padre. Ter um encontro como este, onde refletimos as mensagens de Evangelii Gaudium, é uma grande oportunidade para imbuir a nossa conferência e o nosso país com o espírito do Papa Francisco.
Que pontos o senhor destacaria de “Evangelii Gaudium” como sendo particularmente importantes ou úteis à Igreja nos EUA hoje?
Há muitos elementos, mas com certeza a noção do Santo Padre de não sermos uma Igreja autorreferencial, e sim uma instituição que abra suas portas e saia ao mundo. Uma outra é ter as pessoas da periferia como uma prioridade, da forma como estão no Evangelho. Em seguida, viver o chamado à misericórdia, ser o rosto misericordioso do Pai, em particular aos que sofrem.
Tem também a importância dos pobres no projeto divino. Falamos tanto no passado sobre a opção preferencial pelos pobres, mas isso é algo que precisa ser cultivado e promovido em todas as gerações da Igreja. A ocasião nos dá a oportunidade de perguntar: “Como podemos melhorar a nossa atuação?”.
Acha que há, entre os mais de 3 mil participantes deste evento, uma concordância básica com tais princípios?
Acho que sim.
No começo, o Cardeal Dolan falou sobre isso. Quando surgiu a ideia desta convocação, havia a preocupação de que, talvez, houvesse uma certa dicotomia entre as lideranças católicas. Uns estavam engajados com o movimento pró-vida, e outros com a pauta da justiça social.
A percepção era que eles nem sempre trabalhariam em conjunto?
Exatamente. Mas uma análise mais próxima mostrou que não é bem isso o que acontece, e que o povo católico não percebe absolutamente nenhuma dicotomia.
Portanto o problema estava com os líderes, não nas bases?
Sim, exatamente. Isso também era verdade entre o clero. O problema só acontecia entre as elites mesmo.
Nós, da imprensa, geralmente fazemos histórias sobre a tensão e os desacordos em torno do Papa Francisco e sua agenda, mas o senhor está dizendo que, embora exista, essa tensão não está se refletindo aqui?
Isso mesmo, e é bastante consolador ver o rosto da Igreja aqui. Por exemplo, muitíssimos dos novos grupos de imigrantes e grupos hispânicos estão representados no evento. Desse modo, podemos ter uma ideia de como realmente é a Igreja Católica nos EUA do século XXI.
Em encontro como este pode também criar oportunidades para se falar sobre certos temas difíceis, e o senhor fez isso refletindo sobre a cura pós-aborto. Por que escolheu trabalhar este tema, e que tipo de resposta tem recebido?
Na verdade, o meu tópico era cobre Cristo como curador e a sua misericórdia. Ele me foi dado, e fui bastante feliz porque é um tópico de grande importância.
Quando vejo a minha vida e todos os Anos Santos em que participei, não há nenhum tão bem-sucedido quanto o Ano da Misericórdia. Eu diria que, em meus Anos Santos, só um pequeno número de católicos havia percebido que um período assim estava acontecendo. No entanto, neste Ano Santo todo mundo estava ciente e participando. As pessoas perceberam a necessidade da misericórdia em suas vidas e nas vidas dos entes queridos, daquelas pessoas ao nosso redor.
Com certeza, existem muitos grupos de pessoas na Igreja que se sentem como se estivessem fora da misericórdia de Deus. Poder aliviar este sentimento, da forma como o Papa Francisco fez e continua fazendo, é algo que toca as pessoas e as aproxima do Senhor e de seu povo.
Quando falou sobre a misericórdia e cura às mulheres que vivenciaram casos de aborto, que tipo de resposta o senhor recebeu?
Fiquei surpreso. As pessoas vieram até mim depois, me paravam e diziam que estavam à espera para ouvir esta mensagem há anos. Tenho certeza de que a mensagem já está aí presente, mas talvez hoje foi a primeira vez que as pessoas tiveram a oportunidade de realmente refletir sobre o tema.
Um trabalho pastoral junto aos que sofrem, independentemente de onde eles venham, tem sido uma pedra angular em sua carreira eclesiástica. O senhor começou trabalhando com os hispânicos, com aqueles cujas vidas haviam sido destruídas pelos horrores de um círculo vicioso de guerras civis na América Central. Por três vezes foi nomeado a dioceses que estiveram marcadas por escândalos sexuais, onde se colocou à disposição para se encontrar com as vítimas e tentou ajudar a curar as feridas. O senhor se colocou ao lado das mulheres que passaram por casos de aborto, e tentou expressar o perdão para elas também. De onde vem esta força para lidar com todo esse sofrimento e dor, e não se abater com nada?
Por mais difícil que estes ministérios sejam, a convicção que tenho é a de que esta é a coisa mais importante que a Igreja pode fazer, e me sinto um privilegiado em fazer parte dela. Acho que estar em contato com a dor das pessoas ajudou a me tornar mais empático, e a ter um entendimento dos problemas que as pessoas passam, e talvez ter condições de dividir com elas uma visão do perdão de Cristo. Essa é a razão do nosso ministério [com as mulheres que praticaram o aborto].
Uma das coisas que falei foi sobre as prioridades que o Cardeal Carlo Maria Martini [biblista jesuíta e ex-arcebispo de Milão, falecido em 2012] tirava dos evangelhos. Ele falava que a sua prioridade era cuidar dos enfermos e sofredores, e que a sua segunda prioridade era pregar o Evangelho. Não podemos pregar o Evangelho a menos que estejamos cuidando do sofrimento do povo. Se as pessoas entenderem que as amamos e nos preocupamos com suas vidas, elas irão estar dispostas a ouvir o Evangelho que pregamos. Acho que isso é o centro da atividade da Igreja. Acho que é um privilégio ser chamado a esta vocação.
Mas como recarrega as suas energias no fim do dia?
Bem, nós temos a nossa regra de vida, temos a vida de oração de um padre, o momento ante o Santíssimo Sacramento. Há a comunidade da fraternidade dos padres, a minha própria comunidade capuchinha, amigos e familiares, tantos lugares onde vivencio a misericórdia divina sendo mediada através de pessoas maravilhosas que são próximas a mim e que me apoiam.
Participa de uma partida futebol ou assiste a um filme, algo assim, só para poder se lembrar de que nem tudo é dificuldades e angústias?
Ocasionalmente!
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Cardeal O’Malley: as mulheres que praticaram o aborto precisam encontrar perdão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU