26 Mai 2017
"Está na hora de se profanar uma democracia de fachada, na verdade um verdadeiro Estado de exceção, urgindo ser mudada para uma democracia de verdade, participativa, efetivamente fiel ao seu povo", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
“O problema não é político no sentido de que apenas elegemos errado, mas no sentido de que o processo decisório se tornou disfuncional”. Assim Ladislau Dowbor, doutor em ciências econômicas e professor da PUC de São Paulo, resume a sua crítica ao que se passa no Brasil e no mundo, atualmente, na edição deste mês da revista Le monde diplomatique.
A realidade subjacente a esse diagnóstico tem sido bastante sublinhada por vários estudos, mas o professor lhe fornece identificação precisa. É lícito deduzir-se da sua crítica que “processo decisório”, leia-se poder político, suficiente para intervir nessa realidade, precisa identificar duas “macrotendências” desafiando hoje a nossa sociedade, sem o que a política fica enredada em remendos parciais alheios a um contexto maior capaz de neutralizá-la e substituí-la.
Estado e democracia são parte integrante dessas duas macrotendências e, a força de ignorá-las, estão se descaracterizando, perdendo toda o poder de controla-las. Em primeiro lugar, a iminente extinção da vida na terra “pelo aquecimento global, a contaminação das águas, a destruição da cobertura florestal,a liquidação das espécies – perdemos 52% da fauna do planeta em apenas quarenta anos, entre 1970 e 2010 (WWF, 2016). Estamos indo ladeira abaixo em ritmo vertiginoso, com mais tecnologias descontroladas e 7,4 bilhões de habitantes tentando agarrar o que podem no quando do caos que temos chamado educadamente “mercados”.
A conexão entre desastre ambiental e mercado não foi colocada aí por acaso. Existe um nexo causal capaz de responsabilizar as movimentações do mercado por aquele desastre, e toda a cadeia de consequências sociais daí derivada, como o próprio Papa, aliás, na encíclica Laudato Si', já tinha advertido: o fato de a crise ambiental e a crise social serem uma e a mesma coisa. Em sintonia, com a dedução a ser retirada da segunda macrotendência referida pelo professor Ladislau: a escandalosa desigualdade econômica existente entre as pessoas. Depois de relembrar o conhecido dado estatístico de “oito famílias disporem de “mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial”, coloca em paralelo o dinheiro de poucos grupos com o PIB todo do Brasil: “Os 28 maiores grupos financeiros do mundo manejam em médio 1,8 US$ trilhão. O Brasil, sétima potência econômica mundial, tem um PIB de US$1,7 trilhão. O poder efetivo, que detém a autoridade sobre a alocação dos nossos recursos, simplesmente se deslocou, e com isso se desloca a capacidade de resgatar o controle e restaurar os equilíbrios. Não é apenas uma questão de justiça social: a própria economia deixa de funcionar.”
Existe um poder de “dreno”, assim denominado pelo professor Ladislau, sorvendo o nosso dinheiro e a economia do mundo todo, típico de “um sistema financeiro global” “que não presta mais contas a ninguém”, “manejando o acesso aos recursos necessários para viabilizar as novas políticas ambientais e sociais e para financiar, inclusive, as atividades produtivas”.
Diante de um poder privado dessa envergadura, qual é a capacidade do Estado, por suas instituições, os seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, enfrentar, controlar, modificar, restaurar, eliminar qualquer coisa em defesa do seu povo? Se isso já seria bem difícil de acreditar, quando a crise atual não chegara ao ponto onde se encontra, muito menos provável se mostra hoje.
O pessimismo do conselho desesperado de “sem saída”, em momentos como esse, circula com a velocidade conveniente para tudo se agravar. Além de atrapalhar qualquer busca de resposta, procurando convencer todo o mundo que a crise decorre de uma fatalidade, acrescenta força a quem já é beneficiário da opressão social refletida na reprodução dessa desigualdade, subtraindo ainda mais o poder de resistência da maioria oprimida. A violência desumana e perversa desse conselho costuma se disfarçar atribuindo a qualquer inconformidade coletiva contra ele, à “desordem” à “insegurança” ao “terrorismo”, por mais que a história comprove as revoluções populares, pacíficas ou não, terem vencido opressões estatais muito bem disfarçadas ao abrigo de uma lei e de uma justiça “oficial” mas falsas e cúmplices dos meios contrários aos seus legítimos fins.
Por pior que seja a situação do país por esses dias, até excessos verificados nas manifestações de protesto do povo contra o atual (des) governo são incomparáveis com os excessos que esse vem praticando contra ele. Existe uma possibilidade aberta por toda a crise que pode ser explorada agora por aquela fração de povo pobre, ferido em seus direitos sociais por todas as iniciativas “legais” que estão sendo tomadas pelo (des) governo para infringi-los, desde o golpe de Estado: enfrentar a ilegitimidade da atual democracia representativa brasileira, por uma forte desobediência civil.
Existem elementos de sobra para isso, que vão muito além da necessária e justa inconformidade popular com a corrupção presente em quem está mandando no país. É a própria democracia representativa que está agonizando, doente e ferida pela manifesta infidelidade aos mandatos que recebe. Não é meramente teórica a urgência de uma substituição idônea desse modelo público de democracia, com poder suficiente para torna-la efetivamente participativa. Uma oportuna fundamentação inspiradora para tanto pode ser encontrada na edição on-line de 22 deste maio da revista IHU da Unisinos, quase toda ela dedicada à crítica do pensamento de Giorgio Agamben. O professor Castor Bartolomé Ruiz se preocupou em esclarecer as implicações políticas da teologia no pensamento deste conhecido filósofo italiano. Naquilo que, talvez, mais interessa sublinhar sobre a profunda crise que atualmente atinge o país, quando a democracia representativa daqui não representa mais nada sobre os seus próprios fins constitucionais, Ruiz separou uma característica original presente nas lições deste autor: uma espécie de sacralização do poder institucional dos governos, caracterizada por um descrédito histórico sobre a capacidade das/os cidadãs/os entenderem e decidirem sobre o que mais lhes convém:
Mesmo a vida das pessoas sendo afetada e atingida por estas instituições, considera-se que o poder de gestão e governo excede a capacidade do povo, por isso devem ser “técnicos especializados” os responsáveis por gerenciar o poder dessas instituições. Para Agamben, a assinatura da sacralização persiste nas sociedades secularizadas, possibilitando que o exercício do poder continue a ser privilégio de pessoas selecionadas para esse fim. Profanação. Agamben introduz o conceito de profanação para denominar a prática – mais radical que a mera secularização – através da qual há que despojar o poder da aura de inatingível para permitir que as pessoas comuns possam decidir sobre as principais questões que afetam as suas vidas, sem transferir para especialistas e instituições misteriosas a solução dos mesmos. Profanar significa retirar do poder sua aura de transcendência para permitir que as pessoas consigam decidir sobre seus destinos. Paradoxalmente, Sócrates foi condenado do à morte por profanar a lei divina da polis, de igual forma Jesus foi crucificado por profanar e lei e o templo. Para Agamben, a profanação seria uma prática política que deve desconstruir de forma efetiva as assinaturas transcendentes do poder.”
Este o desafio maior. Está na hora de se profanar uma democracia de fachada, na verdade um verdadeiro Estado de exceção, urgindo ser mudada para uma democracia de verdade, participativa, efetivamente fiel ao seu povo.
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O modelo atual de democracia representativa está agonizando - Instituto Humanitas Unisinos - IHU