19 Mai 2017
Não é frequente se começar a criar uma nova universidade a partir do zero: espaço, pessoal - e currículo. Mas isso é exatamente o que estamos fazendo na República de Maurício, em uma das mais novas instituições de ensino superior da África. E a descolonialidade é fundamental para o nosso trabalho.
O artigo é de Jess Auerbach, Faculty, Social Science, African Leadership University, publicada por The Conversation, 13-05-2017. A tradução é de Celito De Bona.
Sou membro da Faculdade de Ciências Sociais da African Leadership University (ALU). Parte de nossa tarefa é construir um cânone, conhecimento e uma maneira de conhecer. Isto está acontecendo em consonância de um movimento por estudantes sul-africanos para descolonizar suas universidades; ao movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos; e no contexto de uma história muito mais profunda da reimaginação nacional na África e no mundo.
Com esta história em mente, nossa faculdade está trabalhando para aquilo que consideramos um currículo descolonial de Ciências Sociais. Adotamos sete compromissos para nos ajudar a cumprir esse objetivo e que esperamos mudar o discurso educacional em uma direção mais equitativa e representativa.
Como a maioria das instituições de ensino superior na África (e em grande parte do mundo) a biblioteca da ALU é limitada. Os alunos muitas vezes lidam com isso ao violar as leis de direitos autorais, pirataria e download ilegal de material. Nós não queremos treinar nossos alunos para se tornarem infratores habituais da lei. Nem queremos que eles aceitem o acesso de segundo nível ao conhecimento mercantilizado.
Nossa meta é que até 2019 tudo o que atribuirmos em nosso programa seja de código aberto (open source). Isto será alcançado através da construção de relações com editores, escritores e empresários, e negociação de parcerias para acesso equitativo ao conhecimento. Isso garantirá que uma nova geração de pensadores esteja equipada com as ferramentas analíticas de que necessitem.
Isto também irá avançar para desfazer séculos de extração de conhecimento da África para o mundo que muitas vezes ocorreu com pouco benefício para o nosso continente.
Os alunos que lêem, escrevem e pensam em inglês frequentemente esquecem que o conhecimento é produzido, consumido e testado em outras línguas.Comprometemo-nos em atribuir aos alunos, pelo menos, um texto não-inglês por semana. Isso será resumido e discutido na aula, mesmo quando os alunos sejam incapazes de lê-lo. Nossa turma atual é composta por estudantes de 16 países que entre eles falam 29 línguas. O inglês é a única língua que todos compartilham. Expondo os alunos a trabalhos acadêmicos, de cunho político e do mundo real que não estejam em inglês significa que eles serão constantemente lembrados do quanto eles não sabem.
À medida que evoluímos, os alunos também deverão aprender línguas do continente: tanto as que se originaram no colonialismo (árabe, inglês, francês, português), como as que são nativas como isiZulu, wolof ou amárico.
Ter experiências interculturais, especialmente numa graduação, tornou-se uma parte importante da demonstração de disponibilidade de trabalho e de competência social num mundo "globalizado". Mas estudiosos têm mostrado que a globalização é muitas vezes desigual. As moedas correntes fortes permitem tais experiências, mas aqueles que se beneficiam usualmente vêm da Europa e da América do Norte.
Isso tem gerado enormes implicações para o ensino superior, onde o "intercâmbio de estudantes" geralmente ocorre em uma proporção de 10: 1 - dez americanos ou noruegueses, por exemplo, explorando municípios sul-africanos, para um ghanês que pode chegar à Torre Eiffel.
Em Ciências Sociais o corpo é a ferramenta de pesquisa e a mente o laboratório em que são realizadas as experiências. Apoiamos o máximo de intercâmbio possível em toda a instituição. Mas o nosso compromisso quando se trata de intercâmbio de estudantes é estritamente 1: 1 - um estudante ALU vai para o estrangeiro para cada estudante de intercâmbio que recebermos em nossa sala de aula.
A longa história intelectual da África só recentemente começou a ser registrada e armazenada através do texto. Se os alunos são expostos apenas a fontes escritas, seu conhecimento é em grande parte restrito às eras de colonização e pós-colonialidade.
Para instilar um conhecimento muito mais profundo e uma consciência mais sensível ao contexto e ao conteúdo, estamos empenhados em atribuir fontes não textuais de história, cultura e crença: estudar artefatos, música, publicidade, arquitetura, comida e muito mais. Cada semana os alunos se envolvem com pelo menos uma dessas fontes para atender ao mundo em torno deles de uma maneira mais cuidadosa.
Os cientistas sociais atribuem-se frequentemente o papel do desconstrutores: desvelando o poder, a raça, o capitalismo e o consumo com o glorioso abandono da hipocrisia. Meus colegas e eu reconhecemos que não podemos trabalhar sozinhos e pedimos que nossos alunos desempenhem um papel central na contribuição para os resultados da universidade.
Criamos nossos currículos de tal forma que os alunos são obrigados a criar, iterar, trabalhar com feedback, aplicar esse feedback e avaliá-lo criticamente. Queremos que eles colaborem com o maior número de pessoas possível, estendendo-os a usar a linguagem e as ferramentas de análise que adquirem em seu treinamento com implicações no mundo real. Por exemplo, os alunos trabalharam recentemente com nossas equipes jurídicas, políticas e de aprendizagem para escrever a declaração da universidade sobre a diversidade.
Os estudantes que escolhem vir para a universidade trazem com eles tremenda percepção e experiência. Estes são muitas vezes desenvolvidos e aumentados com o passar do tempo no ambiente multicultural e quintessencial do campus e dormitórios. Isso permite que certas fusões, tensões e semelhanças surjam muito mais claramente do que em outros lugares.
Trabalhando e vivendo dentro deste ambiente, é essencial que os alunos comecem a contribuir para os discursos em torno da África o mais cedo possível. Pode levar anos para saber como escrever um artigo acadêmico publicável - mas um op-ed (artigo de opinião), podcast ou vídeo do YouTube não é tão exigente. Isso permite que os alunos se acostumem com suas vozes que contribuam e moldem o diálogo público na e sobre a África.
As ciências sociais refletem e moldam o mundo. Nosso programa, então, está comprometido com o princípio de "não fazer mal", e também para ser um ímpeto para o bem.
Os alunos aprenderão a pensar e agir de acordo com os mais altos padrões éticos e a se sentir confiante em pedir o mesmo aos outros que trabalham com eles. Isso é essencial para criar um mundo no qual o lugar da África é central - como sempre foi o capitalismo global - e também respeitado.
São os primeiros dias em ALU. Há muito que ainda precisamos fazer, e levará tempo para que construamos a instituição naquilo que imaginamos coletivamente. Estes sete compromissos constituem uma base importante para as Ciências Sociais.
Estamos abertos a questionamentos e colaborações através do nosso blog (https://decolonizedsocialscience.wordpress.com/) , através de e-mail ou através de colaborações com nossos alunos.
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O que uma nova universidade na África está fazendo para descolonizar as Ciências Sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU