04 Abril 2017
No começo da transição democrática paraguaia, após 35 anos da ditadura de Alfredo Stroessner, foi sancionada uma nova Constituição (1992) a partir de uma Assembleia Constituinte que representava, mesmo com maioria do Partido Colorado (122 de 198), um amplo e variado espectro ideológico. Esta Carta Magna, nos albores da primavera democrática, funcionou como um pacto social privilegiado e mesmo quando foi violada – especialmente após o golpe de Estado de 2012 – nunca pôde ser reformada. E não por falta de tentativas e projetos.
O comentário é de Lorena Soler e Charles Quevedo, coordenadores do Grupo de Trabalho da Clacso-Intelectuais e Política, publicado por Página/12, 03-04-2017. A tradução é de André Langer.
Como todos os presidentes anteriores – com exceção de Raúl Cubas, que apresentou a renúncia diante da sua iminente destituição –, Horacio Cartes voltou ao ringue com intenções reformistas, mas limitadas exclusivamente ao ponto mais sensível para a história política desse país: a reeleição presidencial. Para isso, apelou, como antes tinha feito o seu colega Duarte Frutos, à figura de emenda constitucional, que, neste caso, permite um mandato a mais para o presidente e os governadores, elimina a proibição para a candidatura de deputados e enfraquece as atribuições do Congresso.
Cartes, como seu antecessor colorado, não contava com maioria no Parlamento, mas foi um passo além e impulsionou algo parecido a um “Senado paralelo” – composto por 25 senadores colorados, liberais e luguistas – que modificou os artigos necessários para suprimir as atribuições ao presidente do Senado e diminuir a maioria necessária para a aprovação de projetos. Assim, na sexta-feira passada, dia 31 de março, foi aprovada no Senado a controversa emenda.
O insólito do processo é o apoio da Frente Guasú, um conglomerado de partidos de esquerda e centro-esquerda liderado pelo destituído presidente Fernando Lugo, que há vários meses vêm ensaiando diversas formas políticas e jurídicas para participar novamente da corrida presidencial de 2018. Encorajado por recentes pesquisas de intenção de votos que o colocam como “presidenciável”, transgrediu as melhores tradições democráticas da esquerda paraguaia que viria a representar ao fazer um pacto com o cartismo e comprometer os votos de senadores da Frente Guasú para a aprovação da emenda constitucional através de meios em conflito com a legalidade.
Imediatamente depois de aprovada a emenda, na tarde da sexta-feira, desencadeou-se uma enérgica manifestação de protestos nas praças adjacentes ao Congresso. A brutal repressão da polícia deu lugar a uma espiral de violência que provocou numerosos feridos, entre eles jovens e mulheres, legisladores e dirigentes políticos que acompanhavam os protestos. Cerca de cem manifestantes conseguiram entrar no Congresso – no momento em que as forças policiais se redobraram – e, alguns deles, queimaram móveis e com isso provocaram um incêndio que se propagou rapidamente por todo o prédio.
A polícia deteve mais de 200 pessoas que denunciaram maus tratos e golpes. Na madrugada do sábado, um grupo de policiais entrou à força na sede do PLRA – bem afastado do lugar onde aconteceram os protestos – e atirou contra as pessoas que estavam fazendo uma vigília no local, provocou a morte de um jovem militante do partido liberal, Rodrigo Quintana, de 25 anos. As imagens registradas pelas câmeras de segurança do lugar não deixam dúvidas de que o ocorrido foi um assassinato a sangue frio, uma execução extrajudicial. O presidente Cartes limitou-se a destituir o ministro do Interior e o chefe da Polícia, desvencilhando-se de toda a responsabilidade.
Longe de apelar à figura dos “vândalos” – empregada pelo governo e seus aliados luguistas em seus comunicados, com o objetivo de deslegitimar os manifestantes –, é preciso colocar em funcionamento outras teorias. As especulações são infinitas, mas o princípio costuma ser outro: a violência das classes dominantes ocorre muito antes das classes subalternas, que, geralmente, reagem diante destas.
As imagens do Congresso em chamas são, talvez, as que melhor narram o sentido profundo dos acontecimentos. A rigor, são a metáfora mais forte de uma sociedade que reclama uma nova classe política e um novo pacto social. A “direita” e certa “esquerda” se deram as mãos para favorecer interesses absolutamente mesquinhos. Ou melhor, talvez a esquerda luguista estendeu um tapete vermelho para a reeleição de Cartes e a consolidação de seu neoliberalismo autoritário. No entanto, a população olha entre desconcertada, apática e violenta.
Os cenários futuros estão em processo. A emenda pode ser aprovada na Câmara dos Deputados – onde o cartismo conta com ampla maioria – e o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral pode convocar um referendo. Ou pode ser novamente engavetada. Enquanto escrevemos estas linhas foi armada uma barraca de resistência na Praça das Armas. A embaixada dos Estados Unidos também se fez ouvir. Não quer mais incêndios nem conflitos sociais e, pouco a pouco, nem mesmo a Horacio Cartes.
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Paraguai. A metáfora do Congresso em chamas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU