04 Março 2017
"Insistindo na busca de um denominador comum, pode-se chegar a uma definição provisória de populismo: é o sistema que se apropria, exalta e idealiza o povo como o repositório de valores totalmente positivos para torná-lo um modelo econômico e social. Contudo, mesmo essa abordagem, revela-se insuficiente se não incluir o confronto com a experiência democrática", escreve Domenico Rosati, ex-presidente das Associações Cristãs dos Trabalhadores Italianos (ACLI), 27-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Especialmente depois do sucesso de Trump e suas declarações arrogantes, fala-se e escreve-se cada vez mais sobre populismo.
Na Europa está em curso uma competição para a simulação dos possíveis resultados em vista do grande teste eleitoral na Holanda, França, Alemanha e Itália. Em outros lugares, como na Hungria e outros países do leste europeu, o populismo há tempo estabeleceu-se no vértice do estado.
Mas do que estamos falando? Os cientistas políticos não fornecem respostas quando, utilizando terminologia médica, evocam o conceito de "síndrome", que alude à concorrência de vários fatores na gênese de uma doença. Que fatores são esses?
Pouco se sabe das experiências históricas do populismo. Porém é importante considerá-las para evitar definições demasiado uniformes e, portanto, equivocadas.
Uma coisa é, na verdade, o movimento populista russo do final de 1800, que visava a criação de uma espécie de socialismo rural e a emancipação dos camponeses.
Outra coisa é o caso dos governos populistas na América Latina, no século XX, segundo o modelo "peronista", misturando autoritarismo e modernização.
Outra ainda, finalmente, é o caso das manifestações de populismo que, ainda no século passado, atuaram como precursoras do fascismo e do nazismo.
Insistindo na busca de um denominador comum, pode-se chegar a uma definição provisória de populismo: é o sistema que se apropria, exalta e idealiza o povo como o repositório de valores totalmente positivos para torná-lo um modelo econômico e social. Contudo, mesmo essa abordagem, revela-se insuficiente se não incluir o confronto com a experiência democrática.
A democracia, de acordo com a solene declaração de Abraham Lincoln, apresenta-se como o "governo do povo, pelo povo e para o povo", uma fórmula que poderia causar confusão, caso não fosse especificado o conceito de governo como sendo um conjunto de regras e instituições que garantem o exercício da soberania.
Isso é o que está escrito de forma exemplar no art. 1 da Constituição italiana: "A soberania pertence ao povo, que a exerce nas formas e nos limites da Constituição". Aqui é o próprio povo que, no processo democrático, autodisciplina-se e, em certo sentido, imuniza-se contra as tentações e as degenerações autoritárias do poder.
Um episódio relativamente recente pode ajudar a apreciar a diferença entre o poder popular genérico e a função das instituições da democracia representativa.
Em 1994, após a vitória eleitoral que o alçou ao poder, Silvio Berlusconi levou aos limites a exaltação do significado de investidura popular.
Proclamava a todo instante que "a soberania pertence ao povo" sempre se esquecendo de mencionar a segunda parte da proposição constitucional. Detalhe que lhe foi oportunamente e importunamente lembrado em diferentes ocasiões.
Agora é Donald Trump a repropor o mesmo roteiro, com o acréscimo da prerrogativa de ser o chefe de uma república presidencial. No discurso de posse, ele salientou que a sua eleição não representava uma alternância no governo, mas o advento do povo na liderança da nação em substituição às elites dominantes.
Contudo, ele também precisou descobrir que, felizmente, na democracia funciona um equilíbrio de poderes e que as Constituições servem justamente para limitar e restringir certas pulsões totalizantes.
Pode-se constatar, portanto, que o processo democrático incorpora a ‘marca do líder’ que, para se afirmar, precisa garantir o procedimento parlamentar e o compromisso político. Essa é a prova que numa democracia o respeito das formas é a condição da qualidade da substância.
Avançando mais nas manifestações do populismo, embora tão diferentes no tempo e no espaço, verifica-se que uma nota comum é a presença de um líder carismático que se apresenta, sozinho ou com uma elite selecionada, como intérprete do espírito do povo. Na Itália persiste a memória do "magnetismo" de Mussolini nos seus "comícios oceânicos".
O conceito de "porta-voz", utilizado na Itália pelo movimento de Grillo para designar os próprios eleitos, é uma variação do tema da abordagem ‘de cima para baixo’. Não sofre alteração alguma pelo fato de que a alegada vontade do povo não é expressa e nem comunicada pela voz do líder, mas por um anônimo algoritmo de uma rede midiática...
Outra característica da proliferação populista é a chamada transversalidade, que se manifesta na defesa eclética de pontos de vistas que podem ser ligados a motivações ora de direita, ora de esquerda, indiferentemente.
Fechamento de fronteiras e recusa à entrada de "invasores" e, ao mesmo tempo, proteção aos “nativos”; esse é o ícone mais visível de um cálculo político que foge à avaliação ética e a todo possível fundamento histórico-político plausível.
De fato, não se considera que, pelo menos na Europa, a vida seria bem difícil se estivesse restrita dentro de entidades territoriais fechadas e protegidas em um mundo que, seguindo as aventuras do capital, há muito tem ultrapassado as fronteiras no aspecto econômico e social, embora, hoje, pareça tentado a se retrair para dimensões menos dispersivas.
Esse desenvolvimento programático constitui, no entanto, uma armadilha para as forças da tradição social mais antiga, cristã ou socialista, que vêem contrastadas suas credenciais em matéria de reivindicações sociais e são forçadas para posições defensivas no terreno da segurança, encontrando-se isoladas na defesa das razões da humanidade afetadas pelo retorno da xenofobia e pelo triunfo do medo.
Pode ser reconfortante para os crentes a coerência apostólica com a qual o Papa Francisco continua a denunciar os danos de uma economia do descarte e a defender os deveres de um acolhimento livre de cálculos utilitaristas, mas é preciso ressaltar que ele está praticamente sozinho na defesa dessa posição.
Nesse ponto, impõe-se uma referência às especificidades de cada movimento populista que opera na Europa. Eles reuniram-se festivamente em Koblenz, ao mesmo tempo em que Trump fazia seu juramento em Washington.
"Com ele, a rolha saltou e o gênio não volta mais para a garrafa", disse o holandês Wilders. Foi "o triunfo do povo contra as elites, a democracia contra a burocracia", ecoou a francesa Marine Le Pen.
Para esta última, a operação pode repetir-se na Europa. "Todos os povos europeus – exclamou com entonação ‘à la Marselhesa’ - estão sob a tirania de uma oligarquia financeira feita de pequenos homens".
Mais provinciana, a julgar pela imprensa, a intervenção do italiano Salvini, para quem é um "absurdo" que na Itália existam 50.000 autóctones sem água e sem gás encanado e 176.000 não-italianos (não turistas, ndr) hospedados em hotéis.
Mas talvez a contribuição menos banal do líder da Lega Nord tenha sido, a referência ao surgimento, inclusive na Itália, de "movimentos anti-sistema, que são instrumentos criados artificialmente pelo próprio sistema para nos dividir e para interceptar e atenuar a discordância".
Um aceno intrigante ao Movimento 5Stelle, com o temor de sua concorrência no campo do protesto xenófobo. Afinal, tanto Salvini como Grillo falam ao lado mais emotivo dos eleitores. E isso leva a uma espécie de afinidade eletiva que pode se estender até o terreno eleitoral.
Depois de tamanha fartura de povo espraiada em todas as latitudes pelos líderes dos movimentos populistas, parece legítimo perguntar (e perguntar-se) qual a ideia que eles têm do povo sobre o qual tanto falam.
Eles consideram o povo uma expressão coletiva e articulada de figuras conscientes e pensantes ou uma massa passiva disposta a seguir os ‘comandos emotivos’ que interceptam seus humores, além das necessidades?
Os comportamentos - a partir da irremediável confiança com que líderes e seguidores transmitem suas mensagens – certificam que é possível contar com a passividade, ou pelo menos a indiferença, do povo para construir um consenso eleitoral que reverta o regime pluralista das sociedades democráticas e instituições supranacionais assim como foram imaginadas após o flagelo da segunda guerra Mundial.
Se assim for, a resposta, para aqueles que pretendem encontrá-la, torna-se evidente, acompanhando duas linhas diretivas. A primeira: repensar, adaptar e, se necessário, reformular as formas e as instituições da democracia, para que os canais de comunicação entre representantes e representados sejam liberados dos bloqueios econômicos e sociais que dificultam a participação dos cidadãos induzindo-os à apatia e ao desinteresse.
Na Itália isso significa recuperar totalmente o conteúdo social da Constituição em termos de programas políticos, indo além da fase em que ocorreu uma enorme desgaste de energia em torno das questões do ‘regulamento’ do condomínio.
A segunda diretiva: reativar com todos os meios disponíveis a capacidade de pensar dos cidadãos e das associações sociais antigas e novas nas quais é desempenhada a sua atividade.
Aumentarão as dúvidas e as críticas em circulação; mas também surgirão mais ideias para solucioná-las que poderão ser debatidas e melhoradas ao longo do caminho democrático. Vai ser um antídoto para as soluções simplificadas e para as imposições que o populismo disfarça de atos de amor pelo povo.
A principal dúvida, evidentemente, é se haverá alguém capaz de assumir prontamente e de forma crível essa missão. Mas essa não é uma razão suficiente para desistir da procura.
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A síndrome populista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU