03 Março 2017
"Laudato Si’ já está recebendo um forte apoio assim como uma forte resistência. A resistência testemunha a natureza radical da renovação papal da doutrina básica da Terra e do cosmos como Criação divina. O Papa Francisco será conhecido pelos inimigos que esta encíclica fará para ele, e estes inimigos podem bem ser o seu ponto forte", escreve Herman Daly, economista ecológico estadunidense, professor da Escola de Política Pública de College Park, nos Estados Unidos, em artigo publicado por The Daly, 01-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Na qualidade de cristão protestante, a minha atenção à Igreja Católica tem sido mínima, baseada em grande parte no respeito pela história primitiva da Igreja e pelo amor de uma tia que foi freira. Em tempos recentes, a oposição da Igreja Católica ao controle de natalidade, além dos escândalos de pedofilia e acobertamentos, me afastou dela mais ainda. Como muitos outros, primeiramente vi o Papa Francisco como talvez um sopro de ar renovado, mas também um pouco mais. Depois da encíclica sobre o meio ambiente e justiça escrito por ele, ouso eu esperar que aquilo considerava meramente um “ar renovado” poderia, na verdade, ser o vento do Pentecostes preenchendo a Igreja novamente com o Espírito? Talvez. No mínimo, ele nos deu uma análise mais verdadeira, informada e corajosa do meio ambiente e da crise moral que perpassa os nossos líderes políticos.
Verdade seja dita: a importante questão populacional estava marcada por sua quase ausência. Num discurso de improviso, no entanto, Francisco afirmou que os católicos não precisam se reproduzir “como coelhos”, e apontou para a doutrina católica da paternidade responsável. Talvez ele prossiga nesse sentido em uma encíclica futura. Em todo caso, a maior parte dos leigos católicos deixou, há algum tempo, de ouvir o papa no tocante à contracepção. Essa atitude está expressa em um desenho que mostra uma mamãe italiana abanando o dedo para o pontífice como quem diz: “O senhor não joga o jogo; o senhor não dá as regras”. Discutir a questão populacional não vai mudar as realidades, e não teria suscitado uma oposição oficial, tirando a atenção dos pontos principais da encíclica. Então, seguirei o exemplo de Francisco e deixarei de lado a questão populacional, mas com uma referência ao livro clássico do historiador John T. Noonan Jr., intitulado “Contraception” [1], que lida com a história da doutrina sobre o tema.
As grandes ideias da encíclica são o cuidado da Criação e a justiça, e o fracasso do nosso crescimento econômico tecnocrata em prover justiça e cuidado a ela. Também em debate esteve a integração da ciência e da religião como algo necessário, mesmo sendo caminhos diferentes à verdade. E, sim, o papa apoia o consenso científico sobre a realidade das mudanças climáticas, mas a encíclica vai muito além desse tema. [2]
A voz de Francisco não é, evidentemente, a primeira a vir entre os cristãos na defesa da Criação. Além de seu nome se inspirar no santo de Assis, Francisco também reconheceu o Patriarca Ecumênico Bartolomeu, da Igreja Ortodoxa Oriental, quem há duas décadas vem organizando congressos e proferindo palestras sobre a defesa dos rios e oceanos, incluindo o Mar Negro. A Igreja Ortodoxa perdeu uma geração de fiéis para o ateísmo comunista, mas está ganhando de volta muitos jovens atraídos pela teologia da Criação e as ações que ela inspira. Os cristãos protestantes convencionais progressistas e, mais recentemente, os evangélicos conservadores também se encontraram na consciência ecológica. Desse modo, a encíclica de Francisco parece ser uma pedra angular que unifica as principais divisões do cristianismo, pelo menos no reconhecimento fundamental de que temos negligenciado vergonhosamente o dever de cuidar da Terra e de compartilhar, de forma mais equitativa com o outro, com o futuro e com as demais criaturas, os recursos que ela oferece. Muitos ateus concordam com isso também, ao mesmo tempo em que dizem que esta concordância nada deve à tradição judaico-cristã. Historicamente isso é questionável, mas, mesmo assim, o apoio deles é bem-vindo.
Não se deve confundir a teologia da Criação com opiniões que negam a evolução, contrárias à ciência, sustentadas por certos literalistas bíblicos cristãos (erroneamente chamados de “criacionistas” ao invés de “literalistas”). O dever da humanidade de cuidar da Criação, por meio da qual os seres humanos evoluíram para refletir pelo menos a imagem de seu Criador, entra em conflito frontal com a idolatria dominante atual do crescimento e do gnosticismo tecnológico. A ideia do dever de cuidar da Criação também entra em conflito com o determinismo materialista dos fundamentalistas neodarwinistas que veem a “Criação” como o resultado aleatório da multiplicação de probabilidades infinitesimais por um número infinito de tentativas. A implicação política do determinismo (mesmo se estocástico) é que a política intencional é ilusória, seja em termos práticos, seja em termos morais. O cuidado da Criação é também incompatível com a grande mentira segundo a qual dividir os recursos limitados da Terra é desnecessário porque o crescimento econômico irá fazer ricos todos nós. Francisco chama isso de pensamento mágico. Ele se aproxima da ideia de economia estatal estável, de desenvolvimento qualitativo sem crescimento quantitativo em escala, ainda que este conceito não seja especificamente considerado. Vejamos o parágrafo 193:
“Assim, se nalguns casos o desenvolvimento sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde. Sabemos que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes”.
É por isso que a última frase, onde se lê na versão inglesa do documento um “crescimento diminuído”, parece ser uma tradução não exata da versão espanhola que fala em “decrecimiento” ou da versão italiana “decrescita” (provavelmente os idiomas originais do texto), ideias que deveriam ser traduzidas como “degrowth”, decréscimo, crescimento negativo, o que, evidentemente, é mais forte do que “decreased growth” [crescimento diminuído]. [3]
Laudato Si’ já está recebendo um forte apoio assim como uma forte resistência. A resistência testemunha a natureza radical da renovação papal da doutrina básica da Terra e do cosmos como Criação divina. O Papa Francisco será conhecido pelos inimigos que esta encíclica fará para ele, e estes inimigos podem bem ser o seu ponto forte. Até agora nos Estados Unidos eles não são muitos: o Instituto Heartland, Jeb Bush [filho do ex-presidente George H. W. Bush], o senador James Inhofe, Rush Limbaugh [comentarista político, defensor de posições conservadoras e republicanas], Rick Santorum [advogado e político americano, membro do Partido Republicano], e outros. Infelizmente eles representam bilhões em dinheiro e tem um grande megafone empresarial nos meios de comunicação. Dar a eles o benefício da dúvida pode fazer com que, de fato, pensem que Francisco esteja entregando a Deus o que, na verdade, pertence à oligarquia de César. Mas nem César, nem o mercado, tampouco a tecnologia foi quem nos criou, nem a terra que nos sustenta. Agradeçamos a Francisco por deixar isso bem claro, quando muitos o negam, explícita ou implicitamente.
Notas:
1. John T. Noonan Jr., “Contraception: A History of its Treatment by the Catholic Theologians and Canonists”, Belknap Press, 1986. Noonan demonstra a falta de fundamento bíblico na oposição à contracepção, assim com as origens da doutrina católica no Direito Romano, que foi absorvido ao Direito Canônico. O significado antigo de “proletariado” era “a classe mais baixa, pobre e isenta de impostos, e útil à república principalmente para a procriação dos filhos”. Está claro que a contracepção não era indicado a estas pessoas, embora tolerada aos patrícios. Esse significado literal de proletariado como uma classe prolífica se perdeu quando Marx redefiniu a palavra para significar “não donos dos meios de produção”. Mas a conexão malthusiana com a superpopulação e mão de obra barata permaneceu real, mesmo se minimizada pelos marxistas e pelos católicos.
2. A condenação do papa sobre o comércio de carbono reflete uma incompreensão comum da política comercial e leilão, infelizmente compartilhada por alguns importantes cientistas climáticos. Cf. Joseph Heath, “Pope Francis’ Climate Error”, New York Times, 19-06-2015.
3. Obrigado a Joan Martinez-Alier por chamar a atenção para este detalhe.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pensamentos sobre a Laudato Si’, do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU