26 Janeiro 2017
“Depois de Auschwitz, nenhuma poesia, nenhuma forma de arte, nenhuma afirmação criativa é mais possível.” Quem afirmou isso foi o filósofo alemão Theodor W. Adorno e, obviamente, ele se equivocava: a arte ainda é possível, e até mesmo a arte sobre o Holocausto. No entanto, não há para se alegrar, porque as coisas estão piores do que o previsto por Adorno: o problema não é a “afirmação criativa”, mas sim a recepção experiencial; o problema não é a arte, mas a vida. Hoje, ainda é possível fazer Memória? O ponto é este: a mediação artística tem margens de manobra que a experiência física vê serem obstruídas.
A reportagem é de Federico Pontiggia, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 25-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Isso não é surpreendente, entende-se, mas o fato de destinar a efetiva compreensão da Shoá apenas ao âmbito cultural – exageramos: virtual – abre cenários impensados, traiçoeiros e alarmantes. Para permanecermos nos últimos anos, Jonathan Littell, com “As benevolentes” (2006), nos transmitiu as memórias do oficial das SS Max Aue, envolvidos no extermínio dos judeus: a utilização da primeira pessoa do singular, a compreensível busca de identificação do leitor deslocou mais para cima a barra da repelência e, ao mesmo tempo, da reflexão ideológica.
No âmbito cinematográfico, “O filho de Saul”, do húngaro László Nemes, Oscar de melhor filme estrangeiro no ano passado, apontou para uma identificação sensorial, para uma experiência imersiva no inferno das câmaras de gás e dos fornos, com a cumplicidade de uma visão aproximada, participada, subjetiva, semelhante ao POV (point of view) do pornô ou do first person dos videogames.
Leitor e espectador assumem uma posição moral – imoral, com Max Aue – que, hoje, nos locais físicos da Shoá, de Auschwitz a Bergen-Belsen, não é fácil conquistar: “Ao visitar esses lugares, eu imediatamente senti uma sensação desagradável no fato de estar lá. Sentia como se a minha própria presença fosse eticamente discutível”. É o que afirma Sergei Loznitsa, grande documentarista e diretor ucraniano, que, colocando a câmera na altura humana no campo de concentração de Sachsenhausen, 35 quilômetros ao norte de Berlim, se perguntou “por que um casal de namorados ou uma mãe com a sua criança vão visitar os fornos crematórios em um dia ensolarado de verão?”.
Longe de ceder à desaprovação e à condenação, o seu “Austerlitz”, a partir desta quarta-feira nos cinemas europeus, limita-se à observação fenomenológica do turismo da Shoá: pequenas famílias que, agarrando o “pau de selfie”, buscam o melhor enquadramento debaixo da palavra Arbeit macht frei que desponta no portão de entrada; casais que se imortalizam agarrados ao poste das execuções ou sorrindo na frente das câmaras de gás; grupos que fazem piquenique com vista para as fossas comuns.
Loznitsa toma emprestado o título do documentário do romance de W. G. Sebald, que, sobre o Holocausto, fornece uma abordagem lateral (arquitetônica) e, ao mesmo tempo, excruciante, para pôr em curto-circuito a sobrecarga simbólica de Sachsenhausen e dos outros campos de concentração, e o empobrecimento da experiência in loco.
Paradoxalmente, estar lá é a pior maneira de fazer Memória; estar lá é a pior maneira de entender, sentir, ouvir. E como poderia ser de outra forma quando os espaços e os tempos para a reflexão não são contemplados, se ver tudo e todos do mesmo modo é a única via de fruição?
Nessa massificação da Shoá, o selfie gostaria de ser o antídoto para a despersonalização, a assinatura ao pé da página do anônimo e homologante dispositivo turístico-museal, que, vice-versa, só certifica o paradigma, estigmatizando a perda de sentido.
Seria fácil julgar, ao contrário. Loznitsa, assim como Littell e Nemes, abre à primeira pessoa: perguntamo-nos com ele: “E eu, o que faria?”. Ou, melhor: “O que sentiria?”. Interrogações que ecoam poderosamente em A German Life, documentário a oito mãos (C. Krönes, O. S. Müller, R. Schrotthofer e F. Weigensamer) sobre Brunhilde Pomsel, 106 anos, ex-secretária e estenógrafa do ministro da Propaganda do Terceiro Reich Joseph Goebbels. O rosto sulcado por mil rugas, a memória de ferro, na longa entrevista – a partir do dia 27 de janeiro nos cinemas europeus – intercalada com materiais de arquivo, Pomsel, provavelmente a última sobrevivente do círculo nazista restrito, faz a premissa de que não está quebrando o silêncio “para limpar a consciência”, especifica que “não havia nada de criticável em Goebbels” e, entrincheirando-se atrás do “todos faziam isso”, nega “aqueles que hoje dizem que teriam se insurgido contra os nazistas: estou certo de que são de boa fé, mas, acreditem em mim, muitos deles não teriam feito isso”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A banalidade do selfie: o turismo do Holocausto, entre sorrisos e sanduíches - Instituto Humanitas Unisinos - IHU