21 Janeiro 2017
“Como ensina a teologia e a visão da eclesiologia desenvolvida a partir do Concílio Vaticano II, as diferentes formas de vida na Igreja não podem nem devem ser compartimentos fechados em si mesmos, mas permanecer em correlação e complementaridade, em sinergia e comunhão.”
O comentário é do padre dehoniano italiano Antonio Dall’Osto, publicado no sítio Settimana News, 16-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O atual documento Mutuae relationes [sobre os critérios diretivos para as relações mútuas entre os bispos e os religiosos na Igreja] a ser reformado remonta a 1978. Mas, já no Sínodo dos bispos de 1994, tinha sido proposta uma atualização, mas somente há um pouco mais de dois anos é que o Papa Francisco deu um mandato formal para revê-lo e reformulá-lo. Durante o mês de janeiro de 2017, em uma plenária interdicasterial, será discutido um esboço, e haverá também uma importante novidade, porque está previsto que, no futuro documento, serão tratadas as mutue relationes entre os pastores e a vida consagrada no seu conjunto, homens e mulheres.
Mas, antes de nos perguntarmos como será o novo documento, é oportuno nos determos para descrever brevemente como se apresenta a situação atual e nos perguntarmos quais são os princípios irrenunciáveis a partir dos quais se deve começar.
Quem falou difusamente sobre isso foi Dom Carballo, secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, em um articulado discurso à 23ª Assembleia da Conferência Espanhola de Religiosos, em novembro passado, do qual obtivemos estas informações.
Em um olhar para a situação atual, Dom Carballo destacou os elementos positivos presentes e as dificuldades ou elementos negativos que ainda persistem. Entre os aspectos positivos, encontram-se – disse – a gratidão, o reconhecimento e a estima por parte dos bispos e de todo o povo de Deus pela presença e pela obra dos consagrados nas Igrejas particulares e a sua tristeza quando, por várias razões, estas desaparecem; o impulso missionário “indiscutível”, a ponto de poder dizer que, apesar da crise vocacional, são os religiosos que continuam oferecendo a sua ajuda às Igrejas nas terras de missão; a proximidade dos religiosos/as aos pobres, no sentido de que são eles os primeiros ou, melhor, os únicos a irem às periferias materiais e espirituais de que tanto fala o Papa Francisco; a riqueza e a variedade dos seus carismas, que constituem um dom imenso do amor de Deus à sua Igreja; a inventividade da caridade, que se manifesta principalmente nas obras apostólicas (paróquias dirigidas pelos religiosos, assistência espiritual, obras assistenciais...); além disso, a grandíssima estima pela vida contemplativa feminina e dos mosteiros, definidos como verdadeiros pulmões espirituais das dioceses, verdadeiros oásis do espírito.
Entre os elementos negativos, no entanto, Dom Carballo assinalou: a diminuição das vocações, o envelhecimento do pessoal e a atomização das comunidades; o risco do secularismo e do aburguesamento; a persistência de uma visão funcional da vida religiosa: os religiosos criticam os bispos por desconhecerem a visão profética da vida consagrada, por não respeitarem os carismas e considerarem os religiosos por aquilo que fazem e não por aquilo que são. Outro ponto negativo: o pouco diálogo entre as duas partes: “Os religiosos dizem que os bispos pedem o diálogo, mas, depois, nunca o oferecem”, enquanto “os bispos rebatem que é difícil dialogar com os religiosos”.
Outras dificuldades são: a destinação das casas dos religiosos; os bispos “lamentam que eles só pensam no lucro econômico, sem levar em conta as necessidades das dioceses”, e os religiosos, por sua vez, respondem que os bispos “só querem se apropriar gratuitamente dos seus bens, ignorando as necessidades dos institutos”; o abandono das periferias: os bispos criticam os religiosos porque abandonam as zonas pobres e abandonadas para se concentrarem nas grandes cidades. Por fim, o desafio da formação que representa outro tema de conflito, porque, de acordo com os bispos, alguns institutos preferem levar os seus formandos para a Europa, com o risco frequente de não voltarem mais aos lugares de origem ou de serem arrancados da sua cultura.
Concluindo essas observações, Dom Carballo, porém, confirmou: “Dizer que tudo vai bem seria um grande exagero; dizer que tudo vai mal seria igualmente exagerado”.
É claro que, como ensina a teologia e a visão da eclesiologia desenvolvida a partir do Concílio Vaticano II, defende Dom Carballo, as diferentes formas de vida na Igreja não podem nem devem ser compartimentos fechados em si mesmos, mas permanecer em correlação e complementaridade... em sinergia e comunhão.
Portanto, há princípios irrenunciáveis a se manter em mente. Acima de tudo, a justa relação entre o universal e o particular. Como Bento XVI já havia lembrado, “nas mútuas e saudáveis relações, para que possam ser verdadeiramente fecundas, os religiosos devem levar em conta as exigências pastorais da Igreja, enquanto os bispos não podem ignorar ou abrir mão da especificidade carismática dos religiosos e do seu serviço à Igreja universal”. Não deve haver, portanto, “nem absorção nem isolamento, mas comunhão”.
Um segundo princípio é a equilibrada relação entre isenção e justa autonomia. É o campo em que se encontra a maioria dos conflitos por falta, por parte dos bispos, do respeito pela justa autonomia ou isenção dos religiosos, ou por uma má interpretação, por parte destes últimos, da justa autonomia ou isenção.
O terceiro princípio é a exigência de partir de uma eclesiologia de comunhão, da qual deriva “a necessidade de caminhar em abertura recíproca, comunicação, disponibilidade e cooperação”.
Daí um quarto princípio: a coessencialidade dos dons hierárquicos e carismáticos; um tema amplamente desenvolvido no documento da Congregação para a Doutrina da Fé Juvenescit Ecclesia, onde se afirma: “A distribuição dos dons hierárquicos remonta à plenitude do sacramento da ordem episcopal, que é exercido em comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do Colégio. Os dons carismáticos, derivantes do único Espírito, que faz de toda a Igreja e de cada um dos seus membros o Seu templo, são por Ele distribuídos livremente, para que a graça do sacramento dê os seus frutos para a vida cristã de modos diferentes e em todos os seus níveis”.
Por isso, ressalta Dom Carballo, “a hierarquia não pode acolher os dons carismáticos, no nosso caso, a vida consagrada, como um mal menor ou como um mal necessário, mas com alegria e gratidão para promovê-los com generosidade e acompanhá-los com paterna vigilância”. Consequentemente, “as relações entre os dons hierárquicos e carismáticos não podem ser vividas no confronto ou na justaposição, dando origem à oposição entre Igreja institucional e Igreja carismática”.
Por fim, é preciso partir de uma igreja de muitas nuances, no sentido de que “a missão é única, e as suas expressões concretas são multiformes”.
Se olharmos agora para o futuro das mutuae relationes, para além de tudo o que pode ser dito, defende Dom Carballo, são três as atitudes a serem afirmadas: o encontro, o diálogo e o respeito. “Encontro entre pastores e o resto do povo de Deus, christifideles laici, consagrados e presbíteros; um encontro não simplesmente formal, mas fraterno, de irmão com irmão”. Em segundo lugar, “um diálogo em que cada uma das partes se deixa tocar, atravessar pela palavra do outro”. Por fim, o respeito “acima de tudo como pessoas que possuem uma dignidade que deriva de Deus; respeito pela missão que cada um recebeu dentro do povo de Deus. Todos formamos um só corpo, e nenhum membro pode dizer ao outro: ‘Eu não preciso de você’ (1Co 12, 21), mas nem todos temos a mesma missão, para uma só é a cabeça, Cristo (cf. Rm 12, 4-5)”.
“Não é fácil assumir cordialmente essas atitudes – afirma Dom Carballo – e também não é fácil assumir os princípios indicados como indispensáveis. Mas devemos dizer que, sem essas atitudes e princípios, não se pode falar de mutuae relationes.”
Em outras palavras, é indispensável uma “formação adequada tanto dos bispos quanto dos religiosos, de modo que uns e outros adquiram uma clara visão da eclesiologia do Vaticano II e, portanto, do lugar que cada um ocupa na Igreja, da missão e do lugar que cabe ao bispo como pai e pastor da Igreja particular”.
Mas os religiosos também “são chamados a conhecer a teologia da Igreja particular e o lugar que nela ocupa o bispo, que não é um simples coordenador, mas ‘pai e pastor’, o grande promotor da comunhão e da articulação dos carismas e dos ministérios na Igreja particular, bem conscientes de que catolicidade, universalidade e solidariedade estão em relação entre si no ministério do bispo”.
Se quisermos que a comunhão seja efetiva e não só afetiva, e se quisermos dar consistência à Igreja como casa de comunhão para a missão, é necessário ativar alguns dinamismos apropriados. Acima de tudo, a oração e a reconciliação: “A Igreja é eucaristia em que a bênção de Deus, a reconciliação, a escuta da Palavra, a renovação da aliança, a ação de graças e a disponibilidade para a missão nos levam a melhorar as nossas relações”.
Em segundo lugar, o diálogo. O documento Vita consecrata fala de um diálogo “aberto e cordial entre bispos e superiores dos diversos institutos” e também de um “diálogo constante dos superiores e das superioras com os bispos”. E na Pastores gregis, ao bispo é pedido que exerça “evangelicamente a sua autoridade, saiba dialogar com os seus colaboradores e com os fiéis para fazer crescer eficazmente o recíproco entendimento” (n. 19).
Outros dinamismos importantes são: o conhecimento e a estima recíproca, fatores indispensáveis para entrar com confiança em diálogo; a participação e a corresponsabilidade, cujo fundamento reside na participação dos leigos no tríplice ofício de Cristo, vivida na comunhão, e fazê-la crescer, a cujo serviço se colocam as diversas funções complementares e os carismas. “A comunhão operacional entre os diversos carismas garantirá, além de um enriquecimento recíproco, uma eficácia mais incisiva na missão.” No entanto, é importante que “essa participação e colaboração seja estruturada e sistemática”.
São diversas as áreas e os âmbitos para se concretizar e tornar efetiva a colaboração. Acima de tudo, a área da espiritualidade: “A partir de uma espiritualidade robusta, surgem testemunhas, profetas, apóstolos e mártires, como na comunidade de Jerusalém”. Em segundo lugar, a da formação, que, “vista à luz da eclesiologia de comunhão orgânica, e, portanto, com base na diversidade e complementaridade das vocações, predispõe à colaboração e a caminhar em harmonia. Quando há uma boa formação teológica, pastoral e espiritual, aumenta a capacidade de apreciar o diferente e se favorece a compreensão recíproca’.
Além disso, a colaboração na área do governo, tanto nos institutos, quanto por parte dos bispos. Isso implica o cuidado das pessoas, para que possam viver a sua vocação e ofereçam às Igrejas particulares a riqueza dos carismas do seu instituto e do seu ministério. Além disso, o cuidado particular da vida fraterna em comunidade. A Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica e a Vita consecrata pedem que se revalorize a vida comunitária. Por isso, “aceitar, a título excepcional, casos de religiosos e religiosas que vivem sozinhos por razões graves ou serviços missionários especiais, nunca é um ideal. Em vez disso, deve ser normal que a vida e o apostolado emanem da comunidade”.
Outra área de colaboração diz respeito aos projetos pastorais. É preciso ter uma atenção especial para evitar os paralelismos, que são inúteis, para não dizer contrários ao espírito de comunhão e das mútuas e saudáveis relações.
“Nas programações, é oportuno que estejam presentes de maneira institucionalizada, e não só a título pessoal ou encargo de circunstância, os superiores maiores ou os seus delegados. Quando se tenta assinalar, ao mesmo tempo, prioridades, objetivos e meios, há mais envolvimento.”
Também existem problemas concretos dolorosos, tanto para os bispos, quanto para os superiores maiores, devidos às vezes a declarações, escritos, discursos, comportamentos em contraste com o senso eclesial... Mas não são tanto os casos de desobediência que preocupam, mas sim o individualismo que leva a viver e a agir de maneira independente. É um fenômeno que muitas vezes se apresenta como afirmação errônea dos valores pessoais e que desgasta qualquer um que exerce o serviço da autoridade (cf. VC 43).
Um campo privilegiado de colaboração também é o da pastoral vocacional, “em que deveriam estar envolvidos todos os membros da comunidade, cada um de acordo com seu próprio ofício, sob a direção dos bispos”.
Outro âmbito diz respeito à revisão das presenças, dos serviços e da inovação pastoral. As novas fundações, as supressões das obras e a inovação pastoral – afirma Dom Carballo – são motivos frequente de discórdia. A reorganização das obras será criativa e fonte de indicações proféticas se houver a preocupação de lançar sinais de novas formas de presença, mesmo que de número modesto, para responder às novas necessidades, sobretudo àquelas presentes nos lugares mais abandonados e esquecidos. Por fim, quanto à inovação evangelizadora e pastoral, deve valer o princípio: “A novos desafios, novas respostas pastorais, mas não isoladamente, e sim a partir da pastoral de conjunto”.
“O documento Mutuae relationes de 1987 - concluiu Dom Carballo – deu os seus frutos. Foram copiosos os resultados alcançados na convivência e na pastoral após a sua publicação. No entanto, nas Igrejas particulares, continuam se manifestando distâncias, contrariedades e conflitos. O que está acontecendo? Devemos ser realistas e aceitar os elementos objetivos que dificultam as boas relações. Por um lado, há a diversidade dos dons, fruto da ação do Espírito, que envolve...; por outro, é preciso pensar que os conflitos são inerentes à vida humana que é repleta de limites e de incompatibilidades, dos quais não se podem excluir o egoísmo e o pecado... O grande desafio que temos pela frente no milênio que começa, consiste em fazer da Igreja uma casa e escola da comunhão, se quisermos ser fiéis ao desígnio de Deus e responder também às profundas esperanças do mundo. O que está em jogo hoje não são as competências, nem os cargos dos membros da Igreja, mas sim o anúncio do Evangelho do Reino que implica testemunho, comunhão e de serviço... O nosso tempo pede unidade, não divisão, reconciliação, não litígio. É necessário, hoje mais do que nunca, conjugar, em todos os casos, vozes e tempos, expressões como harmonia, sinergia e escuta do Espírito, busca e aprendizado sincero, diálogo humilde, comunhão orgânica, respeito à diversidade e à liberdade do Espírito, interdependência coordenada, maturidade eclesial, referência recíproca. O nosso tempo é de ‘conversão’, de vida evangélica, de agir de forma responsável, segundo a graça e o ministério recebidos para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo... e de promover uma espiritualidade de comunhão ‘para que o mundo creia’ (Jo 17,21).”
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Bispos e religiosos: rumo a novas "mutuae relationes" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU