18 Outubro 2016
Em Bob Dylan, "o grande código bíblico continua sendo um texto de referência recorrente na sua produção artística: ele o lê essencialmente como poeta, como insuperável repertório de metáforas e de parábolas. Mais uma referência cultural do que pedra angular pessoal."
A opinião é do teólogo italiano Brunetto Salvarani, professor da Faculdade Teológica da Emilia Romagna. O artigo foi publicado no sítio Settimana News, 14-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era previsível que, no anúncio do Prêmio Nobel para Bob Dylan, que ocorreu, como de costume, na segunda quinta-feira de outubro, muitos seriam os resmungos por parte daqueles que têm uma concepção pura e dura da literatura. Assim foi, de fato, esquecendo que, por exemplo – seguindo a sua hipótese de trabalho – nem Francisco de Assis, que fazia o Cântico do Irmão Sol ser acompanhado pela música, nem Francesco Petrarca, cujas rimas eram regularmente lidas em voz alta e complementadas por instrumentos musicais, teriam sido premiados; mas também não, na verdade, o nosso Dario Fo, mais bobo da corte e comediante de altíssimo nível do que literato em sentido estrito, nem a esplêndida Svetlana Alexijevich, premiada no ano passado pelos acadêmicos suecos, mais ensaísta e jornalista sui generis do que escritora tradicional.
Ora, é a noção de literatura que se ampliou e se diversificou, de modo que o reconhecimento ao compositor estadunidense nada mais é do que a fotografia de um fato, referido àquele que, mais e melhor do que qualquer outro, semelhante apenas ao canadense Leonard Cohen, soube dar voz e textos e música aos ideais de paz, justiça social e fraternidade de três ou quatro gerações.
Eu gosto de lembrar que a referência à Bíblia é uma bússola constante ao longo do caminho criativo do Dylan, de família judaica e iniciado ao judaísmo com a cerimônia do bar-mitzvá em 1954. Boa parte dos seus primeiros sucessos, a partir da célebre Blowin' in the Wind, se inspira em passagens dos livros de Ezequiel e Isaías, tanto que "a sua obra poderia ser lida como uma espécie de repetição da Bíblia, uma grande história de retorno ao paraíso perdido" (A. Carrera).
A partir das suas memórias juvenis (ele nasceu em Duluth, Minnesota, em 1941), é possível captar um sentimento de pertença à comunidade judaica nuançado e fraco. Ele teve uma primeira aproximação ao texto bíblico em família, que se tornou mais sistemática com a frequentação do rabino para a preparação do bar-mitzvá, mas o ambiente em que ele cresceu não era nada fácil: depois da adolescência, registram-se os primeiros conflitos com o pai, Abe, cujo caráter autoritário e os costumes burgueses combinam-se muito pouco com o caráter do filho, inquieto e rebelde a ponto de eleger como heróis os intérpretes da juventude queimada da época, os vários James Dean e Marlon Brando.
Dylan não só rejeita a educação familiar recebida, mas também se torna um dropout, desvinculado de qualquer dever em relação à família e à sociedade. No entanto, o grande código bíblico continua sendo um texto de referência recorrente na sua produção artística: ele o lê essencialmente como poeta, como insuperável repertório de metáforas e de parábolas. Mais uma referência cultural do que pedra angular pessoal.
No entanto, em certo ponto do seu caminho, Bob chega a praticar a música como um ato de fé: ele sabe que tem um público amplo consigo, ele sabe que possui um carisma capaz de fascinar as plateias. A esse respeito, é exemplar a famosa e controversa trilogia cristã, três álbuns gravados entre 1979 e 1981, em um momento particular da sua vida.
Em meados dos anos 1970, a relação com a esposa Sarah começa a se deteriorar, entre infidelidades do marido, brigas e incompreensões, até desembocar no divórcio em 1977: a crise tem como resultado a conversão à religião cristã e, em particular, à Vineyard Fellowship, Igreja evangélica fundada pelo pastor Ken Gulliksen, perto da qual ele passou alguns meses, cinco dias por semana, estudando a Palavra de Deus.
Daí nascem os discos – Slow Train Coming, Saved e Shoot of love – nos quais Dylan não se poupa em cantar a nova fé, recorrendo à forma do gospel, com canções, no conjunto, decepcionantes. Se hoje, no saldo das críticas que choveram naqueles tempos sobre a cabeça do reborn, do "renascido em Cristo", podemos concordar sobre o excelente cuidado dos arranjos e sobre as capacidades vocais ostentadas na ocasião, certos textos estão a anos luz das provas anteriores: "Quando a destruição chegar subitamente / e não houver tempo para dizer adeus / você já decidiu onde vai querer estar / no céu ou no inferno? / Você está pronto? Você está pronto?".
A canção Are you ready? está inserido em Saved, álbum com o qual ele sai definitivamente do armário, usando tons tão peremptórios que correm o risco de beirar o fundamentalismo. Aqui, a Bíblia de Bob é implacável, não dá descontos, exige uma fé "agarrada a uma rocha sólida" (de Solid Rock).
Para encontrar canções de sabor bíblico, mas também artisticamente bem sucedidas, convém voltar ao Dylan clássico, o das estreias. Como A hard rain’s a-gonna fall (de Freewheelin’ Bob Dylan, de 1963), escrita na época da crise dos mísseis em Cuba, que inspirou gerações de músicos: "Eu vi um bebê recém-nascido com lobos selvagens ao redor / Eu vi uma estrada de diamantes com ninguém nela / Eu vi um ramo preto com sangue que continuava pingando / Eu vi uma sala cheia de homens com seus martelos sangrando / Eu vi uma escada branca toda coberta com água / Eu vi dez mil falantes cujas línguas estavam todas quebradas / Eu vi armas e espadas afiadas nas mãos de crianças pequenas / E é uma forte, e é uma forte, e é uma forte, e é uma forte, e é uma forte chuva que vai cair".
A música, lida em chave de protesto contra a corrida armamentista e o medo de uma terceira guerra mundial que parecia iminente, transcende o seu primeiro nível de leitura e adquire um significado universal graças à presença de diversas referências bíblicas. Acima de tudo, o uso das numerações, típicas do Antigo Testamento (12 montanhas enevoadas, seis estradas contorcidas, sete tristes florestas, 12 oceanos mortos, dez mil milhas na boca de um cemitério, 12 mil pessoas que falavam, 100 tamborins, 10 mil pessoas sussurrando); depois, as imagens, simbólicas ou não, dos eventos catastróficos. A hard rain’s a-gonna fall é o primeiro de uma longa série de canções em que Dylan usaria tons proféticos para conta a maldade do mundo e a necessidade de uma mudança profunda.
Também no terceiro disco (The times they are a-changin’, 1964) encontram-se músicas desse tipo: em When the ship comes, ele canta que "os mares se dividirão / e os navios vão colidir / e as areias na costa estarão tremendo. / Então, a maré ressoará / e o vento baterá/ e a manhã começará a surgir / ... e as rochas na areia / se levantarão orgulhosamente, / na hora em que o navio chegar / ... os inimigos irão aparecer / ainda com sono nos seus olhos / e pularão de suas camas e pensarão que estão sonhando / ... então, eles levantarão suas mãos / dizendo "Vamos atender todas as suas demandas", / mas vamos gritar da proa "seus dias estão contados". / E como a tribo do faraó, eles serão submersos pela maré e como Golias serão derrotados".
Curiosamente, uma das suas melhores canções relativamente recentes, do ano 2000, remete a The times they are a-changin’, tanto no título (Things have changed, as coisas mudaram), quanto na abordagem, também, de fim de mundo: "Estive andando 40 milhas em uma estrada ruim / Se a Bíblia estiver certa, o mundo vai a explodir".
Uma longa fidelidade à Escritura, para além das reviravoltas existenciais, para o menestrel de Duluth, que agora subiu à glória literária. Repitamo-lo, de modo totalmente merecido.
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Bob Dylan, um Nobel que entende de Bíblia. Artigo de Brunetto Salvarani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU