08 Outubro 2016
A educação é futuro, presente e passado do país. Como um direito, a escola pode contextualizar a vida humana no emaranhado de histórias que foram contadas e contribuir para que muitas outras sejam recontadas de forma autônoma, diversa e plural. Por outro lado, os movimentos que pregam uma educação que apenas repassa informações, e estimula o individualismo, defendem a história exclusiva da submissão ao controle e poder social dominante. É nessa disputa política que se lançam as chaves para, por exemplo, ignorar, reforçar ou combater a Indústria da Seca.
A reportagem é de Danil Lamir, publicada por Ponto Crítico, 06-10-2016.
Aos doze anos de idade, a reflexão crítica da própria história influenciou um processo de libertação para Florisval Antônio Costa. Na época, em 1966, se iniciava o longo período do regime militar. As conquistas e direitos sociais estavam sendo extintos. Na educação não era diferente. O cancelamento do Programa Nacional de Alfabetização, idealizado por Paulo Freire, era um exemplo de retrocesso social. No interior de Alagoas, a escola não chegava até Florisval. Mas a consciência crítica sobre o poder político e social da educação conduziu Florisval a protagonizar um processo de transformação.
“Fiz uma viagem com um amigo meu, e vi que todos os garotos e garotas do local estavam estudando. O pessoal tinha uma linguagem e uma forma de expressão diferente. Eu não sabia nem ler o itinerário do ônibus. Foi terrível para mim. Quando voltei para casa decidi procurar alguém que pudesse me ajudar nesse sentido”, relembra Seu Florisval, aos 62 anos, no sítio Santa Rosa, em Craíbas (AL), onde mora.
Hoje, Seu Flor, como é conhecido, é um Educador Popular. O diploma impresso é um atestado. A ação social permanece como algo ainda mais importante. Ainda na adolescência, o agricultor organizou a comunidade para conquistar o direito de ler e escrever. Sem escolas próximas, articulou, com mais cinco amigos, a presença diária de um educador que viajava 25 quilômetros de bicicleta, para apresentar o domínio das primeiras letras ao grupo. Décadas depois, muitas andanças com a educação libertária foram dadas. Outras vão sendo planejadas e renovadas. Seu Flor faz parte da ASA Alagoas e participou recentemente da direção do vídeo-documentário A Grande Seca, estratégia para favorecer uma educação para a Convivência com o Semiárido.
A história de Seu Flor é uma das muitas que se juntam e se misturam numa grande bandeira coletiva pela permanente modificação do Semiárido, sobretudo, pela ótica pedagógica. A perspectiva de transição do combate à seca para a convivência com o Semiárido surge da conscientização de mulheres e homens sobre um novo olhar para a região, quando os fluxos de vivências e saberes populares compartilhados exigem mudanças sociais e definição de políticas públicas específicas para a região.
Entretanto, há interesses contrários às viagens de bicicleta por uma educação libertária nas comunidades ou mesmo pela efetivação de uma ampla rede de educação no Semiárido. Manter o status quo é interessante para quem se alimenta das moedas, antigas ou atuais, do capitalismo mais selvagem. Neste olhar, a educação não pode libertar, mas sim alienar.
“A Indústria da Seca necessita de mão de obra barata, quando não, gratuita ou escrava. A Indústria da Seca é pensada em função de alguns empresários, que antigamente a gente chamava de ‘coronéis’. Hoje esses ‘coronéis’ são os grandes empresários capitalistas. Essa perspectiva da Indústria da Seca necessita que se mantenham as pessoas na ignorância e na pobreza. É pensada para que as pessoas que não lutem pelos seus direitos para, então, se manter o seu sistema de produção de riquezas. Essas riquezas são construídas com o trabalho das pessoas, mas o acúmulo vai para quem detém os meios de produção”, destaca Cleusa Alves, assessora da Cáritas Regional Nordeste III.
Escola sem Partido – Os donos dos meios de produção monopolizam também o poder de narrativa social. Há cinquenta anos, Seu Florisval vivenciou uma experiência que descortinou a necessária democratização do poder da expressão, fruto do acesso à educação. A educação libertária é, sobretudo, um caminho para pluralizar a voz política através da linguagem e da conscientização. No sentido contrário, o anteprojeto da chamada “Escola sem Partido” (PLS 193/2016) é uma estratégia partidarizada pelo conservadorismo político e hegemônico que há séculos concentra bens, sejam eles materiais ou simbólicos.
O PLS 193/2016 estabelece “deveres” para o corpo docente das escolas. Ao utilizar termos como “professor não é educador”, o anteprojeto quer desconstruir o pensamento crítico nas escolas. A autoria do PLS 193/2016 é do senador Magno Malta (PR-ES) e está aberta a consulta pública. Além do âmbito nacional, alguns estados e municípios estão seguindo a tendência da chamada “Lei da Mordaça” nas escolas.
Em Alagoas, a Assembleia Legislativa foi a primeira a promulgar um projeto com as proposições de uma “Escola sem Partido”. No dia 10 de maio deste ano, foi aprovada a Lei 7.800/2016, conhecida como “Escola Livre”, de autoria do deputado Ricardo Nenzinho (PMDB). O projeto está sendo questionado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), no Supremo Tribunal Federal, no último dia 24 de agosto.
No Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, as “ideologias conservadoras” da Escola sem Partido estão com projetos em tramitação nas respectivas assembleias legislativas. No âmbito municipal, o município paranaense de Santa Cruz do Monte Castelo foi a primeira a fixar os deveres dos professores nas salas de aula. Em Feira de Santana, a candidatura do policial Jeferson Almeida (PSDC-BA) defendeu uma “educação sem doutrinação” na campanha para a Câmara de Vereadores deste ano. Os 318 votos computados não foram suficientes para que Jeferson Almeida ocupasse uma cadeira da na Câmara.
Silenciar a ideologia e cortar as possibilidades diversas de conteúdos contextualizados nas escolas é uma clara manipulação contra um princípio constitucional: a pluralidade de ideias. Considerando a escassez de materiais didáticos que hoje contextualizem o Semiárido, e sem a liberdade de expressão, educandos e educandos estariam proibidos, por exemplo, de considerar as opressões da Indústria da Seca ou os contextos sociais, além dos números da exportação, que estão por trás do agronegócio.
No campo, a “Escola sem Partido” poderia ser associada, por exemplo, a perspectiva da assistência técnica que segue “de cima para baixo”, numa difusão “neutra” de um padrão que esquece uma essência fundamental nos processos educativos: o saber popular. As propostas de uma metodologia por uma “conhecimento desumanizado” ganharia mais força nas escolas.
“Paulo Freire desconstruiu o padrão em que foram pensados os subalternos e os oprimidos. Isso porque ao longo da nossa história, desde o período colonial, quando se gritava ‘Terra à vista’, alguém deve ter dito a Cabral que tinha gente atrás da moita. Mas não se considerava gente. Decretaram que os índios não eram humanos”, ressalta Miguel Arroyo, sociólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
À luz da teoria Freiriana, é possível relacionarmos a educação com vários outros direitos humanos. Negar a humanidade dos índios foi uma estratégia de se negar o direito à terra aos habitantes de origem do território brasileiro. Ao contrário de dissimular uma “neutralidade” para as escolas, a educação contextualizada para o Semiárido, necessariamente, é uma forma de alimentar uma escola partidarizada – sem a necessidade de partidos políticos – com a cidadania.
Contextualizar um olhar sistêmico do Semiárido, por exemplo, é uma das preocupações de Seu Florisval nas atividades de educação popular: “Por que não sabemos que 40% do planeta é de regiões semiáridas? Quais as riquezas que existem na nossa região semiárida?”. Além disso, o educador popular lembra a importância de gestão das muitas formas de informação existentes. Hoje, além dos poucos materiais didáticos que são produzidos por organizações sociais, Seu Flor destaca as possibilidades de aproveitamento didático de ferramentas virtuais e eletrônicas, como as redes sociais e os smartphones nos processos educativos pelo Semiárido rural.
Por outro lado, além da dimensão metodológica, os temas da educação e da comunicação estão associados quando se pensa o agendamento público pelo modelo de escola no país. A “Escola sem Partido” impõe um processo que tenta desconsiderar as pautas populares nas instituições de ensino, seja no campo ou na cidade. Há um atropelamento da democracia. Curiosamente, ao mesmo tempo em que as “Escolas sem Partido” tentam ditar alguns deveres aos professores, os direitos de alunos e alunas que ocupam escolas em vários estados do país são ignorados na opinião pública.
Ao mesmo tempo em que a “Escola sem Partido” prega uma “neutralidade” no ensino, as grandes empresas de comunicação ainda se intitulam como “imparciais” no jornalismo. Apesar desse “casamento de isenção” das instituições de ensino e comunicação, o debate sobre temas como sucateamento das escolas, privatizações, qualidade de ensino e condições de trabalho dos docentes não ocupou espaço manchetes nos jornais e nas TVs.
“A educação como repasse de informações não é feita de forma despretensiosa. Ela não é feita de forma ingênua. Ela também tem uma intenção. Essa educação que não educa, que apenas repassa conteúdos é feita de forma intencional porque para o sistema capitalista não é interessante que as classes trabalhadoras, que os empobrecidos pensem, analisem, reajam, reflitam, tenha capacidade de proposição”, destaca Cleusa Alves.
Uma experiência de Política pública
A Lei Municipal 041/2014 de Tamboril, no Semiárido Cearense, é uma importante referência de luta popular. Desde 2007, toda rede de educação de Tamboril é composta por escolas de educação contextualizada. Para manter e ampliar as conquistas locais, a Lei 041/2014 obriga que as políticas de educação contextualizadas sejam obrigação do serviço público, independente das gestões municipais. Tamboril possui 4.987 educandos e educandas, além de 418 educadores e educadoras vivenciando processos educativos de forma integral, incluindo técnicas e tecnologias que vão além dos muros das escolas. A escola está aberta a vivenciar o mundo ao redor, dialogando com as pessoas em sua totalidade de vida.
“A gente avalia essas conquistas que alcançamos até hoje como muito positivas. É válido dizer que é fruto de um processo de organização, de unidade dos movimentos sociais que demandaram e vêm demandando e assumindo de fato essa proposta educativa”, avalia Antoniel Silva, da secretaria municipal de educação de Tamboril e membro da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro pelo Estado do Ceará (RESAB-CE).
A universalização da educação contextualizada em Tamboril é fruto de muitas vozes de mulheres e homens que participaram de uma movimentação política, que ganhou mais eco, sobretudo, com a chegada do primeiro bispo da Arquidiocese de Crateús, em 1964, Dom Antônio Batista Fragoso. Além de uma referência metodológica, a educação contextualizada em Tamboril conta com estruturação para o desenvolvimento de uma pedagogia de convivência com o Semiárido.
Uma experiência de Cultura Popular
Apesar da Lei Federal 10.639/2003, não há uma política pública efetiva sobre o ensino da História e Cultura Afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio do país. Em Paquetá (PI), as cores, cantorias, passos e brincadeiras do Reisado da Custaneira é um processo pedagógico que resiste e resgata ancestralidade. A manifestação cultural, literalmente, abre as portas da comunidade quilombola para um banquete de alimentos e saberes no contexto das histórias de origens africanas. As figuras dos Caretas, Boi, Burra, Jaraguá, Ema, Véia do Fogo, Rei e Rainha representam a vida da Comunidade Quilombola da Custaneira.
“Se nós não tivéssemos esse sangue da cultura nas nossas veias o que seria do nosso povo? Essa cultura é o que faz com que o povo se apegue a esse Semiárido, a esse torrão, aprendendo a viver, inclusive bem”, destaca Arnaldo Lima, conhecido como Naldinho da Custaneira, presidente da Associação Comunitária da Custaneira e integrante da Coordenação Estadual das Comunidades Negras, Rurais e Quilombolas do Piauí.
A experiência de Custaneira reflete o pensamento de Paulo Freire que coloca o binômio da cultura e da conscientização como matrizes de pedagogia libertadora. Por outro lado, projetar uma educação “despartidarizada” em Custaneira seria prognosticar uma quebra de metodologia incompleta com os saberes e vivências dos terreiros.
“Todos os rituais até hoje – sagrados e profanos – estão colados à cultura da terra. Se toda a nossa socialização – até nas festas e nas músicas – é colada com os ritmos da terra, que especificidades há para o Semiárido? Para a produção? Para a vida no Semiárido? Uma pergunta muito importante é: qual cultura específica do Semiárido vai servir de educação para a infância e a juventude? Não é só plantar uma hortinha. É algo muito mais radical. O ser humano nasce colado na terra, a nossa cultura nasce enraizada da terra, em nossa forma de produzir. Então a especificidade da nossa forma produzir no Semiárido cria qual cultura? Quais manifestações culturais? Quais saberes? Quais valores? Essa é a preocupação da pedagogia”, questiona Miguel Arroyo, defendendo a concepção de uma “pedagogia da terra”.
Uma resistência pela educação popular e libertadora – A história de luta pelo direito à educação no Brasil, que atravessou décadas entre ditadura e redemocratização, é a esperança do sociólogo Miguel Arroyo contra o processo de despolitização das escolas. Arroyo lembra que o conservadorismo que decretou, por exemplo, a proibição do termo ‘gênero’ em algumas escolas estaduais não está vingando na prática por ser um atropelo diante da essência política consolidada nas escolas do país. Ao mesmo tempo, os movimentos estudantis que ocupam as escolas exigem o reconhecimento de identidades e temas como raça, diversidade sexual e classes sociais, por conta da consciente apropriação do espaço escolar por todos e todas.
“A nossa reflexão, os nossos processos de formação devem saber beber nas fontes do povo, nas fontes das experiências populares para a gente poder alimentar as nossas esperanças e construir o futuro diferente do qual os golpistas estão querendo impor para nós. É preciso alimentar em todas as pessoas que participam dos processos educativos, a consciência de que a força está nas nossas mãos. A capacidade de mudança, de transformação está nas nossas mãos. Já superamos situações anteriores com muita união e muita luta e esse é o momento de mostrarmos a nossa capacidade. E a educação popular e libertadora tem essa função”, avalia Cleusa Alves.
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Educação libertadora é resistência para a vida no Semiárido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU