25 Agosto 2016
Moisés da Silva Pianko, 46 anos, é um dos líderes da associação dos índios Ashaninka do Rio Amônea, a Apiwtxa. A Terra Indígena onde eles se encontram fica no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, na divisa com o Peru. Para chegar até a aldeia são quatro horas de canoa a partir de Thaumaturgo, onde também só é possível chegar de barco ou de avião monomotor. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, dos 14 mil habitantes do município, cerca de 10% é indígena. Eu fui até eles porque a notícia que chegou até mim foi a de que os Ashaninka são considerados uma das etnias brasileiras mais evoluídas espiritualmente, além de serem muito bem organizados e estruturados socialmente. Fui conferir.
A reportagem é de Maria Fernanda Ribeiro, publicado por O Estado de S. Paulo, 23-08-2016.
Fiquei oito dias com eles na aldeia, onde moram cerca de 800 pessoas. A terra foi demarcada em 1992, com um total de 87.205 hectares e foi o resultado de uma luta dos Ashaninka contra a invasão por madeireiros ilegais e pelo reconhecimento do direito ao seu território. No entanto, a maioria do povo Ashaninka está no Peru e não no Brasil. Na aldeia, onde é preciso caçar, pescar e plantar para comer, entendi o verdadeiro significado de viver em comunidade. A moeda de troca não é o dinheiro e a felicidade não está atrelada ao consumo. A luta dos Ashaninka é pela manutenção da cultura indígena por meio da preservação da floresta e dos costumes, como a língua nativa, a produção dos artesanatos e a tecelagem das roupas.
O modo de vida Ashaninka é inspirado na ancestralidade e cuidar da natureza faz parte do cotidiano, com um plano definido de gestão territorial e ambiental, com práticas de manejo de recursos naturais, recuperação de áreas alteradas e degradadas, piscicultura, etnomapeamento e vigilância territorial. Os Ashaninka exercem influência também com ações fora da aldeia, entre elas com a primeira comunidade extrativista criada no Brasil, a Resex Alto Juruá, que perdeu a identidade após o fim do ciclo da borracha e hoje encontra-se dominada ilegalmente por fazendas de gado. Em abril de 2015 os Ashaninka firmaram um contrato com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com o objetivo de promover o manejo e a produção agroflorestal em comunidades tradicionais e indígenas no município de Marechal Thaumaturgo para que sejam criadas alternativas econômica sustentável ao desmatamento.
Os filhos não são criados para serem médicos, engenheiros ou advogados. No regime diferenciado escolar, elas aprendem em aulas práticas a caçar, a roçar, a pescar, a produzir pulseiras, arco e flechas e a entenderem o papel fundamental que exercerão como agentes protetores da terra e da floresta. Para eles e para o mundo. A língua mãe é a nativa e não o português.
A primeira tentativa de entrevista com Moisés foi frustrada. Cheguei no horário marcado, no final da tarde, mas ele havia sido logo após o almoço para caçar e ao cair da noite ainda não tinha retornado. A caça não foi boa e no dia seguinte foi preciso sair novamente em busca de alimento. Com seis filhos para criar, ele não podia simplesmente parar para conversar comigo. No terceiro dia conseguimos nos encontrar, mas antes ele havia passado a tarde mariscando. Os peixes vieram e não só a família dele foi contemplada, mas outras casas da comunidade também receberam peixes frescos para o jantar, no sentido de reciprocidade e troca que comentei anteriormente, em que muitas vezes nem se sabe porque está ganhando. Pode ser por algo que você tenha feito pelo outro há meses. Não há pesos ou medidas. Nem tempo ou valores. E a plenitude só existe para si se ela também estiver presente em todos. Compartilhar está intrínseco.
Há cerca de dez anos a luz chegou para os Ashaninka, mas durou pouco. O barulho do gerador e os fios espalhados pela aldeia não agradaram aos moradores, além de ter havido uma dispersão familiar. Ali, quando a noite vem, é o momento de conversar, contar histórias, lembrar o passado e pensar no futuro e com a luz as pessoas deixaram de se conectar umas com as outras. Concluíram que a luz da lua era o suficiente e quando até ela faltasse o breu era igualmente bem-vindo. Pediram o fim dos fios. Mas agora a luz pode voltar, mas com painéis solares.
Segundo filho entre sete irmãos, Moisés é filho de seo Antônio, o cacique da aldeia, com a branca Piti. Conheceram-se quando extrativistas e índios pertenciam a mesma terra. De khusma – a roupa tradicional indígena tecida pelas mulheres – fumando um cachimbo e deitado na rede, Moisés falou comigo sobre o trabalho deles como guardiões da floresta e as dificuldades enfrentadas em preservar a Amazônia, que já deixa de ser o pulmão do mundo para se transformar no coração.
“A gente morava aqui, mas não em comunidade. Estava tudo espalhado pelo rio, mas depois que nós tivemos a demarcação da terra nos agrupamos em comunidade para podermos fazer o manejo porque se a gente se espalhasse pela área toda não ia sobrar espaço para o manejo. Então nos agrupamos. A comunidade era lá em cima, no rio, então descemos até o ponto estratégico da porta de entrada para evitar os invasores, que caçavam, tiravam madeira. Então juntamos o pessoal para fazer essa comunidade e trabalhar. Na época também nós vimos que o desmatamento prejudicava muito e aqui (na aldeia) tinha duas fazendas de gado grandes. Uma de cada lado do rio. E quando mudamos para cá transformamos ela no que você está vendo hoje, tudo cheio de planta, de frutíferas. E aí conseguimos recuperar a parte da caça com o manejo. Passamos alguns anos sem caçar e criamos áreas de refúgio dos animais para eles se reproduzirem. E eles voltaram.”
“Isso é um trabalho que a gente faz com a comunidade só mostrando a realidade. Se nós temos uma terra para viver, temos que cuidar. E se somos diferentes do outro povo, a gente tem que manter a diferença daquilo que é nosso. Então trabalhamos com essa consciência de preservação e quando chega algum sinal de fora na aldeia, que trazem mudanças que impactam, nós sentamos com todo mundo para sentar e explicar. A gente mostra sempre que para viver e ser reconhecido como povo é preciso preservar a cultura, do jeito que a gente é. De lá de fora a gente tem que buscar o que precisa de uma forma que podemos adaptar dentro da nossa cultura para não prejudicar, mas sim ajudar. Também mostramos para as crianças que nós temos que enxergar isso aqui como um patrimônio, uma riqueza e quem nem todo mundo tem essa riqueza. A gente mostra para a comunidade que isso aqui tem vida, isso aqui dá vida e cuida de muitas vidas e se não cuidamos disso nós estamos nos matando. A gente tem história, de centenas de anos atrás, de como era, de como foi passando o tempo, as mudanças e como nós estamos hoje e como nós vamos ser em mais um século. Então a gente cita os exemplos de outros povos, outros líderes, outras comunidades onde não foram trabalhadas e pensadas a cultura do seu povo e aí muitos acabaram.”
“Não ter luz é uma tradição. A luz chegou aqui, a gente botou o gerador e tudo, mas a primeira coisa que a gente estranhava muito era o barulho do gerador. Não tinha mais o silêncio que a gente estava acostumado. E para manter aqui, como não era nossa cultura, cada lâmpada, cada coisa que estragava ficava difícil de arrumar. E mesmo a fiação, como é lá na cidade, atravessando a aldeia toda, a gente achou que ficava difícil manter a cultura porque estava trazendo uma coisa lá de fora aqui para dentro. Aí a gente pediu para dar um tempo e avaliar a necessidade. Hoje, dez anos depois, a gente pensa em trazer de volta porque tem necessidade de guardar carne, por exemplo, como num pequeno mercado porque a comunidade está crescendo e precisa de energia para preservar o alimento. Tem as frutas também que só aparecem em alguma época do ano e a gente precisa o ano todo. Agora estamos buscando a melhor forma de trazer essa energia, conforme a necessidade da nossa comunidade e não iluminando tudo.”
“Depois que o Bolsa Família chegou na aldeia, vimos uma mudança muito grande na atenção da comunidade nos trabalhos que a gente fazia antes. Parece que o Bolsa Família deu um apoio para a pessoa ficar esperando só isso e não se preocupa mais com a continuidade de trabalhar o artesanato, por exemplo. Antes todo mundo trabalhava, entregava na cooperativa, mas depois do Bolsa Família a maioria das pessoas não trabalhou mais. A gente está conversando com o pessoal e tentando buscar uma forma de resolver esse problema. A gente já fez umas três reuniões na comunidade para falar sobre isso e melhorou um pouco. Mas chegou um tempo que chegava na cooperativa e não tinha nada e estava prejudicando porque os filhos não viam mais os pais fazendo artesanato e corria o risco de começar a perder a cultura. O Bolsa Família é para facilitar um pouco a vida dele, mas não pode ser o meio de vida, como se estivesse bom. É nesse sentido que a gente está trabalhando.”
“A língua Ashaninka é importante para manter a nossa continuidade e as crianças primeiro aprendem o Ashaninka e vão aprender o português na quarta série. O português também é importante para poder se comunicar com as pessoas de fora. Se eu estivesse falando Ashaninka aqui como é que você ia entender? É uma forma de ter o diálogo com o mundo não indígena, entender esses outros mundos e manter uma forma de sobrevivência. Se é a língua que é necessária para fazer vocês me entenderem, então vamos aprender para ter diálogo e fazer as pessoas aprenderem o nosso pensamento, como enxergamos a natureza, como enxergamos você e como vemos os outros povos.”
“Em muitos momentos a discriminação é muito forte com os índios. Parece que eles não aceitam que o índio faça algo melhor do que ele. Você tem a capacidade de desenvolver as coisas e aí já começa um preconceito dizendo que é índio, que não sabe fazer. Ou então quando percebem que estamos ganhando a confiança de mais pessoas aparece gente para denegrir dizendo que estamos fazendo isso para roubar a terra deles. E aquela coisa também de falar que é caboclo e que não dá para competir de igual para igual. Na minha cabeça funciona numa igualdade de não ter discriminação, mas de ter respeito. Mas quando ouço essas coisas (discriminações) eu fico quieto no meu canto porque não gosto de responder.”
“A gente quer barrar pelo menos um pouco esse desmate que tem hoje, pelo menos manter como ainda está. Essa floresta faz parte da vida. Se ela acaba nós vamos tirar da onde? Todo esse peixe, essa caça, esse ar e esse vento fazem parte. Será que nós só vamos acordar quando todo mundo estiver morrendo? Isso que nós estamos tentando fazer é como um exemplo para o mundo. A nossa casa é como estamos pensando uma forma de como a população do planeta pode olhar para isso com mais atenção, entendeu? Por isso que nós conversamos sempre sobre as mudanças, o tempo, o passado e o futuro, para que a gente possa sempre ter as comparações e sonhar lá adiante como vai ser.”
“O objetivo nosso é o de manter a nossa cultura, a nossa forma de viver, e é isso o que a gente queria que as pessoas entendessem. A nossa forma de viver está bem e a gente não entende porque as pessoas não respeitam isso e querem passar por cima só porque a gente é índio. E isso me deixa triste. A gente ouve as pessoas falando ‘não escuta o que ele está falando não que isso é índio que está falando e ele não sabe nada não.’ A gente está vivendo tão bem e por que será que querem mexer com a gente? Não entendo. A luta da gente é de poder manter a nossa continuidade. E por que não respeitar a forma como cada um quer viver? As pessoas acham que podem escolher como os outros devem viver. Aí é que está o erro.”
“A educação que hoje tem aqui é para fortalecer a nossa cultura. Não vamos sair daqui para competir com a educação lá fora. A educação que a gente precisa aqui é para garantir aquilo que é nosso. Nós temos que fazer o diferente. Fazer o que o outro não está fazendo para algum momento nos juntarmos e isso servir para multiplicar. Isso aqui é para o mundo. Tudo o que fazemos de preservação é para o mundo. Não é aqui só para nós. Tem que ter isso aqui como um exemplo para ser avaliado como algo que deu certo e sonhar a altura também. Olhar o passado, o presente e fazer essa avaliação e sentir a natureza. Todo mundo está sentindo as mudanças do clima: sol, calor, as doenças, os peixes se acabando, os rios secando. Será que ninguém parou para olhar? Tem árvore que não dá mais fruta, tem as que dão fora da época, tem as que dão duas a três vezes no ano. O calendário das flores, da vegetação não batem mais e antes era certinho, sabia o mês que tinha que plantar o roçado, quando ia nascer, tudo certinho. Agora de uns 15 anos para cá não bate mais. A gente precisou reaprender e se adaptar. Na verdade estamos nos adaptando a uma nova era. É isso, nos adaptando a uma nova era.”
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