18 Julho 2016
Peter Pál Pelbart nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em 1956. Ao Brasil, chegou ainda rapaz; foi a Paris para estudar na Sorbonne e retornou na década de 1980, quando fez mestrado e doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Filósofo, tradutor, referência nos estudos e nas reflexões sobre a obra de Gilles Deleuze e professor do Departamento de Filosofia e do Núcleo de Estudos da Subjetividade da pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, ele transcende as fronteiras acadêmicas em seus campos de atuação – é fundador e coordenador do grupo Companhia Teatral Ueinzz, no qual trabalha com pacientes e ex-usuários de um hospital psiquiátrico paulistano, e um dos criadores da 1ª edição, voltada para a publicação de “livros-objeto” que abordem e reelaborem questões cruciais da contemporaneidade. E foi sobre a impossibilidade do silêncio, um dos mais agudos temas da atualidade, que ele falou à Continente.
A entrevista é de Luciana Veras, publicada por revista Continente, 30-03-2016.
Eis a entrevista.
O que não conseguimos ouvir por conta do ruído de tanta modernidade?
Diria assim, para começar, que se vive hoje uma espécie de saturação em todos os sentidos: de imagens, palavras, sons, estímulos e excitação. Há uma espécie de mobilização total de todos os sentidos o tempo inteiro. Esse “turbocapitalismo” precisa disso: mobilizar o corpo, os sentidos, capturar a atenção, preencher ao máximo os espaços mentais – e isso, de algum modo, comanda. Quer dizer, não é gratuito, é um certo modo de controle, de plugagem, de monitoramento, de direcionamento. Talvez o mais difícil, praticamente impossível, seja se desplugar, desconectar-se. Hoje, tudo é feito para conexão absoluta, a mais saturada possível.
E esse modelo de conexão absoluta termina por redefinir a forma como as pessoas convivem, não?
Gera, digamos, um automatismo da resposta. Assim como somos levados a responder imediatamente a um e-mail ou a uma comunicação qualquer, imagina-se uma imediatez necessária nessa intersubjetividade. De fato, quando alguém se despluga, fica em silêncio, não responde às expectativas, gera um desconforto, um estranhamento, um desassossego, uma perturbação. Não só na comunicação se dá essa perturbação generalizada. Eu veria isso, numa primeira abordagem mais genérica, em todos os domínios. Essa poluição é um modo novo de controle. Tudo isso que está posto é uma certa política, uma certa economia, uma nova modalidade de produção subjetiva. Claro que, se descermos um pouco mais no detalhe, não podemos tomar isso como uma totalidade dada. Por quê? Por toda parte acontecem outras coisas também... Acontecem os n escapes, as n conexões, as pequenas estratégias de criar...
Existem, portanto, a necessidade e as tentativas de escapar a tudo isso.
Deleuze, o filósofo que acompanho faz tempo, dizia que nós somos atravessados a tal ponto de palavras inúteis, que é preciso criar vacúolos de silêncio para poder ter algo a dizer. Então, essa maneira de criar silêncios para que possam surgir coisas não previstas, não formatadas previamente, é o que alguns artistas, alguns criadores, mas também alguns experimentos coletivos, tentam sustentar hoje. Tentam produzir outro ritmo, outra respiração, outros vazios, outros silêncios para que algo possa fazer sentido novamente. O que acontece nesse excesso, nesse bombardeio generalizado, nessa saturação, é que tudo e nada são a mesma coisa. Perde-se, assim, a capacidade de produção de sentido. Com essa quantidade, esse tsunami de informações, ninguém é capaz de apreender, elaborar, digerir, selecionar, ou mesmo recusar.
Como encontrar o silêncio em meio ao turbilhão, à revoada de pessoas a falar o tempo inteiro – nas suas ligações, nas mensagens ou nos posts nas redes sociais?
Por meio de dispositivos diferentes, que vão sendo inventados. Dou o meu exemplo. Não tenho celular, nunca tive, teria horror a ter. E me enerva muito perceber as situações em que o celular fatura o espaço ou interfere na minha vida. Também não tenho nada contra o celular; trabalho muito tempo em casa, mas sei que quem sai de manhã e só volta à noite precisa tê-lo, precisa dessa conexão. Não faço uma condenação da tecnologia em si, mas do lugar que foi tomando essa interconectividade non stop e invasiva. Mas não tenho fórmula nenhuma de como fazer. O que vejo é que se atingiu um limiar do intolerável em relação a isso tudo.
Suspeito que há uma virada em pessoas que vão abandonando coisas que até ontem pareciam absolutamente imprescindíveis. De repente, largam o carro, até ontem fundamental, e passam a andar de bicicleta ou a pé. Essa rejeição maciça da tecnologia, de algum modo, é uma espécie de situação pouco apocalíptica; tudo parece descartável, tudo pode ser ressignificado.
Hoje em dia, num certo sentido, é preciso produzir silêncio, criar esses silêncios que não estão dados. Uma vez, comprei um aparelho que fazia silêncio, um dispositivo que também fazia seu ruído. Não consegui o grau de autismo e de surdez que queria. Não é assim, pois, nessa concretude. É outra coisa. Mas, com essas deserções ativas, há um êxodo, provável, de certos hábitos que se tornaram quase uma natureza e talvez aí se criem outras coisas.
“O problema não é que nos deixam sós, é que não nos deixam suficientemente sós.” Essa é uma frase de Deleuze que você resgata em um texto. Ante esse ruído generalizado, perdemos a capacidade de ouvirmos a nós próprios na solitude, de abrir espaço para a reclusão?
Não necessariamente o silêncio é para ouvir a si mesmo. É uma condição para ouvir os outros, as outras vozes da História, as várias tribos que nos rodeiam. Creio que hoje há excesso de gregarismo. A vontade de estar junto o tempo todo, com todo mundo, não dá condição nenhuma de ouvir coisa alguma. A solidão não é essa solidão romântica, para se ouvir uma voz interna; é mais da ordem de uma solidão povoada. A solidão pode ser atravessada por várias vozes. Para mim, o ensinamento de Nietzsche com respeito ao gregarismo é totalmente válido. Ele diz que o espírito de rebanho é sempre da ordem da homogeneidade, de um consenso, de uma servidão. Portanto, um certo despregar desse gregarismo é uma condição para outra coisa, para certa singularidade, um dissenso, uma diferença. Não se trata do elogio da solidão enquanto tal, como o aspecto da insularidade, não é isso. É justamente o contrário: é preciso uma solidão para se atingir outras conexões que o próprio gregarismo impede.
Esse comportamento de rebanho, de manada, é evidenciado nas conexões robustecidas pelo capitalismo, como você já colocou em um texto: “Esse capitalismo produz toneladas de uma nova e outra solidão e uma nova angústia – a angústia do desligamento; o capitalismo contemporâneo produz não só esta nova angústia de ser desconectado da rede digital, mas também a angústia de ser desconectado das redes de vida cujo acesso é mediado crescentemente por pedágios comerciais impagáveis para uma grande maioria”. Não seria essa a grande impossibilidade do silêncio?
Esse é um campo de enfrentamento. Peguemos um autor como Franco Berardi, o Bifo, um filósofo e autonomista italiano que, nas décadas de 1960 e 1970, escrevia muito sobre uma noção de “neuromagma”. Ele defende que as pessoas já não discutem, argumentam e decidem, e, sim, são invadidas por ondas que ele chama de “neuromagma” – correntes psicoquímicas de medo, de pânico, de entusiasmo disso ou daquilo.
Em um passado já muito remoto, era o sujeito racional que individualmente decidia sobre o que fazer. Hoje, esse mesmo sujeito está submetido a essas ondas, que exigem outra atitude. A ideia não é retornar saudosamente àquele indivíduo autônomo que foi, sei lá por quanto tempo, nosso ideal humanista, mas assumir algo desse caos contemporâneo e nele fazer algo, como produzir desvios.
Uma coisa seria se relacionar com o presente de maneira entrincheirada: “Tudo é horroroso, vou aqui me encapsular numa resistência completamente radical e ficar à margem”. Essa seria uma maneira antiga de pensar a própria resistência. É possível produzir outras redes no meio desses influxos todos, produzir outros movimentos, individuais e coletivos. Apesar de gostar muito da imagem da solidão povoada, não necessariamente devemos tomar como literal. É possível estar em grupos, em coletivos, onde se inventem outros modos de “espaço-tempo”, outros ritmos e outras maneiras, inclusive, de poder efetuar trocas sem que alguém fale ou precise responder imediatamente.
É essa produção de desvios como forma de resistência que de alguma forma orienta sua experiência com os membros da Cia Teatral Ueinzz?
O povo que frequenta a Ueinzz já tem isso quase incorporado. Eles não precisam falar e ouvir o tempo todo. Não precisam trocar. Cada um está no seu planeta – se preciso, vai até Vênus, volta no meio e está tudo certo. Não precisa estar todo mundo atento igualmente, não existe esse tipo de grupalismo. Buscamos o contrário – a heterogeneidade na arte de acompanhar. Agora, mesmo numa atividade lírica como o teatro ou numa aula, é possível sustentar hiatos e perceber como essas interrupções podem ter efeito perturbador, no sentido mais interessante das palavras. As coisas podem estar soltas também, sem que isso represente uma catástrofe.
Uma última pergunta: diante de tudo que discutimos, qual seria o maior desafio – individual e coletivo?
Inventar dispositivos de interrupção. Surge-me a imagem de freios de emergência de trem. Acontece que, com essa freagem brusca, às vezes podem acontecer descarrilamentos. Que, muitas vezes, são e serão necessários.
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"Tudo é feito para conexão absoluta, a mais saturada possível" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU