20 Junho 2016
Em uma semana pulou de 37 para 45 o número de processos movidos por juízes e membros do Ministério Público do Paraná contra jornalistas da Gazeta do Povo, que publicaram uma série de reportagens, em fevereiro deste ano, tratando de supersalários no Judiciário do Estado. Mas outras novidades relacionadas ao caso também aconteceram: o trabalho da equipe do jornal recebeu o prêmio Liberdade de Imprensa da Associação Nacional de Jornais (ANJ), de 2016, e o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que a moção das ações é um “suicídio institucional”.
A entrevista é de André de Oliveira, publicada por El País, 19-06-2016.
Apesar das boas notícias para os jornalistas, contudo, a disputa judicial continua. Na entrevista o cientista político e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luciano Da Ros, fala sobre problemas históricos do Judiciário brasileiro que, segundo ele, explicam em parte as ações movidas contra a Gazeta do Povo. Dedicando-se a diferentes campos de pesquisa, Da Ros tem um trabalho que foca na eficiência da Justiça no Brasil, levantando dados sobre gastos, transparência, celeridade etc.
Eis a entrevista.
Você tem apontado que o Judiciário brasileiro é hoje o mais caro do mundo e que há muito pouco incentivo para que os Tribunais controlem seus gastos. Isso é uma exclusividade desse poder?
Não. É uma realidade comum à burocracia de forma geral, só que isso acaba sendo mais verdadeiro no caso de órgãos que têm uma autonomia muito grande, como é o caso do poder Judiciário no Brasil. Por exemplo, quando falamos em ajuste fiscal ou reformas no Estado, pensamos logo no Executivo, e nunca entram na lista o Legislativo ou o Judiciário. Quem acaba pagando a conta é o funcionalismo público do Executivo. Por quê? Porque existe certa facilidade no controle que vem de cima, da chefia do Executivo. Ou seja, dos governadores, prefeitos e presidentes eleitos. Só que esse comando centralizado e legitimado pela população não existe no poder Judiciário, até porque, em quase todos os casos, a liderança desses órgãos é eleita por seus próprios pares. A falta de incentivo para controle de gastos é generalizada, mas em órgãos com muita autonomia, cresce.
Nesse ponto, a imprensa tem papel de controle, não?
Sim. Eu diria que a maior parte das grandes reformas que a gente teve no Brasil para a melhoria da eficiência do poder Judiciário, que não envolvem apenas orçamento, mas também gestão de processos e outras coisas, não partiram de dentro dele. Posso exemplificar a partir de dois casos significativos. O primeiro, e mais recente, é a criação do Conselho Nacional de Justiça [CNJ]. Idealizado como um órgão de controle externo do Judiciário, sua criação fez parte da campanha presidencial de Lula, em 2002, e teve como principal defensor o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Só que a criação desse órgão era um tema que já tinha sido colocado lá na Constituinte, em 1988. O segundo, e mais antigo, é a implantação dos Tribunais de Pequenas Causas, hoje chamados de Juizados Especiais. A ideia por trás disso era dar maior celeridade e menor custo para o Judiciário. Embora existissem iniciativas em um ou outro Estado, o esforço para nacionalizar esse modelo partiu, assim como no caso da CNJ, de fora do Judiciário. Veio do então Ministério da Desburocratização. Ou seja, no caso do Judiciário, os esforços para reformas de grande impacto têm partido tanto do Executivo como a partir de mobilizações da opinião pública. As reformas aprovadas por iniciativa do próprio poder Judiciário existem, mas são mais incrementais. Aí, para voltar à questão, os meios de comunicação têm o papel fundamental de chamar a atenção para ineficiências da Administração pública e provocar o debate.
Como você avalia, então, a disputa judicial envolvendo magistrados do Paraná e jornalistas da Gazeta do Povo após a publicação de uma reportagem sobre rendimentos de servidores que acabam extrapolando o teto constitucional?
Diz-se, em todo o mundo, que a liberdade de imprensa deve estar apoiada em um Judiciário independente. E vice-versa: que a imprensa ajuda na autonomia da Justiça, enquanto o Judiciário garante que não haverá interferência de outros poderes no trabalho do jornalista. Se a abertura dessas múltiplas ações no Paraná é, ou não, caso pensado para intimidar a imprensa, o fato é que elas estão dificultando o trabalho desses repórteres. Seja como for, esse episódio faz a gente pensar se no Brasil essa relação entre Judiciário e imprensa não é o contrário do que deveria ser.
E o que está na raiz dessa briga judicial?
Acredito que é o fato de que nós tivemos avanços pontuais na Justiça, mas que algumas questões básicas e fundamentais ainda não foram resolvidas. Uma delas é o fato de que o elevado nível de autonomia individual dos membros do Poder Judiciário no Brasil, que é benéfico para manter sua isenção e imparcialidade, pode ao mesmo tempo se tornar prejudicial para a boa administração da Justiça se não for acompanhado de mecanismos de transparência e responsabilização. Só isso é capaz de explicar tanto esse tipo de ação individualizada dos juízes do Paraná, que tem sido vista por setores da sociedade como cerceamento de liberdade de imprensa, como também um dos motivos do custo desproporcional que o Judiciário brasileiro tem.
Como assim?
Um dos efeitos desta enorme autonomia individual dos magistrados é que cada juiz decide da forma que entende e, desse modo, é impossível ter posições claras de como o Judiciário, institucionalmente, decide. A melhor forma de ilustrar isso é dizer que não existe um Poder Judiciário propriamente dito no Brasil, e sim 17.000 magistrados. Quer dizer, toda a ideia do poder Judiciário é que haja independência exatamente para que os juízes tenham isenção de julgar sem que seus próprios interesses afetem o conteúdo da decisão. Para isso, é necessário um bom salário e garantias de que o magistrado não será exonerado ou removido de seu cargo. Contudo, isso não significa que, necessariamente, cada juiz pode decidir um caso da forma como ele sozinho acredita que deve ser decidido. Ele tem que obedecer a legislação, mas também tem que levar em conta as decisões anteriores que foram tomadas em casos idênticos. No Brasil, como esses mecanismos de controle da jurisprudência são recentes e o grau de autonomia dos magistrados individuais é muito alto, ocorre de um juiz decidir de uma forma e, em uma vara vizinha, outro juiz decidir um caso idêntico de outra forma. Isso é terrível, porque toda a ideia de que precisamos da independência do juiz é para que ele possa aplicar a mesma lei aos mesmos casos, para que haja igualdade e não diferença.
Você disse que isso é capaz de explicar as ações dos juízes e também o alto custo do Judiciário. Como entra essa segunda questão?
Hoje no Brasil em diversos casos vale mais a pena tentar a sorte na Justiça do que compor uma solução negociada fora do poder Judiciário. Isso porque as partes envolvidas em um processo não tem segurança sobre qual é ou será a posição do Judiciário a respeito de um determinado conflito, pois não há posições únicas dentro do próprio Judiciário sobre um mesmo tipo de caso. Isso é seguramente uma das causas da explosão de processos no país. Em 1990 eram cinco milhões de novos processos a cada ano, agora são 30 milhões. Para se ter uma ideia, hoje existe cerca de um processo em andamento para cada dois habitantes. Por fim, isso acaba produzindo uma carga de trabalho enorme e a consequência é o Judiciário mais caro do planeta. Enquanto os gastos de países como Espanha, EUA e Inglaterra ficam entre 0,12% e 0,14% do PIB, o do Brasil está na casa do 1,3%.
Você acredita que esse aumento no número de novos processos também está refletido na alta influência do Judiciário na vida política brasileira?
Com certeza. O professor Conrado Hübner Mendes, da Universidade de São Paulo, diz uma coisa muito verdadeira sobre o STF [Supremo Tribunal Federal] que é que não há um Supremo como instituição, mas 11 ministros e cada um deles têm enormes possibilidades de interferência sobre os processos com pedidos de vista, votos individuais, prazos pouco claros para levar os casos a julgamento, para incluí-los na pauta etc. Isso é visto no sistema judicial como um todo e é em parte por isso que os políticos têm levado as questões para a Justiça. É a mesma lógica: já que não se tem certeza das posições do Judiciário, vale arriscar. O problema é que existe pouca política institucional e muita atuação individual.
Mas então onde o Judiciário brasileiro tem sido bem sucedido?
Comparativamente com outros países da América Latina, por exemplo, ele é considerado um dos poderes mais bem estruturados, com maiores recursos, com garantias mais fortes de independência. Quer dizer, nós temos um Judiciário altamente profissionalizado. Há muitas discrepâncias regionais, claro. Por exemplo, no Estado do Maranhão, o primeiro concurso público para servidores aconteceu apenas em 2005, só depois do CNJ ser criado. Mas, de forma geral, temos um Judiciário que tem garantias de independência e atua com muitos recursos. Veja bem, a grande questão é que há pouco controle, pouca transparência e que, quando existe, essas práticas são muito recentes. Ninguém estuda, por exemplo, como funcionam as corregedorias da Justiça. Ou seja, como é que se punem magistrados para além do CNJ? Que tipos de punições existem? Há poucos estudos sobre isso e são questões essenciais para se compreender como se constrói um Judiciário íntegro e probo.
Salário de juízes federais em comparação ao PIB per capita do brasileiro em início e fim de carreira
A independência, então, é essencial, mas, ao mesmo tempo fonte de problemas.
Se não houver controle e transparência, sim. Outro exemplo de uma coisa boa, mas que pode ter um reflexo ruim se não houver uma forma de fiscalização eficaz é a facilidade de acesso ao Judiciário. Nosso acesso ao poder Judiciário se ampliou muito ao longo dos últimos anos. E isso é ótimo. Ainda que vários problemas persistam, vários mecanismos foram criados ou se expandiram, como a assistência judiciária gratuita e a própria defensoria pública. Só que ao se diminuir as barreiras para se ter acesso ao Judiciário, um outro problema ficou escancarado: a desigualdade do tratamento de diferentes partes. Veja, por exemplo, a desigualdade expressa na dificuldade em condenar definitivamente um político por corrupção, por um lado, e o fato de que hoje temos 200.000 presos sem julgamento no Brasil, por outro. Esse tipo de desigualdade de tratamento é extremamente danoso em um poder do Estado que deve primar pela igualdade de tratamento. Enfim, para resumir, eu destacaria como pontos bons, embora longe de resolvidos: grau de independência, recursos e acesso. Pontos negativos: desigualdade de tratamento e ineficiência.
Alguns observadores têm apontado que o Judiciário é um dos poderes menos democráticos do Brasil. Isso teria raízes históricas relacionadas à ditadura militar. Você concorda?
A ditadura militar no Brasil operou, grosso modo, com essa arquitetura institucional do Poder Judiciário que está hoje aí, tanto que a LOMAN [Lei Orgânica da Magistratura Nacional] é de 1979. De igual forma, não houve grandes expurgos na magistratura durante a ditadura e basicamente essa máquina que existia agora, existia lá atrás. O nosso Judiciário, então, conviveu com a ditadura, mas conviveu em um sistema de acomodação. O Judiciário foi em grande medida conivente com a ditadura e a ditadura foi conivente com abusos dentro do Poder Judiciário, permitindo remunerações enormes, nepotismo, sistemas de loteamento de cargos e um conjunto de práticas que herdamos e que estamos tentando resolver até hoje.
E houve algum avanço?
Sim. Vem havendo uma enorme renovação dos quadros da magistratura, de forma que hoje a grande maioria dos integrantes do Poder Judiciário ingressou depois de 1988. Há uma mudança gradual da cultura institucional e uma diversificação crescente na magistratura, mas a arquitetura e as práticas institucionais ainda são herdeiras desse sistema de acomodação com os militares. Agora, o nosso Judiciário não é menos democrático necessariamente por ser fruto da ditadura. Ele é um poder menos democrático porque, em suma, ele é o mais independente e menos sujeito a controle. E isso, como já dito, é uma faca de dois gumes. Por fim, ele também é o único dos três poderes que não tem ninguém eleito. Não há mecanismos de legitimação popular. Em alguns países, como nos Estados Unidos, existem eleições, por exemplo. E em vários outros países, o Judiciário funciona por um sistema de indicações, como é com o nosso STF, que é um mecanismo indireto de legitimação popular dos juízes. No nosso sistema Judiciário isso ocorre para apenas alguns cargos. Na maior parte deles, é o próprio Judiciário que seleciona seus integrantes.
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“Não há um poder Judiciário no Brasil, mas 17.000 magistrados” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU