03 Junho 2016
"Não me parece que 'a grande questão do filme – se Cristo ressuscitou ou não – é logo resolvida', e que 'o que havia de interessante vai embora junto com a dúvida'. A meu ver, a trama demora suficientemente, com bastante suspense, até que Clavius surpreenda", escreve Ney Brasil Pereira, mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e especialista em Musicologia pela Duquesne University, Pittsburgh, membro da Pontifícia Comissão Bíblica e professor emérito no Instituto Teológico/Faculdade Católica de Santa Catarina.
Resumo:
O autor analisa o filme “Ressurreição”, título original “Risen”, de Kevin Reynolds, lançado em março de 2016 com pouco sucesso de público e juízo desfavorável da crítica. O tema do filme são os acontecimentos que ocorreram entre a morte de Jesus e sua ascensão, acontecimentos seguidos por um oficial romano, incumbido de descobrir o que aconteceu com o corpo do crucificado. O fio dessa “trama policial” liga a sequência dos fatos narrados nos quatro evangelhos. O autor reproduz a crítica, bastante negativa, de Alysson Oliveira, e depois a comenta e questiona, sendo de opinião de que o filme é uma contribuição válida, mesmo excelente, para a filmografia sobre Jesus.
Abstract:
The author analyses the film “Ressurrection”, original title “Risen”, directed by Kevin Reynolds, launched in March 2016 with meagre success of public and unfavorably judged by the critics. Theme of the film are the events that happened between Jesus’ death and his Ascension, events followed by a Roman officer, entrusted of discovering what happened with the corpse o the crucified. The thread of this “police plot” ties the sequence of the facts narrated in the four gospels. The author reproduces the critique, very negative, by Alysson Oliveira, and afterwords he comments and questions it, being of opinion that this film is a valid, even excellent, contribution to the Jesus’filmography.
Eis o artigo.
Vi o filme quatro vezes. Na primeira vez, o ritmo pareceu-me um pouco lento, mas o conteúdo motivou-me a revê-lo, e a apreciá-lo cada vez mais positivamente. Por isso mesmo estranhei o fraco sucesso na bilheteria, aqui em Florianópolis e, pelo jeito, um pouco por toda parte, apesar de ter havido certa publicidade no ambiente religioso. A única opinião de um crítico que li, muito negativa, é a que encontrei na internet, assinada por Alysson Oliveira, do Cineweb. Alysson é jornalista e crítico de cinema, Mestre em Letras pela FFLCH-USP, e doutorando na mesma instituição. Não sei qual a sua convicção religiosa, nem qual o seu conhecimento dos dados bíblicos dos evangelhos como literatura, especialmente dos fatos naquele intervalo de tempo entre a crucifixão (fato histórico, que os historiadores situam no ano 30 ou no ano 33 da nossa era), até a ascensão de Jesus (fato meta-histórico, sobre o qual os evangelistas, com a exceção de Lucas, praticamente não falam).
Antes, porém, de eu expor a minha opinião, creio que vale a pena, em nome da honestidade intelectual e, também, para que o leitor possa comparar as duas posições, ler a opinião, repito, bastante negativa, mas também informativa, de Alysson:
“Ressurreição” é um filme com uma séria crise de identidade: é uma fantasia bíblica ao modo antigo ou um neo-noir pós-moderno situado na antiguidade? Em qualquer uma das duas opções, o longa dirigido por Kevin Reynolds -cujo currículo inclui o rejeitado “Waterworld: O Segredo das Águas”- não funciona bem, porque não sabe o que gostaria de ser e tenta fingir que não é uma produção religiosa. Mas sua metade final, que mais parece uma missa, não nega os objetivos.
Distante de sua fama de “Shakespeare Apaixonado” (1998), Joseph Fiennes é Clavius, um militar romano designado para provar que Cristo –aqui chamado pelo nome hebreu Yeshua– está realmente morto, e não ressuscitado dos mortos, como insistem seus seguidores. O próprio protagonista viu não apenas a crucificação, mas também se certificou de que o corpo fosse colocado numa caverna fechada com uma pedra pesada amarrada e selada com lacre.
Seguindo as ordens de Pôncio Pilatos (Peter Firth), Clavius começa a investigar o que aconteceu com o corpo depois de seu sumiço. O longa, cujo roteiro é assinado pelo diretor e Paul Aiello, torna-se um filme de detetive, com direito a um parceiro para o protagonista, na figura de Lucius (Tom Felton, também distante da fama da série “Harry Potter”), que mais o questiona do que ajuda.
Quando, finalmente, Clavius encontra Yeshua (Cliff Curtis) vivo, o filme se torna uma fantasia sobre a fé e o poder transformador desta. Quando ele vê o homem intacto e saudável conversando alegremente com seus discípulos, seu ceticismo é abalado. Reynolds imagina então a peregrinação de Jesus e seus companheiros tentando proteger sua nova vida, e, ao mesmo tempo, levando sua palavra a outros povos. Clavius, afinal, torna-se uma testemunha ocular disso tudo. A grande questão do filme – se Cristo ressuscitou ou não – logo é resolvida, e o que havia de interessante vai embora junto com a dúvida. O que sobra são infindáveis minutos de pregação religiosa e uma piada misógina envolvendo o nome de Maria Madalena (María Botto) num vestiário cheio de soldados.
Aparentando um orçamento não muito generoso, “Ressurreição” conta com efeitos especiais grosseiros e um senso estético pouco apurado em sua cafonice que beira o kitsch – especialmente nas cenas finais envolvendo uma pescaria (uma metáfora para pescar peixes e novos fiéis) e a subida de Jesus de Nazaré aos céus. O que o filme traz de diferente é um Cristo interpretado por um ator maori, contrariando a visão clássica dele louro e de olhos azuis. No fim, o que resta mesmo é aguardar pelo filme de Rodrigo García sobre os 40 dias de Cristo no deserto, protagonizado por Ewan McGregor – ou rever clássicos, como o belo “O Evangelho Segundo São Mateus” (64), do italiano Pier Paolo Pasolini.
Agora, contrastando totalmente com a opinião do Alysson, uma breve apreciação minha, escrita em 30 de março, dois meses atrás, para o Instituto Humanitas, da Unisinos, São Leopoldo, RS: “Achei-o uma digna apresentação cinematográfica do mistério fundamental da nossa fé cristã, apresentado sob a roupagem da busca policial, por parte de um tribuno romano cético (Joseph Fiennes, o "Shakespeare apaixonado", excelente), daquele estranho cadáver roubado e daqueles discípulos pobretões que dizem que Ele está vivo e que, quando menos se espera, aparece... inclusive na Galileia. Os escassos e diversos dados evangélicos aparecem unificados dentro da trama, constituindo uma profunda meditação sobre o mistério do crucificado/ressuscitado. [...] Creio que é um filme que se presta excelentemente para cineforuns em nossas comunidades”.
Nesta altura, mesmo não sendo crítico de cinema, mas cinéfilo, e na minha condição também de teólogo e, por meus estudos de mestrado, bom conhecedor do texto dos evangelhos na sua língua original, creio que posso, e vale a pena, comentar e questionar algumas das afirmações de Alysson (cf. supra). Por motivos de clareza, vou enumerá-las:
1. “Ressurreição”, o filme, não é “uma fantasia bíblica”, no sentido de que, mesmo não fazendo distinção entre as diferenças dos relatos evangélicos [1], unificando-os e interpretando-os a serviço da trama “policial”, os fatos apresentados têm base histórica. Claro que a representação da ascensão, narrada muito sucintamente por Lucas, num único versículo (Lc 24,52), no filme é relativamente fantasiosa: Lucas a situa em Jerusalém, enquanto o cineasta a situa na Galileia, misturando dados de João e de Mateus. Quanto ao “neo-noir pós-moderno”, confesso que não entendi.
2. Não me pareceu que o diretor, Kevin Reynolds, “tenta fingir que não é uma produção religiosa”, e que “a metade final mais parece uma missa”: primeiro, a missa é bem outra coisa...; segundo, não vejo como, ou por que, o diretor estaria “tentando fingir que não é uma produção religiosa”. Afinal, que entende o crítico por “produção religiosa”?
3. Não me parece que Joseph Fiennes, neste filme, no papel central de Clavius, esteja “muito distante de sua fama de ‘Shakespeare Apaixonado’ ”, rodado dezoito anos atrás. Claro que é um papel totalmente diferente e, como militar romano correto, cético, honesto, carrega a responsabilidade do filme. Creio que o faz bastante bem.
4. Também não me parece que, a partir do momento em que Clavius encontra Yeshua, Jesus, vivo, no meio dos discípulos, “o filme se torna uma fantasia sobre a fé e o poder transformador desta (sic)”. Por que “fantasia”? “Fantasia”, se “o poder transformador” da fé é uma experiência humana real, comprovada através dos séculos, testemunhada até com o sacrifício da própria vida por aqueles que a viveram e a vivem?
5. Não me parece que “a grande questão do filme – se Cristo ressuscitou ou não – é logo resolvida”, e que “o que havia de interessante vai embora junto com a dúvida”. A meu ver, a trama demora suficientemente, com bastante suspense, até que Clavius surpreenda o grupo dos discípulos em torno de Yeshua redivivo, inclusive mostrando os sinais das chagas ao retardatário Tomé. Esse encontro, porém, não resolve a dúvida de Clavius nem a curiosidade do espectador. E “o que sobra” não são “infindáveis minutos de pregação religiosa”. Pelo contrário, o que sobra é o deslocamento dos discípulos para a Galileia, segundo a informação de Mateus e Marcos. Clavius os segue, primeiro à distância, depois juntando-se a eles, agora perseguido como desertor. É bela a cena da chegada ao lago de Genesaré, contemplado do alto, e do que segue depois, seguindo as informações do capítulo 21 de João, e terminando com o final de Mateus 28.
6. Quanto a Maria Madalena, em vez da “piada misógina envolvendo seu nome num vestiário cheio de soldados” – detalhe, por outro lado, interessante, por aliviar a tensão da busca de testemunhas – eu destacaria a beleza do rosto da atriz (Maria Botto), iluminando-se ao falar do seu encontro com o Ressuscitado.
7. Quanto aos “efeitos especiais grosseiros e um senso estético pouco apurado em sua cafonice que beira o kitsch” – tirada típica de um crítico que também recorre a clichês – Alysson destaca, negativamente, “as cenas finais envolvendo uma pescaria [...] e a subida de Jesus de Nazaré aos céus”. Quanto à pescaria, com o que antecedeu e o que seguiu, parece-me uma interessante versão cinematográfica da narrativa do capítulo 21 de João. Quem conhece o texto joanino, ao mesmo tempo enxuto e cheio de detalhes, reconhecerá que o cineasta foi relativamente bem sucedido. A cena da “subida aos céus”, segundo Mateus 28,16-20, não é uma “subida” (detalhe de Lucas), mas uma despedida e um afastamento: é o que faz o cineasta, embora aí recorra a um “efeito especial” de iluminação, compreensível no seu contexto, não necessariamente “kitsch”.
8. No final de sua crítica, Alysson, decepcionado com “Ressurreição”, sugere “rever clássicos, como o belo ‘O Evangelho segundo São Mateus’, de Pier Paolo Pasolini (1964)”. Claro que o filme de Pasolini, na sua modelar sobriedade, é outra coisa. Mas, à sua maneira, este filme de Kevin Reynolds também merece ser visto. E, como eu fiz, convém revê-lo.
Só para terminar, ressalto a boa ambientação do filme no contexto de uma Jerusalém ocupada pelos romanos. O filme começa e termina com Clavius, desarmado, andando pelo deserto da Judeia, rumo de Jerusalém. De repente, a câmara focaliza o entrevero entre um destacamento da Legião X, comandado por Clavius, e revoltosos judeus encastelados numa encosta. Vitoriosos, os legionários entram na capital, onde Clavius logo recebe, de Pilatos, a incumbência de assegurar a ordem pública em torno às cruzes de três condenados, entre os quais, Yeshua de Nazaré, já morto. O que segue, já foi comentado acima. Repito, a meu ver, vale a pena ver esse filme.
Nota:
[1] Exatamente porque chegaram até nós quatro evangelhos, diferentes e semelhantes entre si, cada um deles deve ser lido na sua singularidade. Podemos, é claro, compará-los, mas não unificá-los. Há publicações, nas várias línguas, também no Brasil, que apresentam os quatro evangelhos em “sinopse”, em colunas, um ao lado do outro, cada um na sua especificidade. Já de meados do século II conhecemos uma tentativa de harmonizá-los, reduzindo-os a uma narrativa só, o chamado Diatéssaron de Taciano, mas essa tentativa não vingou. A Igreja, mesmo diante do fato das discrepâncias entre um evangelho e outro, preferiu manter, na sua individualidade, os quatro textos, cujas edições críticas, na língua original, o grego da koinê, estão a disposição de qualquer interessado.
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"Ressurreição" - O filme. Artigo de Ney Brasil Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU