01 Junho 2016
“Neste mundo globalizado e hegemonizado por forças conservadoras transnacionais, qualquer ação política que propõe a mudança, mas que seja limitada pelas estreitas dimensões nacionais, desprovida de alianças globais e, sobretudo, de um pensamento hegemônico alternativo, está destinada ao fracasso”, escreve Claudio Bernabucci, em artigo publicado por CartaCapital, 01-06-2016, ao comentar o livro Quel Che Resta di Marx (O Que Fica de Marx), Edições Salerno, de Beppe Vacca, filósofo e historiador, presidente do Instituto Gramsci, Roma.
Segundo Beppe Vacca, “as classes dirigentes não surgem sem a construção de um cérebro coletivo que junte todos os dados analíticos e de informação para elaborar uma narração histórica e hegemônica do processo que estamos vivendo.”
“A liderança da Igreja – afirma o presidente do Instituto Gramsci - tem continuado a incorporar inteligências e saberes, encontrando formas e lugares onde remexê-los, para o desenvolvimento de uma extraordinária doutrina social, sem nenhuma pretensão de invadir campos alheios, mas fazendo corretamente seu trabalho de instituição autenticamente global”.
Eis o artigo.
A tragédia política que o Brasil está vivendo nesta fase, com suas conotações de farsa tropical, produziu profunda surpresa entre os europeus. Como é possível, pergunta-se o cidadão comum, que o rico país de relativo sucesso dos anos passados tenha ruído a ponto de chegar a uma espécie de aniquilamento?
A imprensa e os comentaristas internacionais tentam possíveis interpretações, com frequência superficiais, mas é um pequeno e brilhante livrinho de apenas 90 páginas, recém-publicado na Itália, que oferece chaves interpretativas da realidade mundial além do ordinário e, indiretamente, também em relação ao atormentado processo brasileiro.
Trata-se de Quel Che Resta di Marx (O Que Fica de Marx), Edições Salerno, fruto do engenho do filósofo e historiador Beppe Vacca, destacado presidente do Instituto Gramsci, em Roma.
Fique claro: nenhuma linha do livro é dedicada a um país em particular, mas sua leitura ajuda como poucas outras a entender a crise da democracia no Ocidente e no Brasil em especial. A tese central da obra é de que a carência de reconstruções satisfatórias da história mundial contemporânea por parte das forças democráticas é resultado também da marginalização do pensamento de Marx.
Não se trata, obviamente, de invocar um acrítico retorno ao pensador do século XIX, mas é fato que o modesto ideário progressista contemporâneo, sem a bússola das intuições cardinais marxistas, não consegue oferecer um fundamento histórico e um fôlego estratégico à ação política.
Paradoxalmente, quem assimilou muito bem a lição do velho barbudo de Trier e as aplicou para impor sua férrea narração hegemônica são as forças dominantes da “revolução neoconservadora”, baseada, como afirma Vacca, em um trinômio claro: uma nova ideia de sociedade, em que a dimensão coletiva não existe.
Só existem a centralidade do indivíduo, uma nova ideia da economia, fundada no primado do empreendedor como padrão explorador, e uma ideia de democracia sustentável na base dos primeiros dois elementos, ou seja, uma democracia mínima, passível de ser desmantelada caso não resulte alinhada coerentemente com as prioridades do sistema dominante.
Ao contrário, os “esquecidos” democratas e progressistas da contemporaneidade não se demonstraram até agora capazes de elaborar uma reconstrução histórica séria e crível das mudanças globais dos últimos 40 anos e, a partir dali, um pensamento alternativo ao modelo imperante.
“Continuando desse jeito”, afirma o historiador italiano, “só vamos indiretamente favorecer a apologia do mundo como ele é e consolidar a posição de quem manda, além de talvez nos precipitarmos, depois da vigente fase de conflito econômico, numa possível regressão à guerra mundial.”
Vale a pena reler Marx e filtrá-lo através do pensamento gramsciano, “não tanto para procurar chaves de leitura das crises econômicas, mas para revitalizar sua lição mais profícua, que se refere à concepção da política e da história”.
Marx não foi um economista, mas um intelectual eclético que “dedicou suas energias a elaborar um pensamento que pudesse orientar a ação de determinados movimentos coletivos”. Portanto, quem tivesse hoje a ambição de influenciar os processos históricos da época, além do enorme acervo da ciência moderna, não deveria privar-se da orientação de Marx. Não só ele é imprescindível, sublinha Vacca, mas também Antonio Gramsci, com suas fundamentais elaborações sobre a questão da hegemonia.
O historiador italiano parece indicar que, neste mundo globalizado e hegemonizado por forças conservadoras transnacionais, qualquer ação política que propõe a mudança, mas que seja limitada pelas estreitas dimensões nacionais, desprovida de alianças globais e, sobretudo, de um pensamento hegemônico alternativo, está destinada ao fracasso.
“As classes dirigentes não surgem sem a construção de um cérebro coletivo que junte todos os dados analíticos e de informação para elaborar uma narração histórica e hegemônica do processo que estamos vivendo.”
E, como corolário disso, os indivíduos que se iludem em tentativas de sucesso particulares nessa empreitada se reduzem a caricaturas. Recado, este, válido tanto para os democratas europeus quanto para os latino-americanos.
Além do projeto revolucionário neoconservador das últimas décadas, a outra força global que parece ter assimilado muito profundamente o pensamento marxista e gramsciano parece ser a Igreja Católica do papa Francisco.
“A liderança da Igreja tem continuado a incorporar inteligências e saberes, encontrando formas e lugares onde remexê-los, para o desenvolvimento de uma extraordinária doutrina social, sem nenhuma pretensão de invadir campos alheios, mas fazendo corretamente seu trabalho de instituição autenticamente global”, afirma o pensador italiano durante a conversa com CartaCapital.
A presença, o pensamento e a ação de Francisco, em particular, demonstram que a forma mentis da elite da Igreja pode sair do limite eurocêntrico.
Além disso, o papa argentino imprimiu uma extraordinária aceleração à reforma do catolicismo, começada no Concílio Vaticano II, abandonada e depois retomada por Ratzinger, mas agora muito mais atenta, do ponto de vista filosófico e teológico, à tendência de declínio da hegemonia da modernidade ocidental e preocupada também com a inaceitável fratura entre ciência e fé.
“Essa consciência permite à elite intelectual da Igreja Católica metabolizar a cultura moderna e apropriar-se dela, assim como utiliza o marxismo de maneira impressionante.”
Graças a esse método, a Igreja “trabalha para redefinir as potencialidades da primazia católica no mundo. É fundamental colaborar com esse processo”.
A razão dessa identificação é clara: a incipiente revolução feminina, a extraordinária continuidade das encíclicas e a pastoral de Francisco constituem uma clara expressão de hegemonia no mundo contemporâneo, a única alternativa ao poder dominante. “Não há no mundo pensamento tão forte como esse, a não ser o da expressão da violência, econômica ou militar”, conclui nosso interlocutor.
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De Karl Marx a papa Francisco. A crise da democracia no mundo esquecido da dimensão coletiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU