30 Mai 2016
Com respostas afiadas quando o assunto é política, diversidade sexual e o modelo de educação vigente, seis estudantes conversaram com o Sul21 sobre as primeiras semanas de ocupações nas escolas públicas no Rio Grande do Sul. Críticos ao sistema que coloca o professor em frente, na sala de aula, e os alunos atrás das cadeiras, sem provocar debates, eles esperam que o movimento em curso possa mudar a educação no Estado. Para além de algumas dificuldades, que variam em cada escola, todos concordam sobre um dos grandes aprendizados que estão tendo: a convivência.
A reportagem é de Débora Fogliatto, publicada por Sul21, 30-05-2016.
A entrevista, realizada no pátio da Escola Paula Soares, onde em seguida aconteceria uma assembleia com secundaristas de escolas ocupadas de toda a cidade, inicialmente combinada com três estudantes, acabou congregando seis adolescentes: Ágatha Oliveira, 17 anos, do 2º ano da Escola Presidente Roosevelt; Ana Laura Juk, 15 anos, do 2º ano da Escola Padre Réus; sua colega Isabella Iumi, 15 anos; Maria Saldanha, 16 anos, do 2º ano da Paula Soares; Antônio Henrique Fonseca Porto, 16 anos, do 3º ano da Escola Agrônomo Pedro Pereira; e Theo Pagot, 16 anos, do 3º ano também da Padre Réus.
Desde o início das ocupações em escolas de ensino médio em Porto Alegre, livremente baseadas no movimento que começou em São Paulo, chama atenção a grande presença de meninas e de pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) na linha de frente das mobilizações. Mesmo sendo horizontal, como bem frisou Ana Laura, dentre as pessoas que mais passam noites nas escolas, percebe-se esse perfil. O assunto é tratado com naturalidade pelas jovens: “a gente até brinca na ocupação que do pessoal que fica fixo lá são 20 pessoas, e dessas só três são heterossexuais”, conta Ágatha, sobre a Presidente Roosevelt.
Além de aceitar as diferenças e diversidades, eles também se mostram inconformados com o atual sistema de educação, o que se reflete inclusive nas suas escolhas para o futuro: dois dos seis entrevistados pretendem ser professores. “Tem aquela teoria de que a escola é tipo uma fábrica. Toda vez que bate o sinal, a gente vai para a esteira para ir para outra sala, daí o professor ‘mexe’ um pouco na gente, daí volta para a esteira e vai para a próxima”, avalia Theo.
Eis a entrevista:
Qual a situação nas escolas de vocês a relação entre pais, professores e estudantes?
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – No Roosevelt é complicado. Os pais dos estudantes do Ensino Fundamental não apoiam a ocupação, então agora tem um prédio ocupado e um onde eles estão tendo aula. Mas mesmo assim, há relatos de pais ameaçando invadir o nosso prédio nesta quarta-feira (25), sendo que as crianças do Fundamental estão tendo aula. E temos professores nos apoiando, tem alguns mais jovens, entre uns 25 e 30 anos, que estão ficando lá, dormindo. E têm uns três pais lá também. Então não tem como dizer que estamos sozinhos. Estamos sofrendo muita agressão verbal, na segunda-feira (23) tivemos uma situação complicada envolvendo a diretora.
Faz uma semana já que ocupamos a escola, mas só conseguimos ter uma oficina por causa desses pais que estão revoltados, a gente tem recebido muitas propostas. Mas temos que cancelar por causa dos pais. Mas a ocupação está crescendo muito, o pessoal do Instituto de Educação, do Emílio Massot já foram lá. Depois dessa situação com a diretora, o número cresceu muito. Estamos recebendo também muito apoio do pessoal da UFRGS, estão indo em peso. O pessoal vai lá, leva os colegas que eram do Roosevelt, e até dormem lá.
Theo (Escola Padre Réus) – A gente está tendo bastante apoio da direção, não teve resistência em nenhum momento. Está bem harmonioso, até com a greve dos professores. E tem muita procura para oferecer oficinas.
Vocês têm percebido e discutido questões de diversidade sexual e de gênero nas ocupações?
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Sim, a gente até brinca na ocupação que do pessoal que fica fixo lá são 20 pessoas, e dessas só três são heterossexuais. Os outros são todos gays. Segunda-feira a gente só conseguiu ter uma oficina e foi sobre esse assunto, de diversidade sexual e de gênero. A gente achou que iriam umas 20 pessoas, mas quando abrimos o portão nos surpreendemos, tinha umas 50 pessoas. E isso tirou as dúvidas que todo mundo tinha sobre esse assunto.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – O nosso movimento por ser horizontal já rompe bastante com o patriarcado e todas essas questões. Todo mundo tem voz lá dentro, mulheres, LGBTs.
Maria (Escola Paula Soares) – A minha escola é uma das mais homossexuais que têm. A gente fez um trabalho sobre LGBTs aqui e fomos nas salas de aula perguntando quem era, e tinha muita gente.
Antônio Henrique (Escola Pedro Pereira) – Sim, já tivemos mais de dez aulas públicas sobre esse tema desde que começou a ocupação. Teve estudantes do coletivo feminista da UFRGS também que foram lá. As estudantes da escola, durante a ocupação, já montaram um coletivo feminista com mais de 30 meninas. Elas estão vendo a força que têm.
A escola de vocês aborda questões de gênero?
Isabella (Escola Padre Réus) – Sim, o colégio aborda nas humanas em geral. Onde podem incluir eles incluem.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Em filosofia, às vezes. Mas tem professores que são machistas em aula, dependendo da matéria. Tem professor até de história e literatura que pens que mulher tem que servir ao homem, e que às vezes falam que tem que ser daquele jeito e ponto. Eles vieram de um pensamento muito antigo.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Mas eu acho que o Padre Réus é exceção, a gente sabe que lá os professores se posicionam mais, que é uma escola de luta. Isso afeta um pouco nossas aulas.
Antônio Henrique (Escola Pedro Pereira) – No Pedro Pereira essa discussão não acontece na sala de aula, são pouquíssimas as aulas que falam disso, normalmente é alguma de seminário. Mas o aluno quer discutir assuntos que não são discutidos, que são vistos como um erro. O estudante quer discutir isso.
E vocês acham que o modelo de educação atual, de sala de aula como funciona hoje, seria o modelo ideal?
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Eu acho que é muito mecanizado, a gente critica bastante isso. Parecem mais presídios do que colégios, é para formar profissionais de uma forma muito mecanizada. Isso vem de quando rolou a revolução industrial, que implantaram isso dessa forma nas indústrias, a questão do sinal, da forma de sentar, e é a mesma forma das escolas.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Colocam robôs um atrás do outro, todos aprendendo a mesma coisa.
Theo (Escola Padre Réus) – Tem aquela teoria de que a escola é tipo uma fábrica. Toda vez que bate o sinal, a gente vai para a esteira para ir para outra sala, daí o professor “mexe” um pouco na gente, daí volta para a esteira e vai para a próxima. Pra no final a gente receber um certificado pra poder ir pro mercado, e se tiver algum defeito, que seria rodar, tem que voltar.
Antônio Henrique (Escola Pedro Pereira) – Acho que poderia mudar a forma como os alunos ficam na sala de aula, mudar o sistema, como o aluno vê a educação.
Quando a geração estiver dando aulas, acham que talvez esse modelo mude?
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Tomara. Eu tenho esperanças porque essa gurizada que está nas ocupações, boa parte está para mudar mesmo tudo isso.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Acho que até por isso muita gente da nossa geração quer ser professor, eu vejo que aumentou bastante. Porque realmente queremos mudar, tenho muita esperança que mude realmente. Mas talvez isso seja maior do que nós. Eu vou virar professora e vou querer ensinar de uma forma diferente, mas não sei se vou ter força para mudar isso.
Theo (Escola Padre Réus) – Eu não sei se levo tanta fé assim, porque tem juventude que apoia Malafaia, Bolsonaro.
Pois é, e tem aquele PL do deputado Marcel Van Hattem (PP) da “Escola sem partido”.
Theo (Escola Padre Réus) – É, a gente quer revolucionar uma coisa, mas tem um cara que também é jovem e quer fazer isso. Isso cessa debate, cessa democracia, que já temos pouca. E muitos parlamentares do PP vieram da Arena, é um reflexo da ditadura, dá para ver os resquícios da ditadura nos projetos deles.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Uma das pautas das ocupações é justamente não deixar acontecer esse Escola Sem Partido, porque é uma volta à ditadura. Censurar os professores, eles podem ser punidos por falar de racismo, ou por dar sua opinião.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Tem coisas totalmente sem sentido. Até história e geografia ficam prejudicadas, vai meio que fechar a área de humanas.
A maior parte do pessoal que está nas ocupações é mais politizada, como vocês?
Theo (Escola Padre Réus) – Mais ou menos. Tem bastante gente que está só para ajudar, na Padre Réus é a maioria.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – O movimento é horizontal, então todo mundo tem fala igual. Mas sempre tem quem saca mais de política e tem a ideia de fazer um trabalho de base, para a ocupação ser mais politizada, para o pessoal que está ali dentro saber mais de política. Mas não é todo mundo que entende de política, a ideia é que a ocupação aumente isso. Tem bastante gente que apoia e mesmo não sacando muito de política, está disposta a ajudar.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Sim, é isso que acontece no Roosevelt também. Quando a gente começa a falar de política nem sempre dá certo. O presidente do grêmio estudantil é de um partido, mas muita gente é contra incluir política na discussão. Vai de cada um, tem gente que não quer nem falar disso.
Maria (Escola Paula Soares) – Aqui na escola tem gente que apoia o Bolsonaro grita “viva a ditadura”, mas não que faz parte da ocupação.
O que vocês diriam que mais têm aprendido desde que começaram as ocupações?
Todos – Viver em conjunto.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Querendo ou não, o pessoal que está nas escolas vira uma família. E a gente está amadurecendo demais nas ocupações, a gente às vezes não nota. Na semana passada, quando ocupamos, tinha gente que não tinha opinião formada sobre algumas coisas. E agora todo mundo já tem sua opinião muito formada, todo mundo amadureceu muito rápido.
Maria (Escola Paula Soares) – Eu não me dava bem com algumas pessoas, mas a gente é meio que obrigado a viver em conjunto, porque sozinho ninguém faz nada. Então a gente acabou perdendo esse egoísmo para poder fazer um bem maior. E a gente sabe que imparcialidade não existe, todo mundo segue orientação de uma base ideológica. O que tem que avaliar é se essa base ideológica é inclusiva ou excludente. Daí a gente foi aprendendo sobre isso.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Se tu não te organiza, alguém te organiza por ti. Tem coisas ruins, acontecem alguns problemas com um monte de gente morando junto, mas aprendemos muito. A gurizada fala que aprendeu a lavar banheiro, estamos fazendo tudo por nós.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – E a gente está aprendendo muito a ouvir as opiniões dos outros e aceitar. Porque sem essa ocupação, metade das pessoas não se falariam (outros concordam). Tem gente que eu não conversava que está na ocupação, eu comecei a ter uma amizade depois da ocupação. A gente está aprendendo a conviver uns com os outros. Estamos tentando manter limpo o máximo possível. E colocar muitos cartazes sobre racismo, machismo, homofobia e transfobia.
Vocês diriam que estão aprendendo mais do que se tivessem tendo aulas normais?
Maria (Escola Paula Soares) – Estamos aprendendo coisas diferentes.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Aprendendo sobre união de luta de secundaristas, isso é muito legal. E são coisas que a gente não ia aprender se tivesse tendo aula.
Vocês acham que isso pode mudar o movimento estudantil secundarista daqui para a frente?
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Espero que quando acabarem as ocupações, o movimento secundarista continue. As ocupações das escolas uniram os secundaristas e isso é muito importante.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Eu também, espero muito que sim. Tem muita escola que não quer deixar o aluno ter voz, não quer deixar ter grêmio estudantil. No Roosevelt, a gente fez o grêmio logo antes da ocupação, porque a direção não queria que tivesse. E tem pais e professores que estão loucos porque o aluno está criando voz, o adolescente está criando voz dentro da escola.
Um ano atrás, vocês imaginariam que estariam aqui agora?
Isabella (Escola Padre Réus) – Com certeza não.
Maria (Escola Paula Soares) – Não, eu não imaginava que íamos acabar sendo o estado com mais escolas ocupadas.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Eu não imaginaria que ia ter tanta gente. Lá no Padre Réus, estávamos pensando em ocupação há um tempo, mas achávamos que as escolas não iam apoiar. Daí ocupamos e outras escolas também e quando vimos já eram 150.
Como vocês avaliam a cobertura midiática sobre as ocupações?
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – A RBS e a Zero Hora distorcem muito. Mas a gente já tinha percebido isso antes. No começo do ano, em março teve um aluno esfaqueado a caminho da escola em uma tentativa de assalto em que ele reagiu. Ele é meu colega de aula e a minha turma organizou uma passeata, na terça-feira teve a passeata e a RBS estava lá e distorceram muita coisa, disseram que eram só 30 pessoas, mas estávamos entre 100.
Isabella (Escola Padre Réus) – No nosso primeiro dia de ocupação, a gente entrou às 2h da manhã. E a Zero Hora foi lá para nos entrevistar, a gente falou para eles irem outra hora porque o pessoal estava dormindo. Eles colocaram na matéria que a gente estava se reunindo no pátio e negamos entrevista para eles. Só que esqueceram de botar que isso foi às 2h da manhã.
Theo (Escola Padre Réus) – E depois gravaram os alunos por cima do muro. A RBS nunca mais vai bater lá na nossa porta, a gente pediu direito de resposta depois de publicarem uma matéria em que nos citaram, mas sem falar com a gente. Eu tenho minhas críticas também por causa da Operação Zelotes, a gente tinha feito um cartaz dizendo “RBS sonegadora, a culpa também é tua”, daí nunca mais foram lá.
A maioria dos estudantes nas escolas de vocês é de que nível social? O pessoal trabalha para ajudar com a família?
Theo (Escola Padre Réus) – No Padre Réus é bem diversificado, tem gente mais de classe média e outros que precisam trabalhar.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – No Roosevelt também, assim como tem gente que mora no próprio Menino Deus, tem gente que vem da Cruzeiro, Santa Teresa.
Maria (Escola Paula Soares) – Aqui (no Paula) temos pessoas de todas as regiões, então também é assim. Eu trabalho na Prefeitura, faço estágio. Mas é mais para ser independente, não quero deixar tudo nas costas dos meus pais.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Tem uma gurizada que trabalha o dia inteiro e vai para lá de noite, ajuda de noite. O pessoal não deixa de ajudar.
Antônio Henrique (Escola Pedro Pereira) – No Pedro a grande maioria trabalha no turno inverso [das aulas], isso é uma das dificuldades que temos na ocupação. Mas o pessoal está conseguindo ficar, o pessoal vai pelo menos de noite, e daí sai para trabalhar cedo. Os estudantes estão vendo que a causa é importante e participando. A grande maioria é de classe baixa, é uma zona periférica.
Vocês já sabem o que vão fazer depois do colégio, querem fazer faculdade?
Ana Laura (Escola Padre Réus) – Eu quero fazer História, então provavelmente vou ser professora.
Theo (Escola Padre Réus) – Eu quero fazer Física ou Geografia, e quero ser professor também.
Isabella (Escola Padre Réus) – Eu não sei ainda, mas penso em Psicologia.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Eu penso em três faculdades: Medicina, Veterinária ou Direito. A maioria do pessoal de lá, assim como eu, quer passar numa federal.
Maria (Escola Paula Soares) – Direito, Química ou Ciências Políticas.
De forma resumida, qual vocês diriam que é o principal motivo para estarem na ocupação?
Theo (Escola Padre Réus) – Um dos principais motivos é que eu gosto muito de política e, observando a luta estudantil na história, a gente tem força suficiente para conseguir mover as coisas.
Isabella (Escola Padre Réus) – Eu estou lá porque tudo que eu faço eu procuro cumprir meu papel enquanto cidadã, e se eu não estivesse ali eu sinto que não estaria fazendo a minha parte.
Ágatha (Escola Pres. Roosevelt) – Meu principal motivo é tentar lutar por uma educação melhor. Eu tenho um irmão mais novo e quero tentar deixar uma educação boa para ele, quero que ele chegue no Ensino Médio e tenha uma educação melhor.
Antônio Henrique (Escola Pedro Pereira) – Eu diria que estou ocupando por melhorias na educação, contra o PL 44, que visa a privatização parcial das escolas, contra o PL que quer tirar a discussão de gênero da sala de aula e contra o sucateamento promovido pelo governo.
Maria (Escola Paula Soares) – Acredito que todas as nossas ações vão resultar no nosso futuro. Se a gente quer uma mudança, temos que começar agora. E como ela disse, quero que meu irmão tenha uma educação melhor e não tenha que passar por isso que estamos passando.
Ana Laura (Escola Padre Réus) – A luta dos secundaristas é necessária, e se a forma de conseguirmos mudanças é ocupando, então vamos ocupar.
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Secundaristas contam como é a vida nas ocupações e o que os move: ‘estamos amadurecendo’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU