Por: André | 19 Mai 2016
Os atos da fala não são tão espontâneos como parecem. Pelo contrário, representam o resultado de uma complexa rede de fenômenos que acontecem nas insondáveis veredas do cérebro. A especialista Yamila Sevilla investiga como se mede o esforço mental realizado pelas pessoas quando constroem uma oração.
Os humanos se diferenciam do resto dos seres vivos por sua capacidade de construir culturas, definidas como instituições coletivas que emergem como produtos dinâmicos (vale a contradição) das práticas sociais. Não existe processo de socialização que careça de intersubjetividade e intercomunhão. Assim, formulam-se linguagens para expressar pensamentos e materializar sentimentos por meio da palavra.
A linguística, neste marco, é o estudo científico que analisa tanto a estrutura das línguas naturais, assim como também suas evoluções históricas e o conhecimento que os falantes produzem sobre elas. Uma premissa sobrevoa o campo e, de vez em quando, estaciona para causar algum incômodo entre os especialistas: os atos de fala não são tão espontâneos como aparentam ser e, em geral, possuem um alto grau de planejamento. O que acontece no cérebro quando as pessoas se dispõem a construir uma oração? Quanto custa falar? Que relações se tecem entre os processos léxicos e os mecanismos sintáticos?
Yamila Sevilla é doutora em Letras pela Universidade de Buenos Aires e é integrante do Instituto de Linguística dessa instituição. Aqui, descreve de que maneira suas pesquisas inscrevem-se na linha denominada de neurociências da linguagem, explica o que acontece no cérebro quando as pessoas se dispõem a enunciar um discurso e, por último, compartilha os detalhes sobre como age a mente quando os indivíduos constroem de forma errada uma oração.
A entrevista é de Pablo Esteban e publicada por Página/12, 18-05-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Você é doutora em Letras. O que lhe interessa na linguística?
A linguística, definida de modo geral, preocupa-se com o estudo das linguagens humanas e das línguas. Nesta linha, como a linguagem representa um objeto muito extenso, há aqueles que trabalham com os aspectos mais biológicos e, por outro lado, aqueles que se interessam pelos componentes sociais e contextuais.
Pela perspectiva de suas pesquisas, imagino que trabalha com os aspectos mais biológicos...
Sim, claro. Interessa-nos um campo definido como neurociências da linguagem. Quando comecei os meus estudos li algo de Noam Chomsky que me chamou muitíssimo a atenção. Em uma conferência, o linguista estadunidense explicava que “a linguagem, em grande medida, é como é porque os seres humanos são feitos pelo que são feitos”. Com esta frase, uma ideia se encontrava subjacente e é que existe uma série de restrições próprias do organismo que fazem com que as línguas se desenvolvam do modo como o fazem e não de outro. Por isso, a diversidade linguística é muito menor do que se poderia supor, porque depende do conjunto de condicionamentos que o “hardware” lhe impõe. Embora por intermédio de um exercício intuitivo pudéssemos afirmar o contrário, o fato é que as línguas exibem muito mais semelhanças do que a priori acreditamos.
Gostaria de avançar mais neste ponto. Pode nos dar algum exemplo?
Perfeito. O próprio Chomsky dizia que uma pessoa pode observar uma pomba e analisá-la tanto até extrair dela todas as suas características e, depois, escolher outra pomba e começar a marcar todas as diferenças que separam a primeira da segunda. Mas, do mesmo modo, também é possível olhar os dois exemplares juntos e procurar compreender e descrever o que, efetivamente, identifica as duas como pombas. Nesta linha é que realiza um estudo da linguagem formalizado e não empírico.
Compreendo a perspectiva de Chomsky, mas de que forma se relaciona com o seu trabalho?
Como linguista preocupa-me mais o que as línguas têm em comum do que aquilo que as diferencia. No entanto, o que busco é realizar uma análise de tipo experimental com o objetivo de conhecer o que acontece no cérebro quando os seres humanos ativam a língua. O objetivo é construir um modelo empírico que seja convergente com este esquema abstrato que ele propunha.
Antes você assinalava a existência de certos condicionamentos que restringem a linguagem. A que se refere?
Existem vários. Para dar um exemplo, os seres humanos contam com uma memória limitada e isso repercute em suas capacidades para expressar uma ou várias orações determinadas.
Entendo que a memória seja limitada, mas como isso repercute na linguagem?
A memória pode ser definida como um espaço cujo objetivo é administrar uma determinada quantidade de informações que as pessoas são capazes de processar. Para dizê-lo ao menos de modo metafórico, podemos afirmar que é restrita no tempo e no espaço. O ser humano tem a habilidade para operar sete peças de informação fonológica.
O que quer dizer?
Que as pessoas, em geral, não são capazes de recordar grandes séries de números ou orações. Nosso cérebro tende a “empacotar” segmentos informativos para poder lidar com eles.
O que acontece com aquelas pessoas que têm a capacidade de recordar centenas e centenas de números e palavras e dizê-las em ordem sem nenhum problema?
É muito provável que desenvolvam alguma estratégia de empacotamento para administrar a informação que lhes seja cômodo. A verdade é que não sei se em casos tão pontuais realizam segmentos informativos de sete peças, mas é certo que o fazem de alguma maneira com o objetivo de reduzir as séries até torná-las suscetíveis de serem manejadas por seus sistemas cognitivos.
Sua pesquisa propõe-se a analisar o que acontece no cérebro quando os seres humanos se dispõem a construir uma oração em um ato de fala. Então, lhe pergunto: o que acontece?
Existem três níveis de interesse: um está relacionado com a conduta linguística, outro que se vincula com o sistema quando opera psicologicamente e, por último, também é possível observar de que modo trabalham as células quando nos dispomos a falar. Neste contexto, o plano psicológico é que mais me interessa. Para isso, buscamos construir um modelo de processamento em tempo real que nos permita produzir uma oração. Normalmente, quando as pessoas falam, uma parte do que expressam é planejado antes que comecem a falar, mas a outra parte surge durante a fala.
Explique-me um pouco mais a respeito...
Quando um indivíduo deseja emitir uma mensagem deve soltar sons que transcorrem no tempo e devem ser organizados um depois do outro, em um marco de respeito das regras gramaticais. A discussão, então, é se os seres humanos possuem um plano sintático predeterminado – ou seja, se quando começam a falar já sabem de antemão os significados das palavras e só precisam dizê-las de modo correto – ou então, se o processo é um tanto mais espontâneo e flexível, isto é, se conforme vai falando seleciona palavras e as concatena.
O que acontece na mente quando as pessoas constroem uma oração de modo errado?
Basicamente, que o planejamento saiu errado. As pessoas contam com uma espécie de sistema de monitoramento que faz com que os produtos linguísticos errôneos sejam suspensos nos diferentes níveis e o processo seja corrigido. Em muitos casos, quando começamos a falar antes de ter o plano completo pode acontecer que o monitor anuncie uma falha (que indica uma ordem do tipo “por aqui não se pode seguir”), porque efetivamente não podemos terminar de dizer o que queríamos após começar do modo como o fizemos.
Concretamente, como pesquisam o modo como se constroem as orações?
Em nossos exercícios experimentais solicitamos aos voluntários para que descrevam imagens que são projetadas nos televisores para analisar as formas como expressam as orações de acordo com os estímulos. Por exemplo, há uma imagem muito graciosa que mostra como um porco ataca um gato. Como primeira reação, a pessoa descreve a situação com a seguinte frase: “o porco ataca o gato”. Pois bem, em um segundo nível, intercalamos palavras subliminares que ficam registradas em suas mentes. Neste sentido, se, por acaso, nós expomos “gato” no instante anterior à projeção da imagem, a palavra fica “ativada”, e é muito provável que os indivíduos tendam a construir a oração de um modo diferente do primeiro caso.
Isso inverte o planejamento...
Exato. O sistema descarta aquilo que tem mais à mão para liberar recursos que lhe permitam continuar com seu funcionamento normal. Então, o indivíduo diz a oração deste modo: “o gato é atacado pelo porco” ou então utiliza a forma passiva: “o gato foi atacado pelo porco”.
O custo cognitivo aumenta quando o plano é modificado?
Exato. O custo cognitivo é o esforço mental, isto é, consiste naqueles processos que envolvem o trabalho de um maior número de neurônios. Isto é útil, por exemplo, quando se analisa a complexidade sintática de uma determinada oração. Embora saibamos que quando uma palavra é menos frequente é mais difícil recuperá-la e quando é mais corrente o mecanismo é mais simples, contamos com muito menos conhecimento sobre o modo como as palavras se concatenam e como se dá essa ordem linear plasmada nas orações. A teoria linguística conserva uma boa explicação sobre o que acontece, mas o que falta é provar isso a partir da experiência para que toda a bagagem teórica não fique no nível especulativo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O que o cérebro coloca em jogo quando uma pessoa constrói uma oração. Entrevista com Yamila Sevilla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU