12 Mai 2016
Guerra ou política? Segundo Jacques Rancière, a política passa longe das artimanhas jurídicas e institucionais da política de gabinete. É uma forma de ação e de subjetivação coletiva que constrói um mundo em comum, no qual se inclui também o inimigo. A ação política cria identidades não-identitárias, um “nós” aberto e inclusivo que reconhece e fala de igual para igual com o adversário. A guerra, pelo contrário, tem como protagonista fundamental formações identitárias fechadas e agressivas (sejam elas éticas, religiosas ou ideológicas) que negam e excluem o outro do mundo partilhado. Entre o outro e o eu, nada em comum.
A verdadeira alternativa, segundo Rancière, não está na polarização que o discurso hegemônico nos apresenta: “populistas contra democratas”. Para ele, o melhor remédio possível neste momento é a própria ação política, autônoma em relação aos lugares, aos tempos e à agenda estatal. Só elaborando o mal-estar (o “ódio” diz Rancière) em chaves políticas de emancipação (coletivas, igualitárias, abertas e inclusivas) se poderá, por exemplo, disputar terreno com esta “lógica da guerra”. A politização do mal-estar é o melhor antídoto contra a sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes expiatórios entre os outros. Refletindo sobre o cenário francês após os atentados ao Charlie Hebdo e ao Bataclan, cujo grande beneficiado tem sido o Front National, de Le Pen, Rancière retoma temas centrais de seu recente O ódio à democracia e fornece subsídios para pensarmos a conturbada conjuntura brasileira de hoje.
A entrevista é de Eric Aeschimann, publicada por Le Nouvel Observateur em 07-02-2016 e reproduzida por Blog da Boitempo, 10-05-2016.
Eis a entrevista.
Um ano depois dos atentados ao Charlie Hebdo, dois meses depois do ataque ao Bataclan, como vê o estado da sociedade francesa? Estamos em guerra?
O discurso oficial diz que estamos em guerra porque uma potência hostil ameaça nos atacar. Os atentados realizados na França são interpretados como operações de células encarregadas pelo inimigo de executar entre nós atos de guerra. A questão é saber quem é esse inimigo.
O governo optou por uma lógica a la bush: declarar uma guerra que é, ao mesmo tempo, total (persegue-se a destruição do inimigo) e circunscrita a um objetivo preciso (o Estado islâmico). Contudo, de acordo com uma outra versão apresentada por certos intelectuais, foi o Islã quem nos declarou guerra e quem está levando a cabo um plano mundial para impor a sua lei sobre o planeta.
Estas duas lógicas misturam-se na medida em que o governo, no seu combate contra o Daesh, deve mobilizar um sentimento nacional que, no final de contas, é um sentimento anti-muçulmano e anti-imigrante. A palavra “guerra” nomeia essa conjunção.
O que é o Daesh? Um Estado? Uma organização terrorista? Em qualquer um dos casos, não é legítimo combatê-la?
O Daesh exerce a sua autoridade sobre um território, dispõe de recursos econômicos e militares e, portanto, conta com um certo número de atributos estatais. Mas, no final de contas, a sua lógica é a de um grupo armado. A formação da sua força militar a partir do exército de Saddam Hussein é um efeito da invasão americana. Mas a sua capacidade de recrutar, no nosso próprio solo, voluntários que se reconhecem no seu combate é algo que nos diz respeito diretamente: inscreve-se na tendência da lógica global atual onde há apenas Estados e grupos criminosos.
Antes existiam “grandes subjetivações coletivas” (por exemplo, o movimento operário) que permitiam aos excluídos incluir-se no mesmo mundo daqueles que combatiam. A ofensiva dita neoliberal desmantelou essas forças e criminaliza agora a luta de classes, como vimos no caso Goodyear [no passado dia 12 de Janeiro de 2016, oito empregados da Goodyear que participaram em ações de reivindicação foram condenados a penas de prisão em França]. Os excluídos são expulsos para subjetivações identitárias de tipo religioso e para formas de ações criminosas ou guerreiras.
O que temos de combater aqui é essa deriva identitária e cheia de ódio. Se os crimes devem ser tratados pela polícia, o ódio deve ser tratado pela política. Dizer que estamos em guerra com o Islã apenas consegue misturar, numa mesma lógica, crime e ódio, repressão policial e ação política (e, por isso, contribuindo para preservar o ódio). É o caso da proposta absurda de retirar a nacionalidade francesa: uma medida incapaz de prevenir os crimes, mas eficaz em alimentar o ódio que os desencadeia.
O que poderia ser feito para não ceder a esta confusão?
Há de se levar a sério o estado de dissidência virtual de uma parte da população suscetível de se transformar em combatentes. Isso implica questionar as causas, os discursos e os procedimentos que engendraram o ódio, combater a sério o desemprego, as desigualdades e as discriminações de todo o tipo, e repensar as formas como pessoas que não vivem nem pensam do mesmo modo poderiam viver juntas.
É uma tarefa difícil para todos. Idealmente, apenas a reconstituição de “subjetivações coletivas” fortes, para além das chamadas diferenças culturais, poderiam remediar a situação em que nos encontramos. Mas, em termos imediatos, o mínimo é fugir do discurso da guerra religiosa.
Refere-se aqui ao discurso dito “republicano”?
Esse discurso contribuiu largamente para o clima de ódio. É preciso tirar conclusões a esse respeito. Mas há um trabalho em profundidade que nos cabe a todos. A população que se identifica como muçulmana deve também dizer como quer viver com os outros, como quer tomar parte do nosso mundo e inventar formas de participação política.
Nos meus trabalhos anteriores, interessei-me por aqueles proletários do século XIX que foram relegados pela representação dominante para um mundo à parte. Eles estavam ali para trabalhar, talvez para gritar e revoltar-se quando não estavam satisfeitos, mas nunca para falar como membros de um mundo em comum. Mas um dia, alguns deles decidiram que sabiam refletir e falar. Escreveram panfletos, manifestos de greves, jornais operários, poemas. Fizeram saber, pela palavra e pela luta, que pertenciam ao mesmo mundo que os outros, ainda que o fizessem como representantes daqueles que não tinham parte.
Sairemos da lógica da secessão e do ódio quando aqueles que estão hoje na margem da comunidade nacional inventarem formas semelhantes de participação polêmica num mundo em comum. Trata-se de algo que vai para além da ideia de integração, que pertence ainda à lógica da segregação.
O poder de atração do jihadismo sobre alguns jovens, inclusive sobre aqueles sem vínculo ao Islã, é interpretado por alguns analistas como sintoma de um Ocidente que liquidou toda a possibilidade de pensar em termos absolutos. Não será o momento de reinventar os ideais?
A ruína dos ideais é um tema velho que já está presente no Manifesto Comunista. Marx dizia que a burguesia “afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta.” (p.42)
Em O ódio à democracia, mostrei como tudo isto se tinha convertido num tema reacionário e estigmatizante. Representam-se os jovens do banlieu tanto como vítimas do niilismo consumista como da manipulação dos islamitas em nome de valores espirituais. Estas análises partem da ruína capitalista dos ideais para chegar aos crimes fanáticos. E entre o seu quadro explicativo (demasiado amplo) e o seu ponto de aplicação (muito preciso) abre-se um vazio que se enche de ódio e estigmas.
Por outro lado, não creio que nos faltem ideais. Estamos rodeados de gente que quer salvar o planeta, que vai curar feridos para o outro lado do mundo, que serve comidas a refugiados, que luta por restituir a vida em bairros abandonados. Hoje há muito mais pessoas que se entregam do que no meu tempo. Não nos faltam ideais, faltam-nos subjetivações coletivas. Um ideal é o que incita alguém a encarregar-se dos outros. Uma subjetivação coletiva é o que faz com que todas estas pessoas, juntas, constituam um povo.
Como fazer para constituir um povo? Deve ser necessariamente à escala do estado-nação?
Um povo, em sentido político, constitui-se sempre à distância da forma estatal do povo. Por isso fazem falta simbolizações igualitárias, abertas a todo o mundo e que, para além dos temas específicos (os refugiados, a ecologia, o banlieu), permitam a inclusão daqueles que não têm parte. Mas um povo também se constitui localmente, em relação com uma dominação que se exerce num espaço nacional.
Em Madrid, o movimento 15M estruturou-se em torno de uma ruptura com a lógica dos partidos que monopolizam o poder comum. Em Istambul, o movimento da praça Taksim formou-se em torno de um espaço aberto a todos que o Estado queria transformar em zona comercial. Ainda que o capital seja mundial, atuamos primeiro onde há um ponto de emergência. A nação é uma simbolização coletiva e, como toda a simbolização, é um campo de luta permanente, em França e em todo o lado. É dentro dessa perspectiva que devemos pensar a ofensiva que, desde princípios dos anos 2000, pesa sobre a identidade francesa: é o ponto culminante de uma contrarrevolução intelectual que progressivamente expurgou a nação francesa da sua herança revolucionária, socialista, operária, anticolonial e resistente para reduzi-la a uma nação branca e cristã.
A onipresença do tema da insegurança provém da mesma “contrarrevolução”?
Ele tende igualmente à constituição de uma identidade coletiva regressiva. O governo atual segue a lição de Bush: é como comandante-chefe que o governante gera maiores adesões. Perante o desemprego é preciso inventar soluções e enfrentar a lógica do benefício. Mas quando se põe o uniforme de comandante é tudo mais simples, sobretudo num país, onde apesar de tudo, o exército permanece como um dos mais bem treinados.
O que os nossos governos melhor sabem fazer não é gerir a segurança, mas sim o sentimento de insegurança. É algo muito diferente, senão mesmo o oposto. Em Novembro de 2005 [durante as revoltas dos banlieus de Paris], poder-se-iam ter evitado semanas de graves confrontos se o então ministro do interior [Nicolas Sarkozy] tivesse estado um pouco menos preocupado por fazer do sentimento de insegurança uma plataforma de lançamento do seu programa presidencial e tivesse tido um pouco mais de interesse em procurar formas de apaziguamento e diálogo apropriadas para garantir a segurança.
Manuel Valls denuncia a busca de “explicações sociológicas”, que entende como uma forma de desculpar os autores dos atentados. Como analisa este ataque, tendo em conta que também dirigiu críticas – muito diferentes! – à sociologia de Pierre Bourdieu?
A “cultura da desculpa” é um simples espantalho que se esgrime para provar, a contrário, que apenas as medidas repressivas são eficazes. Mas as consequências são duvidosas. Sem dúvida, a sociologia de um meio social desfavorecido será sempre impotente na hora de explicar porque dez ou vinte membros desse meio se convertem em jihadistas e, sem dúvida, para impedir que passem à ação. Ainda que nem os favoreça nem os desculpe.
O ruído “securitário” funciona de outra maneira. As suas ameaças não podem assustar aqueles que conhecem castigos mais temíveis. E mais: favorecem a cultura de expiação, cuja forma mais extrema é o jihadismo. Esta é a cultura que é preciso combater. Deveria ser possível, sem a ajuda de nenhuma ciência, convencer os estudantes árabes que não se podem vingar sobre um professor judeu pelos crimes do Estado israelita. Mas, para que isto seja possível, é preciso deixar de transformar em delito de anti-semitismo o protesto contra esses crimes de Estado.
Como pensador, é frequentemente classificado sob o rótulo “esquerda radical” e, portanto, anticapitalista. Contudo, nas suas análises, coloca os poderes políticos e intelectuais à frente das forças económicas.
Há quem acredite que ser de esquerda significa reduzir tudo à dominação do capital. Esta posição “de esquerda” engendra no final uma resignação pesada à lei de um sistema. É no espaço político que se organizam as formas de comunidade que levam a cabo a dominação capitalista ou que se opõem a esta. A banca e as finanças não fabricam por si próprias as formas de opinião que criam um povo que lhes convém. São os políticos, os intelectuais e a classe mediática quem faz esse trabalho. Neste ponto separo-me de um certo marxismo que considera como simples aparências as simbolizações políticas produzidas no campo da opinião e das instituições. Trata-se de um campo de batalha efetivo. Se dizemos que nada mudará enquanto dure a dominação capitalista, podemos ficar tranquilos: as coisas continuarão a ser o que são até ao fim do mundo.
Mas, ao mesmo tempo, a transformação das relações humanas em relações mercantis, que parecem agora prevalecer em todo o mundo. Não é desesperante?
Aqui, de novo, a redução direta da ideologia à economia esquiva a questão política. É um tema recorrente. Nos anos 20, denunciava-se o cinema como um lugar no qual as classes se embruteciam perante as imagens; nos anos 60, acusava-se a máquina de lavar a roupa e as casas de apostas de desviarem os proletários da revolução… Hoje fetichiza-se a toda-poderosa mercadoria, como se a simples presença de um iPhone de última geração pudesse ser suficiente para engolir todas as consciências no ventre da besta.
A impotência política não provém hoje do poder hipnótico do último gadget. Vem da nossa incapacidade de conceber uma potência coletiva, susceptível de criar um mundo melhor que o existente. Esta impotência alimenta-se do fracasso dos movimentos revolucionários dos anos 60 e 70, da queda da URSS, da desilusão perante as esperanças democráticas abertas por esse afundamento, pela globalização e os seus efeitos sobre o tecido industrial francês. O que desmoralizou as forças progressistas em França não foram as mercadorias mas sim os governos do Partido Socialista.
Talvez em França, mas e a nível mundial? O membro da classe média chinesa ou indiana, que consome como nós, não é vítima do mesmo desencanto?
À escala mundial há que fazer diagnósticos diferentes. O novo gestor chinês que desfruta do seu televisor de tela gigante a partir da sua banheira de luxo representa pouco mais que uma ínfima fracção do seu país. Para uma imensa maioria da população mundial, o problema não é esse tal niilismo engendrado pelo capitalismo tardio, mas o advento, ou a restauração, de formas de exploração selvagens e de sistemas industriais concentracionários próprios do capitalismo primitivo.
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Como sair do ódio? Uma entrevista com Jacques Rancière - Instituto Humanitas Unisinos - IHU