10 Mai 2016
O biólogo carioca Mario Moscatelli pede para o seu ajudante aproximar o barco até o braço de um sofá de couro branco encalhado na lagoa da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ele pula da embarcação, sobe no estofado, e cruza os braços desafiador como se fosse um pirata conquistando uma nova embarcação. “Tira uma foto aqui que é muito simbólico”, solicita. Ao redor há pneus, correntezas de esgoto in natura, lixo, peixes mortos e pedaços de excremento. “Sorria, você está na Barra!”, ironiza.
A reportagem é de Maria Martín, publicada por El País, 08-05-2016.
Barra da Tijuca, cenário da maioria das competições da Olimpíada que começa em 5 de agosto, é um poluído exemplo de como o legado ambiental prometido pelas autoridade para o evento acumula pó nas gavetas. Tanto o Estado do Rio como a Prefeitura são responsáveis por ações milionárias de recuperação do ecossistema que não cumpriram, apesar de o Rio ter conquistado a Olímpiada em 2009. Hoje, as águas que banham o Parque Olímpico correm cheias de gordura de peixe morto, esgoto das favelas próximas – mas também de condomínios de luxo –, e de lixo, e são sobrevoadas por urubus à caça de comida fácil. O cheiro de ovo podre é perceptível desde as áreas comuns do Parque.
Além do mais, as últimas marés e o rompimento de uma ecobarreira de contenção liberaram nos últimos dias toneladas de gigogas, uma planta que, alimentada por matéria orgânica, prolifera em ambientes com alto índice de esgoto. O manto vegetal chegou até a praia da Barra e de Ipanema, escancarando o estado putrefato do complexo de quatro lagoas da Barra de Tijuca. A poluição já obrigou, inclusive, a organização do World Surf League a descartar um ponto da praia da Barra como cenário da competição internacional que se celebra no Rio esse mês.
Moscatelli, de 51 anos, navega nessas águas desde 1992, e, enquanto tenta manter um programa de replantação de manguezais, que atuam como filtros naturais na região, tornou-se o principal denunciador do descaso das autoridades. “Praticamente todos os rios que chegam nas lagoas estão mortos, são valões de esgoto, sem oxigênio”, lamenta. Para demostrá-lo, Moscatelli dirige o barco de alumínio até a confluência de dois deles e aponta com o dedo a correnteza preta que mistura-se com a água verde – e também fétida – da lagoa de Camorim. A lâmina de água tem aparência de petróleo, escura e espessa, salpicada de fezes e bolhas, provocadas pelo gás metano e sulfídrico proveniente da decomposição de matéria orgânica no fundo. A cabeça começa a doer e os olhos a queimar, o cheiro é insuportável.
O que Moscatelli defende é que a reputação do Rio durante os Jogos depende hoje das condições ambientais durante o evento: “Se chover, se a maré ficar baixa e o vento arrastar a poluição às praias, nem Jesus nos salva do vexame”. O biólogo, que já foi ameaçado de morte anos atrás por tentar barrar a especulação imobiliária nos manguezais de Angra dos Reis, acredita que o calcanhar de Aquiles do legado olímpico é o meio ambiente. “Quando ganhou os Jogos, o Brasil estava na crista da onda e tiveram oito anos para dar um salto qualitativo na recuperação das águas no Rio. Hoje, a Baia de Guanabara, após ter recebido milhões de dólares de investimento, continua sendo uma latrina. Há 49 rios podres desembocando nela”, lamenta o biólogo, fã incondicional do seu trabalho e de Guerra nas Estrelas.
Moscatelli já perdeu a voz denunciando a péssima qualidade das águas da Baia onde serão celebradas as competições de vela durante os Jogos. Não foi o único. Um estudo encomendado pela Associated Press ao virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale do Brasil, em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, registrou níveis de vírus patógenos 30.000 vezes acima do que seria alarmante nos Estados Unidos e na Europa.
Também na Lagoa Rodrigo de Freitas, que receberá as provas de remo e canoagem e recebe cerca de 120.000 visitantes todo final de semana, foi registrado um nível de coliformes fecais bacterianos 16 vezes maior do que o permitido pela lei brasileira. “A conclusão é de uma contaminação fecal muito grande. No Rio, é agravado pelo fato de haver um grande contingente populacional, acumulado num espaço pequeno e com pouquíssimo tratamento de esgoto, inclusive comparado a outras grandes cidades do mundo”, afirmou o virologista.
A menos de três meses da Olimpíada, as denuncias e fotos do biólogo proliferam na imprensa local. Ele sabe que a essa altura do campeonato pouco vai conseguir antes do evento, mas mantêm sua máxima de que “o político só funciona sob pressão” e lamenta: “Anos atrás eu pensava que lutava contra a especulação imobiliária, mas hoje percebo que luto contra uma cultura típica de colônia de exploração, a de ‘usar até acabar”.
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O biólogo que destampa as latrinas do Rio Olímpico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU