18 Abril 2016
A cobertura da imprensa feita pelos países de língua inglesa em Roma geralmente emprega frases como: “O Vaticano disse hoje que...”, ou “os analistas dizem que o Vaticano espera...”, ou ainda que “o Vaticano parece temer...” e assim por diante. Fazem isso para resumir ou desvendar a notícia do dia.
Porém nem sempre este é o modo correto de proceder: conforme dito alhures, um tal uso da linguagem não faz sentido em geral, porque simplesmente não existe nada do tipo “O Vaticano” no sentido em que o termo é empregado.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux 15-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Uma polêmica em torno de uma breve fala do senador americano Bernie Sanders nesta sexta-feira em um evento no Vaticano – a ser proferida em meio a eleições primárias entre os democratas – é meramente o exemplo mais recente disso de que falo.
Do lado de fora, em geral há a suposição de que, devido ao fato de o Vaticano ser supostamente rígido em sua hierarquia e de ser o ápice de um governo centralizado, todas as coisas que acontecem devem refletir um plano pensado estrategicamente. Localmente, essa ideia se reforça pela tendência inata italiana de ver conspirações maquiavélicas em todos os lugares, e não há outro lugar melhor para este tipo de especulação do que o Vaticano.
Eis como é a realidade: o Vaticano não é um organismo que pensa um único pensamento de cada vez, ele é burocrático. Os seus funcionários são seres humanos, cada qual com os seus desejos, medos, intenções, visões, esperanças e sonhos. Há uma coordenação interna muito menor do que aquela que as pessoas pensam, isto quer dizer que, por vezes, a diversidade – se não mesmo o caos – é o que se vê na ordem do dia.
Para cada funcionário dentro do sistema que incorpora aquilo que podemos pensar que “o Vaticano” disse ou fez hoje, existem uma meia dúzia de outros que discordam dele.
Existem pelo menos três motivos que explicam este fenômeno: o estrutural, o cultural e o político.
Em termos estruturais, os sistemas vaticanos são determinados de tal modo a minimizar a interação entre os diferentes departamentos (dicastérios). Há uma grande ênfase em respeitar a “competência” jurídica de cada um deles, de forma que cardeais e seus assessores hesitam em intervir além de sua alçada de autoridade.
Documentos e decisões normativas podem estar em vigor em um departamento por meses – ou mesmo anos – antes que alguém mais saiba sobre eles.
Ainda que o ambiente tenha mudado um pouco, lembro claramente quando comecei a cobrir o Vaticano vinte anos atrás. Recordo que eu, em alguma ocasião, quando perguntei a funcionários de diferentes setores sobre determinada coisa que estava acontecendo em um outro setor, quando eles ficavam nervosos ao responder – não tanto por falar sobre o assunto com um jornalista, mas por serem alguém “de fora” e não saber muita coisa.
A questão de fundo é que simplesmente não há um plano mirabolante e que todos ficam sabendo de tudo.
Em termos culturais, o Vaticano é um ambiente internacional, um lar para pessoas de vários pontos geográficos. O que parece natural ou óbvio para alguém em um determinado ambiente vai, muitas vezes, deixar em dúvida, ou encontrar objeções, diante de outras pessoas.
É quase sempre um erro supor, por exemplo, que se um funcionário americano no Vaticano diz “x”, logo essa opinião é compartilhada da mesma forma pelos italianos ou franceses. Da mesma maneira, se uma autoridade latino-americana à frente de um departamento faz uma declaração sobre algum assunto, não se pode supor que seus colegas alemães ou poloneses irão vê-lo do mesmo jeito.
Em termos políticos, os papas muitas vezes preferem de nomear funcionários para postos no Vaticano que não estão totalmente de acordo com os seus próprios desejos, com base na teoria de que os resultados podem surgir a partir de uma “tensão criativa”.
Nos anos de João Paulo II, sabia-se que o cardeal chileno Jorge Medina (a mais alta autoridade vaticana para a liturgia) e Dom Piero Marini (que organizava as celebrações litúrgicas do papa) eram pessoas completamente diferentes: Medina, um ferrenho conservador; Marini, um ardente reformador.
Pessoas conhecedoras do funcionamento interno do Vaticano sabiam que não se devia aceitar tudo o que eles diziam como sendo um discurso vaticano único, mas, pelo contrário, deviam interpretar como uma parte de um debate interno em curso até que o papa anunciasse oficialmente uma coisa ou outra.
Tudo isso nos leva ao simpósio em que Sanders irá discursar nesta sexta-feira, evento promovido pela Pontifícia Academia das Ciências Sociais sob o comando do bispo argentino Marcelo Sanchez Sorondo.
Dentro de um ambiente com relativamente pouca coordenação interna, Sanchez Sorondo há muito é conhecido por fazer um percurso no Vaticano por si próprio.
Na década de 2000, ele conduziu a Pontifícia Academia de Ciências, da qual é também o responsável, a uma postura mais favorável quanto aos organismos geneticamente modificados numa época em que importantes assessores do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” e muitas conferências episcopais dos países em desenvolvimento levantavam dúvidas.
Em 2009, a Academia de Ciências emitiu um documento chamando os OGM de “válidos para a melhoria da vida dos pobres”, mas até hoje é difícil dizer que esta posição representa a “posição do Vaticano”.
Além de seguir o seu próprio caminho, Sanchez Sorondo é famoso também por ser um empreendedor, que gosta de organizar eventos com importantes palestrantes.
Finalmente, vale notar que, quando o Cardeal Jorge Mario Bergoglio vivia em Buenos Aires, nem sempre se via Sorondo como um aliado do futuro papa. Nesse sentido, este bispo pode ter um motivo a mais para acolher as prioridades de Francisco, sobretudo na questão da justiça econômica.
Daí tiramos duas conclusões.
Por um lado, se Sanchez Sorondo está tentando dizer algo ao concordar em convidar Sanders, isto provavelmente tem mais a ver com alguma relevância para com sua Academia do que com a política americana.
Por outro lado, seria um erro categórico supor que receber Sanders na sexta-feira vai representar algum tipo de iniciativa tomada “pelo Vaticano” – porque, aqui, como em muitos outros, “o Vaticano” da imaginação popular simplesmente não existe.
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O convite a Bernie Sanders permite refletir sobre um mito: “O Vaticano” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU