Por: Jonas | 09 Março 2016
“Capelão do somozismo” foi como Daniel Ortega denominou o cardeal Miguel Obando y Bravo, após aquela “parábola do viborazo (víbora)”, pronunciada na Catedral Metropolitana, no dia 17 de outubro de 1996, a três dias das eleições presidenciais, daquele ano, que Ortega perdeu para Arnoldo Alemán.
A reportagem é de Arlen Cerda, publicada por Confidencial, 05-03-2016. A tradução é do Cepat.
Nos meses seguintes à derrota, Ortega também chamou Obando de “fariseu” e o acusou de “sujar” a palavra de Cristo. De sua parte, o então arcebispo de Manágua se referiu a Ortega como “pessoa não pacificada” e acrescentou que estas pessoas são como “uma serpente, que vive, mata e morre cuspindo veneno”.
Vinte anos depois daqueles duelos verbais, o cardeal foi declarado, nesta semana, “prócer da reconciliação e paz” da Nicarágua e isso ocorreu por uma iniciativa de lei apresentada pelo próprio comandante Ortega, aprovada com 65 votos dos deputados da FSLN e seus aliados.
Muitos elogios, ninguém cita o ‘viborazo’
“O presidente Daniel Ortega o identifica (ao cardeal) como um homem dedicado, que demonstrou muito amor por sua nação, a serviço dos mais pobres do país e que sempre lutou pelas causas corretas”, afirmou a deputada da Frente Sandinista, Maritza Espinales, na leitura da sentença favorável, elaborada pela Comissão de Educação, Cultura, Esportes e Meios de Comunicação.
Durante quase vinte minutos, Espinales leu o extenso documento que repassou a vida, qualidades e histórias de Obando y Bravo e, em seguida, 19 deputados interviram no plenário para apoiar a declaração com mais elogios à figura do cardeal. Nenhum mencionou, no entanto, a homilia pronunciada por Obando y Bravo naquela quinta-feira, à tarde, que foi considerada decisiva para dar o último impulso para a que foi a segunda derrota consecutiva de Ortega nas urnas.
“Hoje é um dia do dever cumprido”, afirmou Castro, após acrescentar que se sentia “regozijado” com a declaração que torna Obando y Bravo parceiro dos promotores da Independência da América Central: Miguel de Larreynaga (1772-1847) e Tomás Ruíz (1777-1819).
Os deputados da FSLN aprovaram a iniciativa junto com seus colegas eleitos pelo Partido Liberal Constitucionalista (PLC), Wilfredo Navarro e Jorge Castillo Quant, e a deputada miskita Eveling Taylor.
A decisão da Comissão destacou Obando y Bravo como um “homem de diálogo” que “se fez outro Cristo na entrega aos demais”, “mediador”, “de grande energia moral” e de “portas abertas” e sustentou o “apoio pleno” desta para lhe conferir um reconhecimento que qualificou como “mais que merecido”.
No entanto, os 23 deputados do Partido Liberal Independente (PLI) e o Movimento Renovador Sandinista (MRS) não assistiram a sessão como expressão de rejeição à declaração.
A “conversão” do cardeal
Nos anos 1980, antes do “viborazo”, as relações entre o então arcebispo de Manágua e mais tarde cardeal Miguel Obando y Bravo com o comandante Daniel Ortega já eram ruins. A Igreja católica, liderada por Obando, mantinha uma posição crítica ao governo revolucionário, que expulsou e perseguiu sacerdotes e, inclusive, assinalou Obando como defensor do apoio militar dos Estados Unidos para a contrarrevolução. Chamavam-lhe de “arqui-inimigo” e o haviam apelidado de “macho preto”.
O confronto terminou em 2002, na época do pacto entre Arnoldo Alemán e Ortega, quando o principal protegido do cardeal Obando, o magistrado do Conselho Supremo Eleitoral (CSE), Roberto Rivas Reyes, era apontado por fraudes milionárias na Comissão de Promoção Arquidiocesana (Coprosa), que Rivas havia dirigido para Obando durante vinte anos.
Obando se aproximou de Ortega, as responsabilidades de corrupção contra Rivas foram retiradas e, além disso, este foi reeleito como magistrado e nomeado presidente do CSE, onde ainda permanece.
A proximidade entre Obando e Ortega ficou evidente quando se viu o cardeal dando a comunhão a Ortega e sua companheira Rosario Murillo, que disseram que tinham se casado em uma cerimônia particular e para a campanha de 2006 não houve mais ‘viborazos’, mas, ao contrário, exortações de Obando a trabalhar “pelo bem comum”, “a reconciliação” e o “triunfo em unidade”, que eram parte dos lemas da campanha do caudilho da FSLN.
Obando, que recebeu a proclamação cardinalícia em maio de 1985 e era arcebispo de Manágua desde 1970, foi separado da Arquidiocese em abril de 2005, pelo papa João Paulo II, que um dia antes de sua morte aceitou a renúncia de Obando por idade, que já tinha sido apresentada quatro anos antes. Após o retorno de Ortega ao poder, Obando foi nomeado como presidente da Comissão de Verificação, Reconciliação, Paz e Justiça, que, além disso, leva o seu nome.
Ortega chamou Obando de “sepulcro envermelhecido”
Uma nota de meados de novembro de 1996, assinada por AP, reúne parte dos comentários que por aqueles dias Ortega e Obando expressavam um contra o outro.
Ortega então acusava Obando de “polarizar em favor da aliança liberal somozista”, como ele chamava a Aliança Liberal encabeçada por Alemán.
E ainda em junho do ano seguinte, segundo informou a revista Envio, Ortega afirmou, por conta do prelado, que ele acreditava em Cristo “e não naqueles que sujam sua palavra”, pois na sua avaliação o cardeal era um “sepulcro branqueado e, mais que isso, envermelhecido” (pela cor dos liberais).
Exatamente naquela eucaristia de 1996, o cardeal se vestiu de vermelho. A revista Envio destacou em uma crônica que “embora o calendário litúrgico do tempo ordinário previsse o uso do verde, escolheu celebrar o mártir Santo Inácio de Antioquia – desconhecido para a piedade nicaraguense – para usar paramentos vermelhos”.
“O cardeal Obando – continua a crônica – encerrou sua homilia exortando os eleitores a ser prudentes na hora de escolher o homem idôneo para a Presidência e ilustrou esta exortação com uma fábula de sua coleção”.
Na fábula, que mais tarde foi batizada pelos meios de comunicação como a “parábola do viborazo”, Obando contou: “Dois homens caminhavam pelo campo e viram que no caminho havia uma víbora. A víbora parecia que estava morrendo por causa do frio. E um daqueles homens disse: ‘Se esta víbora está morrendo por causa do frio, acredito que se lhe dermos um pouco de calor, não morrerá’. O companheiro lhe disse: ‘Tenha cuidado, porque que eu acredito que esta víbora já matou alguém, porque saía desse buraco e matou fulano de tal’. Porém, o outro disse: ‘As circunstâncias mudaram, esta víbora não me fará nada, eu vou lhe oferecer calor’. Agachou-se e a agarrou contra seu peito para lhe oferecer calor. E quando lhe havia dado calor, a víbora o mordeu e o matou”.
Em si, a fábula não ficava muita clara. O então candidato presidencial Arnoldo Alemán estava na primeira fila, durante aquela missa, participou de uma das duas leituras litúrgicas e depois carregou o pálio que cobria o Santíssimo que o cardeal conduzia em procissão no interior da Catedral. Além disso, durante seus atos de campanha, Alemán havia comparado a Frente Sandinista a uma cobra coral, que é vermelha e preta, descrevia, e era preciso lhe cortar a cabeça por ser perigosa.
Ortega, “el gallo ennavajado” da campanha de 1990, derrotado nas urnas por dona Violeta Barrios de Chamorro, perdeu outra eleição.
Em novembro daquele mesmo ano, Obando y Bravo concedeu uma entrevista ao jornalista Carlos Fernando Chamorro, na qual falou sobre o papel da Igreja na política e, inclusive, relatou parte de sua polêmica fábula, dizendo que “esteve sujeita à interpretação de cada um”.
“Nós (os bispos) como hierarquia penso que não militamos na política partidária, mas militamos na política no sentido amplo, e o sentido amplo é buscar o bem comum do povo, orientá-lo. No sentido amplo, militamos ainda que como hierarquia, militamos. Quem não milita na política em sentido amplo? Todos! O que nós acreditamos que não se deve militar é na política partidária”, afirmou o cardeal.
Obando também afirmou: “Eu não tenho nenhum partido. Eu francamente, se militasse em algum partido, talvez outro galo cantaria”.
Oposição: Obando perde méritos
Apesar da declaração de Obando y Bravo como “prócer da reconciliação e paz”, o deputado do PLI, Eliseo Núñez Morales, considera que “a única reconciliação efetiva que Obando fez é a dele com Ortega”.
“Obviamente – disse – teve suas luzes, mas quando se vai avaliar uma pessoa, é preciso avaliar suas luzes e suas sombras”.
A teóloga Michelle Najlis também considera que Obando não merece o reconhecimento de prócer e avalia sua declaração como “uma jogada política”.
“Se é certo que o cardeal teve momentos em que desempenhou um papel positivo”, comenta Najlis em relação ao trabalho de mediação que Obando realizou nos anos 1960, porém “nos últimos anos teve um papel lamentável”.
O deputado do MRS, Enrique Sáenz, membro da Comissão responsável pela iniciativa, considera que “o regime faz muito mal ao cardeal” com a decisão de declará-lo prócer. Trata-se, opina, de uma “decisão precipitada”, porque os próceres não são o resultado de uma declaração legislativa, mas, pelo contrário, o reconhecimento dos povos ao longo de um período prolongado de tempo e “estamos diante de uma decisão manifestamente manipuladora”.
“É justo reconhecer que o Cardeal desempenhou importantes funções em episódios de nossa história. Porém, também é certo que hoje em dia suas ações despertam a rejeição de uma parte importante da população, que desaprova sua entrega a um regime ditatorial que, novamente, está conduzindo o país ao confronto”, afirma Sáenz, para quem “não é por acaso que (a declaração de prócer) ocorra em pleno ano eleitoral”.
No entanto, Núñez Morales acredita que “o próprio Ortega sabe que Obando não lhe serve para que reze por ele, nem lhe serve para que atraia milhares de católicos para seu partido”. Segundo Núñez, Obando só serve a Ortega “como símbolo de que ele foi capaz de dobrar todos os seus inimigos e que foi capaz, inclusive, de trazer para o seu lado, através de vantagens, compras, etc., um cardeal que por seus próprios interesses terrenos está aí ao lado”.
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Nicarágua. Cardeal Obando y Bravo, o “prócer” do Comandante Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU