08 Março 2016
Os sobreviventes de abuso sexual que tiveram a coragem de vir a público têm nos ensinado muitas coisas, mas uma delas em particular é que, em termos de suas consequências, o abuso não é um evento, e sim se parece mais com uma condição permanente.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 06-03-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Não é que os abusos acontecem num lugar e num tempo específicos, e então acaba. Pelo contrário, o seu resultado se torna parte permanente da vida das vítimas, na medida em que elas se debatem com as consequências psicológicas, emocionais e espirituais.
Nós tivemos dois lembretes esta semana de que o mesmo se aplica às vítimas de outros tipos de abuso, incluindo a perseguição contra os cristãos. Para estas vítimas, as consequências são emocionais e físicas, incluindo lesões e doenças, a perda da propriedade e renda, prisão e ameaças de morte.
Estes lembretes vêm de Kandhamal, no leste da Índia, região que, em 2008, foi o lugar do pior massacre aos cristãos no mundo desde o começo do século XXI.
Durante décadas, a Índia vem assistindo a uma onda crescente de nacionalismo hindu que, hoje, domina não só o governo federal, mas também vários estados e regiões. Em agosto de 2008, irrompeu uma onda de hostilidade para com o “outro” cristão em Kandhamal, matando aproximadamente 100 pessoas, deixando milhares de feridos, com 300 igrejas e 6 mil casas destruídas, além de 50 mil deslocados, muitos deles forçados a se esconder em florestas próximas onde tantos outros morreram de fome e mordidas de cobra.
Tal violência foi levada a cabo por grupos usando tiara açafrão, símbolo da militância hindu de direita, e gritando frases como “Jai shri ram!” (a vitória ao deus hindu Ram) e “Jai bajrang bali!” (um tributo a uma outra deidade hindu). Os agressores lançaram mão de varas, espadas, armas de fogo, querosene e até mesmo ácido.
O nível da barbárie quase desafia a crença.
Parikhit Nayak, por exemplo, era um dálit empobrecido que se converteu ao protestantismo em uma grande aldeia hindu. Os seus companheiros o mataram queimando o seu corpo com ácido, cortando fora os seus órgãos genitais e, depois, arrancaram o seu intestino para usá-lo em volta do pescoço como um troféu. Durante todo o tempo, eles forçaram a sua esposa a assistir a cena.
Nós ouvimos dois ecos destes horrores nesta semana.
Um foi uma marcha ocorrida no dia 3 deste mês em Nova Déli para lançar uma petição – “Free the Innocentes” (libertem os inocentes). Com ela, os organizadores estão visando libertar sete cristãos que padecem na prisão desde 2008, acusados de instigar atos de violência ao assassinar um hindu sagrado local. Essas acusações são amplamente tidas como tendo motivações políticas, e um jornalista investigativo recentemente chamou o caso de uma “paródia da justiça”.
No ano passado, dois policiais prestaram depoimento em uma investigação em Kandhamal dizendo que as acusações contra estas pessoas – seis das quais são analfabetas – são falsas. No entanto, as apelações para reverter as suas condenações vêm sendo repetidamente adiadas.
Porque é importante que as vítimas não permaneçam anônimas, abaixo apresento os nomes dos sete condenados:
• Bijay Kr Sunseth, casado, pai de 2 filhos e 2 filhas.
• Gornath Chalanseth, casado, pai de 1 filha e 3 filhos.
• Budhadeb Nayak, casado, pai de 3 filhos e 2 filhas.
• Bhaskar Sunamajhi, casada, pai de um criança de 6 anos que nunca o viu, exceto atrás das grades.
• Durjo Sunamajhi, casado, pai de três, 2 dos quais são trabalhadores braçais, e de 2 filhas em idade escolar.
• Munda Badmajhi, casado, pai de 2 filhos e 2 filhas. O filho mais velho foi forçado a deixar a escola quando o pai foi preso e agora é trabalhador braçal.
• Sanatan Badmajhi, casado, pai de 2 filhos e 2 filhas.
O outro lembrete veio sexta-feira, quando Dom John Barwa, da Arquidiocese de Cuttack-Bhubaneswar, onde fica Kandhamal, proferiu um discurso à Conferência Episcopal da Índia.
A própria sobrinha de Barwa, Meena, freira da Ordem das Servas de Maria (servita), estava trabalhando em Kandhamal em 2008 quando foi estuprada durante um ataque, em algum momento perdendo a consciência por causa do espancamento selvagem que sofreu. Até hoje, ninguém foi detido ou processado pelo ataque.
Barwa descreveu os esforços de sua pequena – e perenemente sem dinheiro – diocese em ajudar as vítimas, tanto em termos espirituais quanto em termos materiais. Ele também apontou o dedo para áreas com necessidades não satisfeitas, incluindo lesões que ainda não foram tratadas, propriedades da Igreja que ainda precisam de reparos e a justiça ainda a ser feita em termos de processar os perpetradores.
Das 100 pessoas assassinadas em agosto de 2008, houve somente 30 processos e apenas duas condenações.
Embora grande parte disso esteja fora do alcance direto da Igreja, um passo que poderia ser dado imediatamente por ela seria apressar a beatificação e a canonização dos mártires de Kandhamal.
Um deles é o Rev. Bernard Digal, que foi espancado por extremistas hindus enquanto tentava resgatar um outro sacerdote já idoso, que acabou morrendo. Ele, de alguma forma, conseguiu sobreviver e foi levado a um hospital em Mumbai, onde viveu por um mês antes de sucumbir à febre contraída durante a sua provação extrema.
Muitas vezes vemos o Papa Francisco falar sobre o “ecumenismo de sangue” que a perseguição aos cristãos cria, levando estes a uma unidade mais profunda por causa da percepção de que as diferenças denominacionais nada significam para os perseguidores.
Provavelmente não há lugar melhor no mundo para marcar este fato do que Kandhamal, e espera-se que o apelo de Barwa para lembrar os mártires não caia no esquecimento.
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Lembrar os mártires cristãos da Índia deveria ser uma prioridade da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU