11 Fevereiro 2016
Considerado o pai da Teologia da Libertação (TdL), Gustavo Gutíerrez segue admirado por várias gerações de teólogos. O sacerdote dominicano, com estilo simples e franco, concedeu uma entrevista exclusiva à Adital para falar sobre a atualidade da TdL, quem são os pobres na América Latina e como avalia o contexto político no continente. Sobre o encontro com o Papa Francisco, na Assembleia da Cáritas, em 2015, o teólogo diz reconhecer no pontífice um homem valente, que conduz a Igreja em um momento de Kairós, que, em grego, significa momento certo, oportuno.
A entrevista é de Cristina Fontenele, publicada por Adital, 05-02-2016.
Sobre a força da juventude, Gutiérrez brinca que não basta ser jovem para promover mudanças, pois um ser livre pode seguir variados caminhos. Espirituoso, o sacerdote explica a importância do humor, que também pode ser uma forma de comunicação, além de ajudar o ser humano a avançar na idade.
Eis a entrevista.
Como avalia a atualidade da Teologia da Libertação? Quais as perspectivas e como renovar as lideranças?
Sei que está subtendido, mas prefiro explicitar. Minha primeira preocupação, como cristão, sacerdote, é fazer teologias, e isto não é o Evangelho. A Teologia é um ato segundo, que reflete, precisamente, sobre a vida dos cristãos, à luz da mensagem evangélica. Minha maior preocupação é isso. Eu fui, durante toda a vida, pároco, assessor de movimentos e, claro, gosto muito da Teologia, e fiz Teologia.
Creio que é importante estar muito próxima do trabalho pastoral. No caso do meu país, o mundo pastoral é muito circunscrito. Nunca ensinei numa Faculdade de Teologia, mas, agora, aos 70 e tantos anos, comecei a ensinar em uma Faculdade. Um pouco tarde. Antes, eu desenvolvia o trabalho pastoral, reflexões, escrevi também. Me encanta a Teologia e a vejo como uma compreensão da esperança. Para mim, é uma hermenêutica da esperança e continua sendo. Isto significa a questão dos sinais dos tempos, pois todo teólogo precisa ver em que momento vive. Claro que o fundamento, a raiz, é a mensagem cristã, mas a maneira de vivê-la, hoje, depende das condições.
Sobre a renovação das lideranças, você não vai encontrar 1 milhão de pessoas que trabalham em Teologia, por muitas razões, mas isto também não é necessário. No fundo, um cristão é sempre um teólogo, porque pensa sua fé. Quando eu, enquanto cristão, ‘penso que’, na verdade, já estou fazendo Teologia. Esta é a Teologia que falamos, com o conhecimento das fontes, às vezes, debatida, como em qualquer disciplina na atualidade.
Porque falar do [Concílio] Vaticano II, após 50 anos?
Porque é o seu aniversário, assim como a pessoa faz aniversário, é igual. 50 anos de Vaticano II sempre impressiona e, além disso, sua mensagem continua sendo atual.
O que é a prática do método ver-julgar-agir?
É estar atento à história. Ver quer dizer ver a realidade para não elucubrar – "isto seria bom...” – está associado à expressão "sinal dos tempos”. É preciso discernir os fatos, as causas e o porquê se produzem os efeitos, então, vem o momento de julgar. E, depois, a última coisa é, no fundo, a razão de ver e de julgar, que é atuar. Não é que se deva escrever um livro sobre os problemas, mas, sim, o fato de como me comprometo diante disso. É algo muito simples, nasceu nos anos 1920, como um método na Bélgica e França, começou com o sacerdote belga [Joseph] Cardijn, que, anos depois, se tornou cardeal. Julgar é ler os fatos, a partir das exigências do Evangelho. O agir tem um tom mais modesto, seria o "como podemos fazer?”. Há pessoas que podem isso, enquanto outras podem outra coisa. Ao mesmo tempo, existem pessoas que podem fazer outra coisa e não isto, pessoas que não têm capacidade para isso, ou tempo, ou idade ou profissão. Há uma diversidade de ações. Isto é a realidade. As Conferências Episcopais latino-americanas – Medellín, Puebla, Santo Domingo, Aparecida – usaram o método ver-julgar-agir. É uma metodologia.
O senhor já declarou que não basta ser jovem. O que isto significa?
Estou convencido disto e digo racionalmente. É verdade que a força da juventude, a saúde, o conhecimento, mudaram coisas muito importantes, mas, no fundo, são pessoas livres. Podem trabalhar muito mal e podem usar o seu conhecimento de outra maneira, isto também ocorre. Por exemplo, nem todos os que estudam Medicina vão ser médicos compreensivos com o paciente. Hoje em dia, quase não existem. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem médicos de uma impessoalidade impressionante, mas que sabem muito. A Medicina clássica era muito mais do contato mais pessoal. O diálogo com o paciente é muito importante, tomando como exemplo a Medicina. Então, creio que é isto o que ocorre. Quanto à Teologia, existem muito jovens latino-americanos, senão todos, mas não é uma profissão da qual se pode viver. Nós, como somos sacerdotes, não temos salário profissional suficiente para sobreviver. Então, essas pessoas que podem estudar outra coisa, que podem ser um profissional, com uma entrada econômica, estão sacrificando-se. Enfim, todos os jovens, todas as pessoas podem começar bem e não terminar bem.
O senhor já comentou sobre a força dos pobres. Quais são os pobres de hoje, principalmente na América Latina?
Eu falei a partir das escrituras e não das Ciências Sociais, ou da Economia. O pobre é o que não conta, é o insignificante, e eles são bem numerosos. Existe a pobreza que se chama monetária ou econômica, e é preciso estudá-la. A condição feminina por exemplo. Não é que toda mulher seja pobre, mas basta que seja mulher para que existam direitos que não estão presentes. Assim também ocorre com a cor da pele, indígenas, mestiços (eu sou mestiço), japoneses, chineses, alguns europeus no Pacífico (a imigração chegava muito por aí). Veja, o conhecimento é poder.
Como avalia o papado de Francisco e como foi o encontro dos senhores na Assembleia da Cáritas, em 2015?
Acredito que a Igreja está em um movimento muito interessante, rico e com um grande frescor do Evangelho. Essas questões do Papa, de "sair”, ir contra a corrupção, de abrir-se, é um momento de alegria, e ele é muito valente, porque isso não é fácil. Claro que as pessoas que estão com ele também resistem. O Papa Francisco criou um clima muito diferente, que, além disso, tem um apoio imenso de pessoas que não são cristãs, e que veem neste homem alguém que fala a Abraão, que é próximo, e tem o sentido profundamente evangélico. Isto foi o que conversei, quando o encontrei.
Que reformas considera mais urgentes na Igreja?
Ele [Papa] retomou uma coisa muito forte de João XXIII, que é o pobre, e isto é uma urgência. Realmente, a quantidade de pessoas que estão nas migrações, por exemplo, é um escândalo. Estamos em um século com tantos recursos e essas pessoas precisam correr do seu país, senão as matam. Isto é uma superurgência. Ao mesmo tempo, existem também, naturalmente, questões da Igreja, discutidas durante o Sínodo da Família, o rechaço enorme da corrupção, não querer o dinheiro corrompido. Muito se pode chamar de reforma, numa parte mais institucional, é preciso mudar as regras também do comportamento dos funcionários. O clima que estamos vivendo é algo como voltar ao princípio. Falando teologicamente e biblicamente também é o que o chamamos de um Kairós, palavra que quer dizer momento oportuno, este é o momento atual.
É um momento, então, de diálogo inter-religioso? Como é possível, diante de tantos conflitos no mundo em torno da religião?
O diálogo já havia começado antes. Os conflitos diminuíram muito em relação ao século passado, quando havia guerras. Agora, são outras guerras, a exemplo do que ocorre com os muçulmanos. Eu sei que ainda há muito por fazer, embora já mudaram o que havia de mais violento em outros tempos. Existe, por exemplo, o fundamentalismo, as pessoas que creem que isto é assim e é assim para todos. É preciso respeitar a diversidade cultural, as histórias, todos os povos têm, como os seres humanos, suas pequenas histórias, estão acostumados a elas. Às vezes, existem coisas que não estão bem em qualquer cultura, então, é preciso entrar em diálogo para se compreender melhor. O diálogo inter-religioso é muito importante, mas é preciso estabelecer a justiça porque, sem ela, não há paz. E a justiça é reconhecer os direitos de todos, e é, justamente, o que falta para os pobres. Recordo uma frase de Hannah Arendt, filósofa judia alemã, que diz que "ser pobre é não ter direitos, não ter direitos a ter direitos”. Isto é preciso ser interrompido. Não é possível que haja seres humanos sem direitos respeitados. Isto é a lei da vida, lei da liberdade.
Como avalia o clima na América Latina, que passou por eleições recentes, como na Argentina, Guatemala e Haiti?
Há uma grande variedade, mas uma coisa geral que se pode dizer é que existem eleições. Digo isto porque tivemos, na América Latina, países com ditaduras. Na Argentina, Uruguai, no Brasil, ou seja, houve uma mudança grande. Agora, é verdade que não foi suficiente. Não basta ter eleições para dizer que estamos bem. Estamos no continente mais desigual economicamente e isto é preciso combater. Os ricos são cada vez mais poderosos e os pobres cada vez mais pobres. Li uma frase de um grande economista e filósofo que diz: "o mundo é espetacularmente rico e desesperadamente pobre”, é notável esse homem. Isto não deveria ocorrer, mas está na América Latina e ainda não há um trabalho para mudar.
Mas o senhor já mencionou que a América Latina é o continente da esperança...
É uma coisa simpática. Mas claro que também a esperança sempre existirá. Essas são frases que animam as pessoas. A esperança está ausente e presente em toda parte. Na África, na Ásia. E já que estamos falando de pessoas, existe uma frase que diz que "o último que se perde é a esperança”, mas a frase não diz "na América Latina, o último que se perde é a esperança”, portanto, vale para todo ser humano. Por ter havido mudanças importantes, é necessário valorizar, na América Latina, este passo, politicamente falando, de sair de ditaduras para a democracia.
O que é a espiritualidade para o senhor e como vivê-la, hoje?
A espiritualidade cobre muitas realidades. É colocar os chinelos e caminhar por muitos lugares, que não estão nivelados, o que é uma loucura, mas é o fundamental. A mensagem fundamental de Jesus é o amor às pessoas e a primazia dos mais pobres. Há uma pergunta eterna que se faz às famílias – "Mamãe, você ama mais meu irmão do que a mim?” – A resposta eterna é "amo todos de forma igual”. Mas, se a mãe não protege os menores, ficam todos doentes. Então, por que primeiro os pobres? Porque são mais fracos. É uma coisa tão simples e as pessoas não entendem. Dizem – "Não, Deus não fala somente para os pobres...” Deus ama todas as pessoas, mas, ao mesmo tempo, primeiro os fracos.
Sobre monsenhor [Óscar] Romero [ex-arcebispo de San Salvador], qual o significado da sua beatificação?
Começo pelo fim. Acredito que é muito importante e rico para a América Latina a história da beatificação e canonização, por uma razão muito simples, porque, no começo, não entenderam o essencial. Ele morreu, claro que impactou muito, mas, em El Salvador, muitas pessoas batizadas, católicas, se queixavam de que ele era comunista. Então, esse reconhecimento vai valorizar muitos testemunhos do mesmo estilo, em uma quantidade de lugares na América Latina. Na Argentina, antes de Romero, mataram o monsenhor [Enrique] Angelelli, depois de Romero foi [Juan] Gerardi, na Guatemala, e uma quantidade de laicos e religiosos. Vai valorizar na medida em que reconhecer que Romero foi assassinado por cristãos e por defender os pobres, o que será interessante para a Igreja latino-americana.
O senhor já falou muito sobre o humor. Qual a importância dele na vida?
É não se levar a sério e não acreditar que se é a última Coca-Cola, como dizem. Não é uma chacota, nem significa que você não esteja sofrendo. No mundo, existem muitas pessoas sofrendo, mas não é uma indiferença nem tampouco superficialidade. Acredito que não é preciso perder o humor. Eu brinco um pouco dizendo que há sacramento para recuperar a graça e não há sacramento para recuperar o humor. Eu creio que o humor alimenta e pode ser uma coisa psicológica também. As pessoas que se reprimem não agem. Mesmo diante de uma situação difícil, uma pessoa pode manter uma distância e ter humor. O humor também é uma maneira de comunicar algo. Eu brinco muito porque é minha maneira de ser, mas não significa que tudo esteja bem, que não tenho preocupações e que a pobreza, para mim, não é um escândalo com tanta gente sofrendo. Não. Eu trabalhei toda a minha vida com gente pobre, como pastor, sempre nas periferias, e é bastante doloroso, mas não posso chorar todo dia, e o povo também não. O que quero é que saiam dessa situação. Existe ainda uma obsessão pelo dinheiro e esta preocupação supera, em muitas pessoas, a proximidade com o outro. Creio que o humor ajuda também a se chegar mais longe na idade.
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Gustavo Gutiérrez avalia atualidade da Teologia da Libertação e o papado de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU