Por: MpvM | 08 Junho 2018
As situações de conflito, de confronto, nos interpelam à revisão da nossa identidade, de nossas práticas afetivas, familiares e sociais. É como se nos ‘chamassem de volta’ ao centro, ao Cristo. Sermos interpelados, questionados, é movimento que devemos acolher com maturidade e responsabilidade, e não como um movimento de retaliação, que pode nos afastar da centralidade crística. A Luz vem para iluminar as trevas, então, é parte da dinâmica da vida que elas surjam, se apresentem, para que, pouco a pouco, sejam incorporadas e haja apenas a luz definitiva do Amor que a todos abraça e realiza.
A reflexão é de Rosemary Fernandes da Costa, teóloga leiga, doutora em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2008) e bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1984). Atualmente é professora de Cultura Religiosa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e de Filosofia da secretaria de Educação do RJ. É criadora e coordenadora do curso de Pedagogia da Fé, no Centro Loyola de Fé e Cultura e na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Assessora da CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) e da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), de agentes de pastoral e formadores na área de Iniciação Cristã, Catequese e Catecumenato. Participa do GT de Espiritualidades e Saúde da Abrasco.
Referências bíblicas
1ª Leitura – Gn 3, 9-15
Salmo 129 (130)
2ª Leitura – 2 Cor 4, 13 – 5, 1
Evangelho – Mc 3, 20-35
Neste domingo, a Palavra nos conduz a um discernimento profundo quanto à identidade crística. Ela não é um dado estático, uma decisão que uma vez tomada não precisemos rever, renovar, avaliar e retomar. A identidade crística é um processo, é movimento. E os ventos do Espírito – ‘que sopra onde quer’ – nos guiam por novos olhares e novas atitudes. Os textos desta liturgia nos dizem que este processo engloba muitas relações: nossa relação com Deus, com as imagens de Deus herdadas culturalmente; com as relações sociais, com as convenções e pertenças comunitárias; e também conosco e com nossa participação no projeto dinâmico do Deus-Amor.
A primeira leitura (Gn 3, 9-15) nos remete às contradições existenciais. A presença do pecado, do sofrimento, é o oposto do desejo de harmonia do paraíso. O texto nos fala que é necessário encontrar a raiz do mal a fim de que possamos transformar a realidade, na direção do projeto de Deus para sua Criação. Afirma que Deus é maior, sua graça, sua presença, sua companhia, é maior do que todo mal, e isso faz com que a esperança e as forças para a vida digna para todos sejam renovadas.
Ao desejar transgredir a condição humana e ‘ser como deuses’, o ser humano se afasta desse projeto de amor, e esta é a origem do pecado, é a origem do caminho de arrogância, de negação da novidade da Criação, de fechamento para o sopro do Espírito, para a vida de serviço e comunhão com toda a comunidade humana e ambiental.
Mas, onde está Deus? Ele está conosco, não nos abandona, ao contrário, nos orienta e conduz à conversão de uma vida autocentrada para o projeto amoroso que a todos inclui.
Na carta de Paulo aos Coríntios (2 Cor 4, 13 – 5, 1) a mesma pergunta está presente: como viver a identidade crística em um mundo que nega o caminho amoroso vivido por Jesus? Como seguir em meio a tantas contradições?
Paulo situa a comunidade em dados de realidade. Sim, haverá tribulações e perseguição. Não há razão para nos surpreendermos, pois é parte do caminho de conversão de toda a humanidade, de toda a Criação.
A presença do Espírito Santo de Deus em nós é a estrutura para que o homem interior vá se renovando a cada dia e nos mantendo firmes e confiantes. Confiando nesse Amor presente, também damos testemunho dele, principalmente nas circunstâncias adversas.
Centremos agora nosso olhar no Evangelho, nas palavras da comunidade de Marcos e, conduzidos por elas, vamos encontrando os alinhavos para o tecido revelado neste caminho litúrgico.
No Evangelho de Marcos (Mc 3, 20-35) Jesus está sempre em movimento, ele caminha por estradas, vilas, aldeias, cidades, anunciando o Reino de Deus e fazendo discípulos. A identidade de Jesus é tornada concreta na missão e no chamado ao seguimento.
“Jesus voltou para casa com os seus discípulos.” Sim, ele volta para casa, mas não volta da mesma forma que saiu, ele volta com uma comunidade de seguidores, com uma nova ‘família’, com uma identidade já configurada na comunidade e na missão. Ele se autocompreende como Messias, mas não é bem assim que sua ‘casa’ o percebe. Diante da multidão que o segue, em busca de esperança para suas angústias e sofrimentos, seus familiares se assustam, não compreendem o que está acontecendo, e chamam de loucura a forma de Jesus agir.
Jesus está diante de sua ‘casa’, de suas ‘origens’, de si mesmo. Ele está diante da própria subjetividade, construída naquele berço da tradição e agora revisitada. Cada confronto, cada conflito, o traz para a centralidade da vocação crística e fortalece a caminhada.
“Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que ele estava possuído por Belzebu (...).” Também as autoridades religiosas não compreendiam as atitudes de Jesus. Ele está colocando em questão a ordem religiosa estabelecida e consagrada pela tradição judaica. Sua prática simboliza uma ruptura naquela compreensão já estabelecida. Ele percebe que as prioridades estão invertidas e retoma a compreensão de um Deus presente, que se relaciona com toda a Criação, colocando sempre em primeiro lugar a integridade, a dignidade de cada pessoa. Se a interpretação das práticas religiosas não favorece a comunhão de todos, na dignidade de filhos e filhas de Deus, esta precisa ser revista, pois está à frente do Projeto de Deus, e não obediente, respondendo a ele.
“Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado (...).” O alerta é mais uma vez reorientador das práticas religiosas. É o seguimento de Jesus que nos coloca na dinâmica salvífica e não há outro caminho. Procurar outros caminhos é como blasfemar diante do sopro divino que habita seu ser e o interpela a viver na dignidade de filhas e filhos de Deus. Ver em Jesus algo diabólico, que divide o ser humano, é se distanciar não apenas da identidade de Jesus, mas da própria identidade, pois nossa própria vocação é a realização da identidade crística em nossa história pessoal e na história da humanidade.
“Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” O que determina a filiação, a comunhão familiar é o seguimento de Jesus. Não representa aqui uma contestação da presença de seus familiares ou de sua mãe, e sim uma afirmação de que todos se tornam seguidores do projeto de Amor Maior, todos se colocam a caminho do Reino, no mesmo discipulado. Quando os laços familiares ficam tão estreitos que não há mais espaço para pessoas, grupos, ele não oferece espaço para os mais necessitados, para todos os filhos e filhas de Deus. Jesus convida a uma nova compreensão da família, uma família ampliada, colocada toda a serviço do Reino de Amor.
As situações de conflito, de confronto, nos interpelam à revisão da nossa identidade, de nossas práticas afetivas, familiares e sociais. É como se nos ‘chamassem de volta’ ao centro, ao Cristo. Sermos interpelados, questionados, é movimento que devemos acolher com maturidade e responsabilidade, e não como um movimento de retaliação, que pode nos afastar da centralidade crística. A Luz vem para iluminar as trevas, então, é parte da dinâmica da vida que elas surjam, se apresentem, para que, pouco a pouco, sejam incorporadas e haja apenas a luz definitiva do Amor que a todos abraça e realiza.
Concluímos com as palavras do Salmista:
No Senhor ponho a minha esperança, espero em sua palavra.
No Senhor toda graça e redenção!
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10º domingo do tempo comum - Ano B - No seguimento de Jesus, fazer a vontade de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU