02 Novembro 2011
A transcendência, segundo Teresa, se revela como imanente: o Senhor não está além dela, mas nela! O suficiente para atrair sobre ela todos os problemas que se pode imaginar com a Inquisição, os confessores e os editores que atenuaram essa pretensão.
Publicamos aqui trechos de uma conferência sobre Teresa de Ávila, proferida pela filósofa e psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva, em Roma. O texto foi publicado no jornal Il Manifesto 28-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Por que este estranho encontro entre uma santa e uma mulher ateia, psicanalista e escritora? Não vou dizer tudo. Somente lembrarei que é impossível viver hoje sem perceber que os confrontos entre as religiões não são estranhos aos confrontos econômicos que agravam a nossa cotidianidade e que ameaçam a paz no mundo. Devo admitir que estou entre aqueles (poucos) escritores e intelectuais europeus persuadidos de que existe uma cultura europeia da qual não estamos muito orgulhosos. E que justamente a partir de uma melhor apropriação crítica das suas culturas plurais, a nossa Europa poderá ter um papel decisivo nos diversos conflitos que se assomam no horizonte há muito tempo. Trata-se nada mais e nada menos do que de transvalorar (o termo de Nietzsche) os valores judeus, cristãos, mas também muçulmanos e da secularização. (...)
Teresa d’Ávila viveu e escreveu uma experiência extravagante, que chamamos de mística, em um momento em que o poder e a glória espanhóis – os dos Conquistadores e da Idade de Ouro – começavam a declinar. Ainda mais, Erasmo e Lutero perturbavam as crenças tradicionais, os novos católicos como os Alumbrados atraíam os judeus e as mulheres, a Inquisição colocava no Índex os livros em língua castelhana, e os processos para demonstrar a "limpieza de sangre" se multiplicavam.
Filha de uma christiana vieja e de um "convertido", Teresa foi testemunha, durante a sua infância, do processo contra a família paterna, obrigada a demonstrar que era verdadeiramente cristã e não judaica. O "caso" da própria Teresa, como freira oração praticante da oração – isto é, a oração mental em uma fusão amorosa com Deus que a levarão às suas êxtases – será submetido à Inquisição, antes que a Contrarreforma descubra a extraordinária complexidade da sua experiência, juntamente com a sua utilidade para uma Igreja que busca então conciliar ascetismo (reivindicado pelos protestantes) e intensidade do sobrenatural (propícia à fé popular).
Theresa de Ahumada y Cedpeda será beatificada em 1614 (32 anos após a sua morte), canonizada em 1622 ("santa" 40 anos depois da morte) e se tornará, em 1970, no prolongamento do Concílio Vaticano II, a primeira Doutora da Igreja, juntamente com Catarina de Sena. (...)
Fantasmas encarnados
Única mulher em uma família de sete homens (antes do nascimento dos dois "pequenos", uma menina e um menino), muito ligada à mãe e ao pai, ao irmão Rodrigo, ao tio paterno Pedro e ao primo, filho de um outro tio paterno Francisco, em uma família de harmonias incestuosas, abastada embora em fase de declínio, Teresa perdeu a mãe aos 13 anos. Quando decidiu entrar na ordem das carmelitas e assumiu o hábito no convento da Encarnação, no dia 2 de novembro de 1536, ela tinha 21 anos. O seu corpo é um campo de batalha entre os desejos culpabilizantes que ela sugere continuamente na Vida, especificando que os seus confessores a proíbem de desenvolvê-los, e a exaltação idealizante da qual testemunha o culto intenso dirigido a Maria (mãe virgem) e a José (pai simbólico).
Com incrível lucidez na sua biografia, ela confidencia o modo em que os seus tormentos a conduzem às convulsões e às perdas de consciência seguidas, em alguns casos, a estados de coma que duram até quatro dias (...) – crises acompanhadas por "visões "que a freira descreve segundo aquelas que os neurologistas chamam de "áureas": não "visões" através dos "olhos do corpo", mas sim aquilo que eu gostaria de definir como "fantasmas encarnados": percepções através de todos os sentidos da presença envolvente, tranquilizante, afetuosa do Esposo. O Pai ideal – que a perseguia por causa das "tentações", das "faltas" e das "dissimulações", fazendo-a sofrer até os ossos – se transforma em pai afetuoso.
As "visões" traduzem essa alquimia salvadora. Desde o princípio, a "visão" é só um "rosto severo", que desaprova os seus "hóspedes" muito desenvoltos. Mais tarde, se transforma até em um "sapo" que não para de crescer: alucinações do sexo do hóspede? Enfim, tratar-se-á do Homem de dor em pessoa, assim como a freira viu sob a forma de uma estátua de Cristo no pátio do convento: homem martirizado com os sofrimentos com os quais está feliz em se identificar, com a intensidade de um transporte.
Transporte é exatamente a palavra certa: Teresa está finalmente unida a "Cristo enquanto homem" (Cristo como hombre), se apropria dele – "certa de que o Senhor estava dentro de mim" (dentro de mí). "Eu não podia duvidar, então, de que ele estivesse em mim ou que eu estivesse completamente mergulhada nele" (yo toda engolfada en él) (Vita 10: 1). (...)
A humanidade de Cristo está no ar da época. Erasmo e todos os "Iluministas" o respiram, assim como os judeus convertidos e muitas mulheres que são chamadas de "alumbrados". As êxtases de Teresa são, desde o início e sem distinção, palavras, imagens e sensações físicas, espírito e carne, ou melhor, carne e espírito: "o corpo não fica sem participar do jogo, e até muito" (...).
Imagens da água
Aos olhos dos incrédulos do terceiro milênio, como nós, Teresa descreve uma travessia – ou melhor, uma decomposição – da sua identidade intelectual-físico-mental dentro e através da transferência amorosa com o Ser Completamente Outro: Deus, figura paterna dos nossos sonhos infantis, inalcançável Esposo do Cântico dos Cânticos. Através dessa metamorfose mortal e orgásmica, que remedia a melancolia da sua dor de mulher separada, abandonada e inconsolável, Teresa se apropria do Ser Outro em um contato infracognitivo, psicossomático, que a leva a uma regressão perigosa e deliciosa, acompanhada por um prazer masoquista. Não é a retórica que nos ajuda a lê-la, mas sim essa fulgurante revelação do Aristóteles de Sobre a alma e da Metafísica, que, entre todos os sentidos, considera o tato como o mais fundamental e mais universal.
Se, com efeito, todo corpo animado é um corpo tátil, o sentido do tato que caracteriza o ser vivo é tal que "aquilo com que eu entro em contato entra em contato comigo". Desde o primeiro instante, e através da imagem da água, Teresa, que se vê banhada pelo Outro, oculta a mediação e se imagina imersa no seu Esposo, assim como ele está nela.
Mas, ao mesmo tempo, na difração da água entre Deus, o jardineiro e os quatro modos de fazê-la vir, Teresa critica implicitamente esse imediatismo, se distancia dele e tenta explicar o seu autoerotismo, ao mesmo tempo doloroso e jubilatório, em um acúmulo de ações físicas, psicológicas e lógicas. Muitos contos e histórias de água. A água seria, portanto, a imagem do impacto sensorial do divino sobre Teresa, mas também uma crítica – inconsciente, implícita, irônica – desse impacto do divino? Até a dissolução do Pai Ideal, do Outro, na freira orante, na escritora?
Perguntas impertinentes
Se a água é o emblema da relação entre Teresa e o Ideal, entende-se que o seu Castelo interior (trata-se, na realidade, da "metapsicologia" de Teresa, que a percorre através dos níveis da psique até a sua verdade) não é uma fortaleza, mas sim um quebra-cabeças de "mansões": moradas de fronteiras permeáveis.
Isso significa que a transcendência, segundo Teresa, se revela como imanente: o Senhor não está além dela, mas nela! O suficiente para atrair sobre ela todos os problemas que se pode imaginar com a Inquisição, os confessores e os editores que atenuaram essa pretensão. A menos que seja, também, a apoteose da Encarnação?
Mas as consequências são muitas. A primeira delas é, talvez, uma certa ironia que beira o ateísmo? Em uma passagem do seu Caminho de perfeição, Teresa aconselha suas irmãs a jogar xadrez nos mosteiros, mesmo que isso não seja permitido pelo regulamento, para... "dar xeque-mate no Senhor". Uma impertinência que ressoa na famosa fórmula de Meister Eckhart: "Peço a Deus que me liberte de Deus".
A segunda consequência é formulada por Leibnitz que escreve em uma carta a Morell no dia 10 de dezembro de 1696: "E, no que se refere a Santa Teresa, vocês têm razão em estimar as suas obras. Nelas, encontrei este belo pensamento de que a alma deve conceber as coisas como se no mundo só houvesse Deus e ela. O que também produz uma importante reflexão filosófica que empreguei utilmente em uma das minhas hipóteses".
Teresa, inspiradora das mônadas leibnizianas contidas desde sempre no infinito? Teresa, precursora do cálculo infinitesimal?
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Teresa d'Ávila: a santa que queria dar um xeque-mate no Senhor. Artigo de Julia Kristeva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU