O recente lançamento no Brasil de uma série de livros sobre o nazismo mostra que o tema começa a ganhar um espaço inaudito por aqui. É certo que ainda faltam títulos fundamentais, como
The Destruction of European Jews, de
Raul Hillberg, e
Hitler: A Study in Tyranny, de
Alan Bullock, e a produção acadêmica brasileira sobre o assunto engatinha. Mas a barbárie nazista, que está longe de perder a atualidade ante a persistência do discurso totalitário, deixou também suas terríveis marcas no Brasil. O envolvimento do País na guerra, a questão dolorosa dos imigrantes judeus em fuga, o suposto antissemitismo do
governo Vargas, o interesse dos nazistas pela Amazônia, tudo isso é objeto de pesquisas que põem o Brasil no mapa do Terceiro Reich.
Para entender o complexo processo que engendrou o nazismo e o colapso da civilização por ele representado, o melhor começo é a trilogia do historiador britânico
Richard Evans sobre a Alemanha de Hitler. O segundo dos três volumes,
O Terceiro Reich no Poder, chega agora ao Brasil, pela Planeta. No primeiro,
A Chegada do Terceiro Reich, também da Planeta,
Evans descreve as raízes filosóficas, ideológicas e culturais do nazismo, além da destruição deliberada do regime democrático para satisfazer a elite conservadora alemã ante o espectro do comunismo. No segundo,
Evans mostra como
Hitler, uma vez vitorioso, reordenou o Estado e a sociedade alemãs de modo a "coordenar" todas as instâncias da vida nacional - todas funcionando "na direção do Führer", isto é, segundo aquilo que se supunha fosse seu "desejo". É a edificação do totalitarismo, tijolo a tijolo, sem que houvesse oposição significativa. "Ninguém percebeu o quão cruéis e determinados os nazistas eram até que ficou muito tarde", disse Evans nesta entrevista.
A entrevista é de
Marcos Guterman e publicada pelo jronal
O Estado de S.Paulo, 03-09-2011.
Eis a entrevista.
Em sua visão, os nazistas chegaram ao poder por causa da disputa entre os partidos de esquerda, ou em razão da ação dos conservadores, que queriam destruir a social-democracia e a própria República de Weimar?
Temos de lembrar que os nazistas eram o maior partido da Alemanha em 1932, ganhando 37% dos votos nas eleições de julho. Isso seria suficiente para colocá-los no poder em diversas democracias nos dias de hoje. Os conservadores em torno do presidente
Hindenburg queriam usar a legitimidade popular dos nazistas para sustentar seu plano de destruir a democracia de
Weimar e de estabelecer um regime autoritário e nacionalista. Nas eleições de novembro, os nazistas perderam várias cadeiras, e os conservadores acharam que era a oportunidade de cooptá-los.
Hitler concordaria se fosse apontado para liderar o novo governo, de modo que, em 30 de janeiro de 1933,
Hindenburg o nomeou chanceler do Reich num gabinete dominado por não nazistas.
O momento crucial começou quando os nazistas converteram essa posição numa ditadura de partido único, por meio do uso cruel da força nas ruas por suas tropas de assalto e pela exploração do incêndio do Parlamento para suspender as liberdades civis. Os comunistas e os social-democratas tinham ganhado, juntos, tantos votos quanto os nazistas nas eleições de novembro de 1932, mas eles eram muito divididos e incapazes de agir em conjunto. Mesmo que tivessem agido assim, porém, eles provavelmente não teriam como combater os nazistas pela força, porque o Exército apoiava
Hitler. Na
Áustria, em 1934, o movimento socialista iniciou um levante armado contra a introdução da ditadura e foi reprimido pelo Exército em questão de dias.
Qual foi o peso da Noite dos Longos Punhais - o sangrento expurgo da liderança da SA, a tropa de assalto nazista - na consolidação do poder de Hitler? A sociedade alemã não deveria ter reagido contra o que era claramente um crime?
Em junho de 1934, as tropas de assalto somavam 4 milhões de pessoas e ameaçavam iniciar uma "segunda revolução", substituindo o Exército com uma milícia nacional. Os generais disseram a
Hitler que ele seria deposto a menos que contivesse suas tropas. No final de junho, ele usou sua guarda pessoal, a
SS, para assassinar os líderes das SA e também uma porção de figuras políticas da direita conservadora, que havia começado a manobrar para substituir o doente
Hindenburg como presidente pelo chanceler
Von Papen.
Hitler então destruiu os elementos de oposição em seu próprio partido e articulou a implosão dos conservadores.
Quando
Hindenburg morreu, em agosto,
Hitler se tornou chefe de Estado, e um Exército muito grato a ele concordou em fazer-lhe um juramento de lealdade. Assim como para a maioria dos alemães, eles estavam aliviados com a repressão às tropas de assalto e aceitaram a alegação de
Hitler de que agira dentro da lei.
Em sua opinião, qual foi o grande erro da oposição aos nazistas?
Ninguém percebeu o quão cruéis e determinados os nazistas eram até que ficou muito tarde. Os conservadores os consideravam amadores vulgares, enquanto os comunistas pensavam que a ascensão nazista era o estágio final da decadência do capitalismo antes da revolução socialista. Todos os governos anteriores na
República de Weimar duraram poucos meses, de modo que ninguém pensava que o de
Hitler pudesse ser diferente.
Nenhum movimento de oposição estava preparado para o uso irrestrito da força que os nazistas empreenderam. Na tomada do poder, do final de janeiro ao final de julho de 1933, mais de 600 opositores de Hitler foram assassinados, segundo os próprios nazistas.
Há historiadores que sustentam que os alemães voluntariamente aderiram ao sistema de "supervisão" da sociedade, isto é, delataram supostos dissidentes sem serem forçados a isso. Ao aceitarmos essa tese, temos de aceitar também que o papel do terror no regime nazista é menor do que se supunha. O senhor concorda?
É certamente verdade que, durante o
Terceiro Reich, muitos alemães voluntariamente denunciaram oponentes do regime à
Gestapo. Mas daí a dizer que foi assim que o regime manteve a ordem é ir longe demais. Nos últimos anos, historiadores têm reduzido o papel do terror e da intimidação no Terceiro Reich. Isso acontece em parte porque eles estão procurando nos lugares errados. Por exemplo, é comum se dizer que havia apenas 4 mil prisioneiros nos campos de concentração em 1935. Mas poucos historiadores perceberam que isso aconteceu porque o Estado, os tribunais e as prisões regulares estavam tomados pela tarefa da repressão política. Em 1935, havia 23 mil presos políticos nas penitenciárias estaduais. A cada ano, 5 mil pessoas eram condenadas por traição.
Há também um debate entre historiadores sobre se os nazistas fizeram ou não uma "revolução" na Alemanha. Qual é sua opinião?
Os nazistas tentaram reviver o que eles viam como o espírito da unidade nacional de agosto de 1914, início da Primeira Guerra para os alemães, e para fazer isso eles destruíram todos os partidos e "nazificaram" quase todas as instituições sociais, com exceção do Exército e da Igreja. E eles queriam evitar aquilo que viam como atividades subversivas dos judeus da Alemanha, que, segundo seu ponto de vista, haviam causado a derrota alemã em 1918. Então eles produziram leis destinadas a forçar os judeus - menos de 1% do total da população - a sair da Alemanha. Mas eles não queriam uma revolução social e, a despeito de toda a retórica de igualdade, eles deixaram a hierarquia social praticamente intacta. Além disso, eles não eliminaram o capitalismo, só o redirecionaram para seus propósitos, sobretudo a preparação para a guerra.
O senhor diz no livro que o sucesso da ambição nazista para criar um novo ser humano, permeado pelos valores nazistas, limitou-se à literatura e a outras formas de cultura alemã. É possível dizer então que, ao contrário das aparências, a mudança de mentalidade alemã não foi tão completa quanto se pensa?
Os nazistas certamente suprimiram a literatura e a cultura que eles consideravam "não germânica", e fizeram algumas tentativas de criar novas formas de cultura eles próprios. A música de judeus e compositores modernistas foi banida, e criaram uma exposição de "arte degenerada" - ou, em outras palavras, de arte moderna - para que as pessoas pudessem ridicularizá-la. A literatura nazista, que glorificava a guerra acima de tudo, era popular. Mas as formas antigas de arte continuaram. Alguns escritores se retiraram numa espécie de "emigração interior", escrevendo sobre assuntos não políticos. Velhos alemães se mantiveram ligados a valores culturais com os quais cresceram. Os nazistas eram muito melhores em destruir do que em criar.
O senhor diz que Carmina Burana, de Carl Orff, resume a ideia de cultura nazista. Por quê?
Orff era um forte opositor da música modernista. Sua cantata
Carmina Burana, executada pela primeira vez em 1937, apresentava harmonia crua, ritmo brutal, tons primitivos, uma batida forte que obnubilava a mente e parecia levar a música de volta a uma simplicidade camponesa imaginária. Foi um enorme sucesso na Alemanha nazista. Não estou dizendo que era uma música ruim - longe disso. E ela foi criticada por alguns nazistas pelo uso de textos medievais. Mas, se houve nazismo em música, foi nessa.
Qual foi o peso dos protestantes no sucesso das políticas antissemitas dos nazistas?
A
Igreja Protestante na Alemanha foi durante muito tempo a Igreja do Estado. Em meados dos anos 30, ela foi dominada pelos "cristãos germânicos", que declararam que Jesus não era judeu e rejeitaram o Velho Testamento por ser trabalho dos judeus. Mas os fundamentalistas bíblicos opuseram-se a isso fortemente e criaram uma dissidência. Nenhum lado realmente venceu a batalha, mas
Hitler se desiludiu e desistiu da ideia de uma síntese entre nazismo e protestantismo. Mesmo a dissidência protestante, contudo, não era livre de sentimentos antissemitas. Católicos eram mais distantes do regime, mas havia elementos antissemitas entre eles também. O antissemitismo nazista era racial, e não religioso, mas foi capaz de florescer sobre uma longa tradição de antissemitismo religioso na Alemanha e obter aval para suas políticas.
Podemos ver o nazismo como uma religião?
Certamente o nazismo foi um movimento que usou símbolos religiosos e rituais em alguma escala, e
Hitler não era avesso ao uso de linguagem e imagens religiosas em seus discursos. A propaganda nazista o apresentava como uma espécie de messias que veio para redimir o povo alemão. Mas o nazismo não tinha nada a dizer a respeito da vida após a morte, como as religiões verdadeiras fazem. Não representava a redenção final, mas propagava a ideia de uma luta sem fim.
Hitler condenava as tentativas de nazistas como
Himmler de estabelecer uma religião alternativa ao cristianismo, baseada em rituais pseudogermânicos. O nazismo, ele disse, não era um culto, mas uma doutrina fria, científica e baseada na realidade.
Como o processo de inversão moral levado adiante pelos nazistas foi possível na Alemanha, cuja população era tão sofisticada?
Muitos alemães aceitaram apenas parcialmente a ideologia nazista, e alguns aceitaram mais que outros. Foi mais forte entre os jovens doutrinados pelas escolas e pela
Juventude Hitlerista. Os alemães mais velhos, cujos valores tinham sido formados antes de 1933, eram mais resistentes. O terror e a intimidação tiveram peso na repressão. Os alemães não se manifestavam contra a violência e a brutalidade do nazismo porque acabaram se acostumando com a violência política da
República de Weimar. A promessa nazista de regeneração conseguiu superar as reservas de muita gente. Os triunfos diplomáticos de
Hitler cimentaram sua popularidade. A vitória sobre a França em 1940 a elevou a seu ponto mais alto. O nacionalismo era forte na Alemanha e levou muita gente tanto a apoiar o nazismo como a ignorar seu extremo radicalismo.
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A escalada do totalitarismo - e do horror - Instituto Humanitas Unisinos - IHU