A discussão sobre direitos e deveres na internet, que se arrasta no Brasil há mais de uma década, voltou a ganhar atenção nas últimas semanas, com a onda de invasões de hackers a sites da administração pública. Cercado de polêmica desde o início - como seria de se esperar sobre um assunto desse tipo - o debate pode chegar às primeiras conclusões oficiais nas próximas semanas, embora seus interlocutores ainda pareçam longe de um consenso e sobrem dúvidas para o setor.
A reportagem é publicada pelo jornal
Valor, 22-08-2011.
Há duas linhas paralelas em discussão: o marco civil da internet e a lei de cibercrimes. O grau de intersecção entre elas é um dos pontos mais controversos dos debates.
O marco civil da internet visa determinar os direitos, as responsabilidades e as diretrizes do uso da internet no país. O projeto tem coordenação da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e vem sendo discutido há três anos.
Há duas semanas, o projeto seguiu para redação do texto final pela Casa Civil. O passo seguinte será seu envio à Câmara dos Deputados para votação, informaram as assessorias do Ministério da Justiça e da Casa Civil. Embora não exista uma data definida para o encaminhamento do projeto, fontes ligadas ao governo preveem que isso ocorrerá nos próximos dias.
O segundo foco de discussões é o
Projeto de Lei 84/99, que regula os delitos cometidos via internet e por isso é chamado de lei de cibercrimes. Um grupo de deputados federais tenta postergar a votação do projeto de lei penal, porque considera que é preciso primeiro existir uma regulamentação cível. Se a lei de cibercrimes for aprovada antes do marco civil, ela poderá estabelecer regras contraditórias à legislação civil.
A proposta do marco civil da internet foi tema de audiências públicas e consultas por internet nos últimos três anos e o texto final ainda é mantido em sigilo pelo Ministério da Justiça, que coordenou o projeto. Advogados que participaram das consultas públicas observam que o texto mais recente apresentado pelo governo apresentava controvérsias.
"Há pontos no anteprojeto que ainda não têm aprovação unânime", diz
Renato Leite Monteiro, advogado do escritório Opice Blum Advogados. A principal divergência reside no conflito entre o direito à privacidade do internauta e a responsabilidade das empresas sobre conteúdos publicados por usuários.
Na última versão apresentada pelo Ministério da Justiça, a proposta de marco civil da internet estabelece que os provedores de acesso podem optar pela guarda de dados dos usuários, como o endereço da máquina usada para acessar a web (IP) e data da conexão. Nesse caso, as informações devem ser arquivadas por seis meses, para consultada pela Polícia Federal, em caso de investigações sobre crimes no ciberespaço.
"Os defensores da liberdade de expressão consideram que essa guarda de dados permitiria aos provedores de acesso vigiar os acessos dos usuários", afirma
Victor Haikal, sócio do escritório Patrícia Pek Advogados.
As controvérsias também se estendem ao marco civil sobre a responsabilidade dos provedores de conteúdo na web. Uma corrente propõe que os sites não guardem informações de acesso dos usuários, enquanto outra sugere que essas empresas façam a guarda de dados durante seis meses.
Flávia Rebello Pereira, sócia da Trench, Rossi e Watanabe Advogados, aponta como alternativa a inclusão de um artigo que torne optativo para os sites armazenar registros de acesso, se o usuário autorizar.
No caso de o internauta postar conteúdos ilegais ou ofensivos, o projeto prevê que os provedores sejam responsabilizados se tal conteúdo não for retirado do site após determinação legal. "O provedor não pode ter autonomia para retirar o conteúdo, porque poderia ferir o direito de expressão", diz
Flávia.
Monteiro, da Opice Blum, também considera importante a decisão judicial para garantir os direitos de privacidade e de expressão dos internautas. Segundo ele, os provedores de conteúdo não têm obrigação de guarda de dados. "Apenas em investigações criminais, se pedido pela polícia, o site pode passar a armazenar essas informações", afirma.
Haikal, do escritório Patrícia Pek Advogados, considera que em alguns casos - como bullying, calúnia ou exposição de pessoas a condições humilhantes na internet - o site deveria ser obrigado a retirar as informações do ar antes da decisão da Justiça. "Muitas vezes, a vítima que teve seus direitos desrespeitados sofre durante meses até o julgamento", observa
Haikal.
Procurados pelo Valor, os maiores provedores de internet do país - UOL, Globo.com, Terra e iG - não quiseram se posicionar sobre o tema. A
Associação Brasileira de Internet (Abranet) considera essencial a existência de uma legislação para estabelecer direitos e deveres de empresas e internautas, para que fique claro como os provedores de internet devem proceder em casos de crimes na web. "A melhor maneira de proteger as empresas de internet e os internautas é através de lei, seja civil ou penal", afirma
Eduardo Parajo, diretor-presidente do conselho-consultivo superior da Abranet.
Chegar à Câmara dos Deputados nos próximos dias não é garantia de uma votação rápida. O PL entra em uma lista de pautas e pode ser rejeitado. Se aprovado, segue para o Senado, sujeito a modificações. Depois, o projeto retorna à Câmara para aprovação final e, então, segue para a Casa Civil para assinatura e publicação no Diário Oficial da União.
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Falta consenso para votar novas regras para internet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU