14 Mai 2011
Das Nossas Senhoras de ontem e de hoje até os estereótipos patriarcais: o novo livro de Michela Murgia cruza as Sagradas Escrituras e a vida, e lembra como uma certa teologia ignora as imagens femininas de Deus.
A reportagem é de Natalia Aspesi, publicada no jornal La Repubblica, 11-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Parece que ouvimos o sussurro das dezenas de computadores com os quais geniais senhoras estão escrevendo livros sobre os erros e os horrores do mundo com relação às mulheres, e a fonte de tais horrores-erros perpetrados obviamente pelos homens parece inesgotável: é um "boom" atual que já havia triunfado nos anos do feminismo militante e vencedor, e depois se havia gasto até a metade dos anos 1990, quando uma avalanche de outras intrépidas senhoras, adaptando-se ao entorpecimento geral, haviam começado a escrever sobre as maravilhas do mundo com relação às mulheres, como fazer compras, como não ficar solteiras, como se assemelhar às top models, o que faz com sucesso na cama.
Há alguns anos, felizmente, houve um ressurgimento de rumores femininos cultos, inteligentes, criativos, apaixonantes, impecáveis, sob a forma de livros de sucesso, que entusiasmam os homens mais machistas (sabem tanto que não muda nada) e são regularmente massacrados pelos talk-shows que permaneceram ancorados à necessidade de banalizar tanto a exposição dos corpos das mulheres quanto o seu apedrejamento, para terem certeza de alcançar altas audiências.
Nesse fervor de escritos femininos muito terrenos, que põe em causa os poderes contemporâneos, a política, a televisão, a publicidade, as acompanhantes e as ministras de salto alto, aparece finalmente a personagem mais inesperada, humana e celestial, antiga e eterna, célebre e desconhecida, mítica e universal, a ser imitada e inimitável: Nossa Senhora, Maria de Nazaré, para Michela Murgia (foto) simplesmente Mary: Ave Mary, como se intitula o seu novo livro (Ed. Einaudi Stile Libero), com o subtítulo E la chiesa inventò la donna [E a Igreja inventou a mulher].
Sabe-se que a escritora da Sardenha, 39 anos, que com o seu romance Accabadora venceu os prêmios Campiello, SuperMondello e Dessi, é uma pessoa de fé "orgânica, não marginal", como ela se define, reivindicando o direito de crítica de dentro da Igreja, que, com os dois últimos papas, João Paulo II e Bento XVI, está vivendo uma longa continuidade conservadora. E, ao contar o uso muitas vezes distorcido que se tem feito e se continua a fazer de Maria de Nazaré, a plácida e férrea senhora de Cabras recorda como ainda é difícil para as Marys de hoje, crentes ou não, dentro e fora da Igreja, fugir dos estereótipos incongruentemente patriarcais, ser verdadeiramente livres.
Detalhe de "Adoração dos Magos", de Jan Gossaert |
Durante séculos, a Nossa Senhora retratada pelos artistas era uma jovem mãe muito bonita, às vezes também carnal, até com os seios nus, ricamente vestida, com o seu bebê nos braços: por exemplo, vem à mente a renascentista Adoração dos Magos, de Jan Gossaert, atualmente na mostra dedicada ao artista flamengo do século XVI na National Gallery, de Londres, ou a maravilhosa Madonna dei Pellegrini de Caravaggio, uma fascinante mulher do povo, de veste decotada, que, cruzando as pernas e segurando seu bebê nos braços, se assoma curiosa a uma porta.
Depois, a partir da metade do século XIX, com os novos dogmas marianos e os videntes de Lourdes e de Fátima, Maria deixou de ser mãe, deixou em algum lugar o seu filhinho, se vestiu só de branco e azul, ocultando seu rosto dentro de um véu, se pôs em uma nuvem com as mãos postas em oração, voltou seus olhos ao céu e assumiu uma expressão aflita, a da Mater Dolorosa, que, em outras representações lutuosas, estaria ajoelhada aos pés do filho crucificado.
Finalmente, encontrou-se o verdadeiro destino das mulheres, uma ascensão virginal à solidão e ao sofrimento, para suportar o sofrimento dos outros, cuidá-lo e, no caso pessoal de Maria, assistir ao sacrifício do seu filho, em uma multiplicação de dramáticas Pietà que, como as de Michelangelo, não afetam a juventude da Mãe, que permaneceu com 16 anos, ao acolher em seu ventre o corpo mutilado de seu filho de 30 anos.
Detalhe da "Madonna dei Pellegrini" de Caravaggio |
Não existem imagens de Nossa Senhora velha (nem mesmo morta), exceto de passagem em alguns filmes não convencionais, e não queremos ser blasfemos atribuindo também a essa escolha santa o fato de que, mesmo hoje, ou melhor, sobretudo hoje, envelhecendo, as mulheres parecem desaparecer no nada perder sentido e poder.
Ainda é difícil entender por que, em um certo momento da história do mundo, as mulheres foram consideradas inimigas do gênero humano, e, para aterrorizar-nos, Murgia cita o irritadíssimo apologeta Tertuliano, que viveu entre os séculos II e III: "Toda mulher deveria caminhar como Eva no luto e na penitência... A condenação de Deus ao teu sexo permanece ainda hoje... Tu és a porta do demônio! Por causa do que tu fizeste, o filho de Deus teve que morrer".
Todo contratempo feminino ao longo dos séculos, portanto, começou com a desobediente Eva (e, de fato, as mulheres de hoje ainda houvem os homens de família lhe dizerem: Obedece!, seguindo-se um gesto rude por parte das senhoras) e com o seu pecado original, que fez com que Adão e Eva fossem caçados do Paraíso Terrestre e condenou o homem a trabalhar com suor e a mulher a dar à luz com dor.
A partir da metade do século XIX, quando a ciência começou a estudar a possibilidade de separar o parto da dor com a anestesia (e desde 1930 com a epidural), o debate teológico, totalmente masculino, se tornou ardente. Como a ciência ousava eliminar a punição divina obrigatória para as mulheres? Finalmente, em 1956, o Papa Pio XII definiu como "não ilícito" o parto indolor, embora a maternidade dolorosa ainda continuava sendo a maldição específica para as filhas de Eva.
A meu ver, parece que nenhum teólogo entrou em crise quando a disseminação das máquinas ajudou os homens a não se cansar e, por isso, a não suar. Michela Murgia tem uma vasta cultura teológica, e uma aventurosa experiência de vida: trabalhou em um call-center e como porteira à noite, professora de religião, vendedora de multipropriedades imobiliárias, animadora da Ação Católica, dirigente de uma central termelétrica, também foi durante anos o escândalo da sua cidade indo viver com o seu namorado (ignomínia!), depois casando com ele civilmente (que sempre é pecado!), e por fim, cristãmente convencida, na igreja.
Ave Mary cruza sabedoria e ironia, Sagradas Escrituras e vida, não dando trégua a todos os erros e as tolices que crentes chiques e ateus devotos escreveram e principalmente difundiram por meio da televisão. Desmistifica Madre Teresa de Calcutá, prêmio Nobel da Paz, beatificada, essencial exemplo de feminilidade sacrificial, que, para a Igreja Católica, "não representava só um exemplo de caridade, era sobretudo uma virgem vestal da sua doutrina moral sobre a vida, aquela que interferiu maiormente na liberdade das mulheres de dispor de si mesmas". Relê para nós o Mulieris Dignitatem, o documento de 1988 em que o Papa João Paulo II usa pela primeira vez a expressão "gênio feminino": e rejeitando a igualdade entre homem e mulher, escolhe a diferença, como uma parte importante do feminismo, mas reconfirmando a subordinação social e familiar da mulher, "não mais enunciada em nome de uma inferioridade de gênero, mas fundada em uma suposta superioridade de papel espiritual...".
Certamente incomodará o barulhento e intrusivo divismo dos nossos ateus devotos, a graça com que ela recorda como a Igreja ignorou deliberadamente, na Bíblia, as dezenas de imagens femininas de Deus, "privando as mulheres do direito de se reconhecerem imagem de Deus, em um Deus que fosse também a sua própria imagem". E o modo malicioso em que tira o pó de uma frase muito perigosa pronunciada em 1978 por aquele pobre João Paulo I, de papado brevíssimo: "Somos objeto, da parte de Deus, de um amor que não se apaga: ele é pai, mais ainda, é mãe". Pânico no Vaticano, terror de um terrível abismo teológico e simbólico, logo sepultado com a morte do Papa Luciani.
Mas Joseph Ratzinger, quando ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, nos lembra a implacável crente e devota Murgia, "se manifestou com muita clareza sobre a questão do Deus Mãe que ainda vagava pelos corredores vaticanos como uma batata quente: `Não somos autorizados a transformar o Pai Nosso em uma Mãe Nossa: o simbolismo usado por Jesus é irreversível, é fundado na mesma relação homem-Deus que ele veio nos revelar".
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Eva e Maria: assim a Igreja sacrificou a mulher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU