05 Abril 2011
O renomado teólogo e defensor dos pobres Joseph Comblin morreu no dia 27 de março em Salvador, no Brasil, de causas naturais. Ele tinha 88 anos. Comblin, expoente da teologia da libertação, foi seguidor e assessor do bispo brasileiro Dom Hélder Câmara, defensor dos direitos humanos e da opção da Igreja pelos pobres. Hélder Câmara ficou conhecido como o "bispo vermelho" durante a ditadura brasileira.
O depoimento é de Phillip Berryman, ex-agente de pastoral norte-americano, que viveu no Panamá, entre 1965 e 1973. De 1976 a 1980, atuou como representante da American Friends Service Committee na América Central. Em 1980, voltou da Guatemala para os EUA e agora vive na Filadélfia. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 02-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nascido em Bruxelas, na Bélgica, em 1923, Comblin foi ordenado sacerdote em 1947 e se mudou para o Brasil em 1958. Trabalhou mais tarde no Chile, lecionando ou dirigindo seminários em ambos os países.
O teólogo belga deixa um legado de uma vasta obra de vários gêneros, além de um modelo distinto de como viver a vocação sacerdotal teológica.
Eu o conheci durante um curso de curta duração sobre "Teologia do Desenvolvimento" em 1968 no Instituto Pastoral da América Latina, em Quito. Enquanto estava lá, ele foi informado de que a ditadura militar brasileira não permitiria que ele entrasse novamente no país.
Um artigo de fundo que ele havia escrito para Hélder Câmara em preparação para o vindouro encontro do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) em Medellín havia vazado para a imprensa, e ele estava sendo denunciado como subversivo estrangeiro por defender a "revolução".
Na verdade, o artigo não era um manifesto, mas sim uma discussão sóbria do que a "revolução" – então amplamente discutida em todo o continente – poderia acarretar para a Igreja. O assunto foi resolvido em poucas semanas por meio de discussões entre os bispos e os militares, e ele conseguiu retornar. Enquanto isso, muitas vezes eu o ouvi teclar em uma máquina de escrever manual em seu quarto.
Ver Comblin tão de perto – lento de fala, de modos suaves, até mesmo tímido, imerso nas escrituras, na história e na teologia – tornava ainda mais surpreendente o fato de ele ser considerado perigoso. O incidente, no entanto, capta alguns aspectos-chave do seu método de trabalho: em 1968, ele não estava lecionando em salas de aula, mas trabalhando com Hélder Câmara e outros no trabalho pastoral, e suas principais preocupações não eram as formulações doutrinárias, mas sim como a Igreja deveria agir no mundo.
Comblin nasceu em Bruxelas em 1923, entrou para o seminário depois da escola secundária e estudou teologia em Louvain nos anos 1940. Ele recebeu um doutorado (com uma dissertação sobre Cristo no livro do Apocalipse) e atuou em uma paróquia durante muitos anos. Entrando em atrito com as rotinas convencionais do catolicismo e da sociedade belgas, em 1958, ele se voluntariou para trabalhar no Brasil (uma "Igreja com futuro", disse ele mais tarde). Ele lecionou no estado de São Paulo até 1962 e depois no Seminário de Santiago do Chile, retornando ao Brasil em 1965 para trabalhar com Hélder Câmara.
"Teologia da Enxada"
Em 1969, no Instituto Teológico do Recife - Iter, Comblin liderou uma nova forma de preparação para o sacerdócio. Ao invés de viver em um seminário e fazer os cursos de costume, os jovens – eles mesmos de famílias rurais – viviam em uma comunidade, trabalhavam na agricultura pela manhã, estudavam à tarde e faziam atividades pastorais à noite.
Seu primeiro ano de estudos era construído em torno de uma série de "realidades cotidianas", exploradas em diálogo com o povo. O primeiro tópico era a "casa": eles observaram como as casas eram construídas, quem vivia ali, as atividades das pessoas e o que a casa significava para o povo. Em uma segunda fase, eles levavam em consideração vários significados da casa ou da habitação na Escritura. E, em uma terceira fase, confrontavam a escritura com as tradicionais ideias das pessoas, por exemplo, até que ponto Deus habita no edifício da igreja (enquanto espaço sagrado) e até que ponto Ele habita nos seres humanos, nas famílias ou comunidades.
Outros temas levados em consideração no ano inicial incluíam ainda a terra, o trabalho, as relações homem-mulher. Os outros três anos de curso abordavam Jesus Cristo, a Igreja e a moral, sempre a partir das percepções do próprio povo.
Subjacente a esse projeto, estava a convicção de que a questão da América Latina não era tanto o celibato clerical ou a falta de padres, mas sim o modelo de ministério. Os sacerdotes eram muitas vezes estrangeiros, e, mesmo quando eram nativos, os anos de educação no seminário e a cultura clerical alienavam-nos das pessoas comuns. Essa "teologia da enxada" visava a desenvolver um novo modelo de sacerdotes que permaneciam perto de sua própria cultura popular.
Os candidatos eram treinados para mergulhar em sua cultura e para aplicar as escrituras a ela. Eles não estudavam os cursos de seminário usuais sobre teologia sistemática, que são em grande parte o resultado das controvérsias de séculos passados. Alguns padres eram ordenados a partir do programa, e um programa similar foi iniciado no Chile, mas toda a abordagem foi encerrada por pressão do Vaticano.
Nos anos 1980, a principal atividade de Comblin foi a formação de "missionários leigos" das comunidades rurais pobres de todo o Nordeste do Brasil. Várias centenas de pessoas participaram da celebração do seu octogésimo aniversário em 2003.
Em 1972, Comblin finalmente foi impedido de entrar novamente no Brasil. Nesse momento, ele se mudou para Talca, no Chile, então sob o governo socialista de Allende. Ele manteve um baixo perfil e não foi obrigado a fugir após o golpe de setembro de 1973. Em algum momento, ele começou a estudar a prática e a ideologia dos regimes militares então no poder no Brasil, no Chile, na Argentina e em outros lugares, e publicou artigos analisando esses regimes e levantando a questão sobre a resposta da Igreja.
Uma versão em inglês, The Church and the National Security State (1972), foi baseada em suas conferência na Harvard Divinity School. Sua argumentação não era apenas um protesto contra as práticas desses regimes (tortura e "desaparecimentos"), mas sim uma crítica teológica da ideologia que eles usavam como justificativa. Foram talvez esses escritos que levaram o regime de Pinochet a também negar-lhe sua reentrada no Chile em 1980. Foi-lhe então possível retornar ao Brasil, onde trabalhou por mais de três décadas.
Um "Jacques Ellul católico"
O primeiro livro de Comblin, sobre a ressurreição, apareceu em 1960, e ele publicou aproximadamente 65 livros e mais de três centenas de artigos, abrangendo vários gêneros, principalmente em português, espanhol e francês. Os mais distintivos podem ser uma série de grandes estudos sobre o que poderia ser chamada de "teologia das realidades terrenas", como foi chamado pelo seu professor de Louvain, Gustave Thils: teologias da paz, da cidade, da nação e do nacionalismo e da revolução.
Théologie de la Ville (1968), por exemplo, é uma obra extensa que combina a teologia bíblica, o estudo sobre história urbana e planejamento urbano, considerações sobre a relação da Igreja com a cidade e os desafios pastorais da cidade contemporânea.
Seus estudos das escrituras incluem comentários sobre várias epístolas do Novo Testamento e sobre o livro dos Atos, assim como muitos estudos temáticos. Ele escreveu inúmeras meditações bíblicas muito acessíveis sobre a fé, o Evangelho e a liberdade cristã.
Muitos de seus artigos e livros abordam temas pastorais diretamente: a religião popular, a educação, os modelos de ministério, a secularização. Algumas obras abordam questões teológicas, por exemplo, a teologia da missão ou da universalidade cristã. O que ele não escreveu foram tratados típicos da teologia sistemática: Trindade, Cristologia, eclesiologia, sacramentos.
Os escritos de Comblin iam muitas vezes contra a corrente. Em 1961, quando se acreditava que a América Latina tinha uma extrema falta de padres, ele escreveu que o Brasil tinha uma vocação a enviar missionários a outras terras. Em 1990, quando os teólogos estavam escrevendo brilhantemente sobre as comunidades de base, ele levantou uma série de questões sérias sobre o que estava acontecendo na prática pastoral, por exemplo, a dependência dos leigos nos padres ou irmãs, apesar de ele mesmo ter sido um dos seus primeiros defensores.
Refletindo a sua formação em Louvain, Comblin geralmente abordava amplamente a história da Igreja, examinando como a Igreja havia respondido aos desafios das diversas épocas. Um tema persistente é o da liberdade, da liberdade trazida por Jesus e por Paulo, assim como, no entanto, o seu frequente sufocamento, até mesmo dentro da Igreja.
Apesar de seus artigos aparecerem na Concilium e em outras revistas teológicas, Comblin não é particularmente conhecido no ambiente teológico. Ele tende a ser classificado entre os teólogos da libertação latino-americanos e certamente esteve envolvido em seu trabalho coletivo a partir dos encontros iniciais com Gustavo Gutiérrez e outros, começando por volta de 1964.
No entanto, suspeito que a razão principal pela qual ele não é mais amplamente conhecido e estudado é que muitos de seus escritos não se encaixam claramente nas categorias usuais do trabalho teológico.
Ele talvez possa ser comparado com Jacques Ellul, o teólogo, filósofo e crítico social francês, cujos escritos vão desde comentários da escritura a livros sobre a "sociedade tecnológica" e propaganda. Ellul tende a ter um radical "não", que provém da sua postura reformada e barthiana, enquanto Comblin pode ter um temperamento mais "católico".
O que eles têm em comum é que ambos se alicerçaram na Escritura e não se limitaram a estreitar as especializações disciplinares. Ambos escreveram impulsionados por questões particulares enquanto elas surgiam, com pouca preocupação com a sistematização. Nesse sentido, ele foi como Harvey Cox e Rosemary Ruether, que se envolveram teologicamente com a sua cultura e não estão preocupados com onde eles se encaixam no cânone teológico.
Por quase meio século, Comblin viveu em cidades do interior, viajando de ônibus (ele não dirigia), longe de bibliotecas de pesquisa e, por isso, era dependente de livros que ele reuniu ao longo dos anos.
Há algo de paradoxal sobre a vida de Comblin: ele escreveu dezenas de livros e centenas de artigos, enquanto trabalhava com pessoas pobres nas áreas rurais, que podiam ser alfabetizadas, mas não eram o seu público leitor. Uma chave para o paradoxo é que ele acreditava que um grande serviço que a teologia pode oferecer à missão da Igreja é ajudar a despir os acréscimos da história para revelar o evangelho em sua simplicidade, especialmente para os pobres.
Desânimo perante a Igreja, esperança no Evangelho
Nos últimos anos, a visão de Comblin acerca das possibilidades da Igreja Católica tornou-se crescentemente sombria. Ele viu que a geração de bispos com os quais havia trabalhado, homens com personalidades fortes, capazes de tomar iniciativas, era substituída por fidelíssimos do Vaticano quando aqueles se aposentavam ou morriam.
Em uma palestra na universidade jesuíta de San Salvador, em outubro passado, ele fez uma distinção entre o Evangelho e a religião.
"Jesus não fundou nenhuma religião. Não fundou ritos, não ensinou doutrinas", disse ele. A religião vem da necessidade humana e é uma criação humana. "Quando a religião entrou no cristianismo? Deve ter começado quando Jesus se transformou em objeto de culto".
Com Constantino, o clero tornou-se uma classe separada, e houve grande insistência na diferença entre o sagrado e o profano. A história cristã em si memsa é a história da contradição entre aqueles que se dedicam ao Evangelho e aqueles que se dedicam à religião. A religião busca o poder secular; o evangelho recusa o poder.
"Jesus não fundou nenhuma Igreja", disse ele, notando que o episcopado surgiu no século II e, finalmente, o papado assumiu um papel imperial.
Certamente, essas não são ideias originais, mas Comblin as estava declarando com uma simplicidade e um ímpeto radicais.
Ele aconselhou as pessoas da plateia a perceber que a história da Igreja está sujeita a períodos de entrincheiramento institucional, apontando para a década de 1950, quando ele era jovem, e Pio XII havia acabado de condenar várias escolas de teologia – o que depois se tornou a base para o Concílio Vaticano II.
Comblin foi enterrado perto do túmulo do Padre Ibiapina, um sacerdote do século XIX que fez um trabalho missionário no Nordeste do Brasil, difundindo a fé, mas também ajudando os camponeses a melhorar a sua agricultura. Tributos foram prestados por seus colegas teólogos, bispos, sacerdotes, religiosos e leigos no Brasil, no Chile e em outros lugares.
Eu acredito que ele deixou uma obra que merece ser mais amplamente conhecida e um exemplo de como viver uma vida teológica.
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Comblin. Um "Jacques Ellul católico" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU