04 Outubro 2012
Crise da racionalidade, crise da religião: desafios e perspectivas para o discurso cristão na atualidade. Com essa temática o filósofo francês Paul Valadier, SJ, proferiu a primeira conferência da manhã de terça-feira, 03-10-2012, dentro da programação do XIII Simpósio Internacional IHU – Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. Ele traçou um panorama sobre o momento crucial e periclitante no qual se encontram essas duas concepções.
Em seu ponto de vista, precisamos pensar a crise da religião como uma consequência e um segmento do aumento da força da razão. Houve potentes ataques às bases do cristianismo, como aqueles perpetrados por Spinoza e Nietzsche, para citar apenas dois dos pensadores envoltos nessa celeuma. A filosofia das luzes francesas também ajudou a denunciar o desaparecimento das religiões no horizonte da história, como reiteraria Marx séculos mais tarde, precedido por Nietzsche em seu diagnóstico do colapso do monoteísmo diante da vitória do niilismo.
Contudo, pondera o jesuíta, “essa crise não está completa e talvez não tenha um fim definido ou previsível”. As racionalidades em ação se renovam e diversificam, o que coloca em perigo o desenvolvimento da religião. Isso obrigada a religião a um “aggiornamento” permanente.
Razão fraca
Poderíamos partir de uma situação estranha e paradoxal. João Paulo II na encíclica Fides et ratio e Bento XVI em diversos documentos de grande alcance chamaram a razão a mobilizar-se mais do que o tinha feito a fim de enfrentar as grandes interrogações com as quais a humanidade atual se confronta. Ambos papas insistiram no trabalho da razão contra as renúncias que caracterizam excessivamente a filosofia atual. Instigaram os filósofos e pensadores afirmando que a fé não tinha nenhum benefício a esperar de uma razão fraca, hesitante e marcada pelo ceticismo. Uma fé não marcada por uma razão confiante em si mesma desemboca numa atitude incapaz de homenagear o criador pelo trabalho da existência, acentuou Valadier.
Esforços conjugados
Ao invés de uma rivalidade evidente e já ademais incentivada, para Bento XVI o mundo da razão e o da fé precisam um do outro, e não devem ter medo de entrar em um diálogo profundo e contínuo para o bem da nossa civilização. “Ao contrário de diversas interpretações, não estamos opondo dois blocos hostis entre fé e razão”, pontuou Valadier. Trata-se de uma maior mobilização dos territórios humanos. Estamos falando em fazer com que fé e ciência conjuguem seus esforços para encontrar um futuro comum, futuro da civilização que significa radicalidade do ser.
Tentações prometeicas
Que as grandes certezas racionalistas estejam moribundas é fácil de reconhecer. Por outro lado, longe das profecias inspiradas pelas luzes, a fé não desapareceu do horizonte da humanidade. O reino da razão não está livre da violência e do obscurantismo. Os totalitarismos ainda provocam o extermínio de nações, bem como o colapso político e o sufocamento de liberdades. Esse obscurantismo decorado por uma dialética dita científica provocou muitas crises, que são fruto da razão que pensou poder mudar o homem e a história com um recorte prometeico. A vontade de crença habitava esse racionalismo. Não só a razão não crê mais em si mesma, mas se exaure no ceticismo e na desconstrução sistemática.
Tal razão é habitada pelo niilismo, se destrói dentro da descoberta que sobre os valores mais elevados se escondem o nada e a morte. Aquilo que se apresentou sob o nome de verdade e justiça era o reino da morte, constatação que Nietzsche faz na segunda metade do século XIX. Esperava-se a reconciliação do homem com a vida, mas veio a barbárie e a desorientação da razão, cuja beleza e dureza da escrita nietzschiana demonstram. “Tal diagnóstico pode ser verificado naquilo que eu chamaria de desmembramento da razão. As racionalidades científicas continuam em corrida incontrolável, sem finalidade prescrita originalmente, que seja o desabrochar da humanidade”.
Valadier afirmou temer o reino do animismo ainda mais do que o do ateísmo, pois este se insinua nos espíritos ao invés de se distinguir pela nobreza – “e distinguir-se é bem mais caro do que confundir-se”.
Miopia pós-metafísica
As razões da recusa da metafísica são amplas, mas podemos analisar como muitos filósofos situam suas ideias como pós-metafísica. Tomam-se como evidentes as críticas de Heidegger. Entretanto, o pós-metafísico não coincide pura e simplesmente com uma recusa do dualismo platônico. A pós-metafísica, observa Valadier, esquece as questões da aventura coletiva dos homens, as grandes perguntas como “o que eu devo saber” e “o que devo fazer”, o que nós devemos fazer com a genética, com sofrimento e a morte. Esse pensamento pós-metafísico se recusa a fazer tais indagações, para se contentar com a fenomenologia, com a análise da linguagem na linha de Wittgenstein, impondo um interdito nas questões que não podem ser ditas.
Mesmo se um pensamento filosófico considera tais perguntas como inconvenientes, elas não escapam ao restante dos mortais. Se Nietzsche sempre invocou essas palavras pelos pós-metafísicos, nunca deixou de levantar essas questões essenciais. O filósofo alemão propunha uma gaia ciência, uma ciência alegre. “Como o homem vai assumir sua vida, se o filósofo hoje se afasta dessas questões, isolado num relativismo desconstrutor?”, questiona Valadier.
Fraqueza do religioso
Se a razão e a racionalidade são marcadas pelo niilismo, o mundo da fé ou das religiões não está em sua melhor forma, constata o jesuíta francês. Sabemos que todas as religiões estão carcomidas pelos integrismos, que assumem formas diversas. Para simplificar, o conferencista acentuou que tais fundamentalismos podem ser classificados como crispações dentro da certeza, como fechamentos em identidades que acreditamos estarem comprometidas, abaladas. “Quando a razão é impotente ou se cala, aparecem seitas que propõe respostas ilusórias e curas que acreditam encontrar quando, aparentemente, não há outros recursos”. Para Valadier, “as pessoas se alienam quando o aparelho eclesiástico se afasta”.
Em sua opinião, a igreja católica sofre uma crise de fé dramática. Os fundamentalismos provocam deserção de fiéis, mas os integrismos não devem ser atribuídos somente à razão que ataca a fé. “Essa crise da fé não vem do prometeísmo da razão, mas da sua fraqueza, e crispa a palavra do magistério num autismo estéril”, denunciou.
A sereia do niilismo
A razão deve analisar as consequências da era pós-metfaísica. O que se impõe é uma crítica, mas tal não significa que toda realidade metafisica está fora de uso. Além disso, a questão do sentido último tem resposta, ponderou Valadier invocando a obra A religião reflexiva, de Luc Ferry. Segundo esse autor, não cabe à filosofia responder pelo sentido da existência, mas da experiência. A crítica da metafísica levanta uma recusa da vida boa, ou do sentido da existência. “Contento-me em dizer que se trata de negação em relação a um substancial em detrimento de um formal”.
Finalizando sua conferência, Valadier recorda a obra A náusea, de Jean Paul Sartre, e pondera que devemos pensar e agir para além de uma postura niililsta e fatalista, tal como aquela adotada pelo personagem central Antoine Roquentin. “Precisamos acreditar na beleza e recuperar ideias de Nietzsche como o grande sim à vida, a afirmação dionisíaca da existência. Esse filósofo foi um dos poucos que insistiu em demonstrar esse lado da existência como uma celebração”, frisou. E a fé cristã pode contribuir para lidarmos com o niilismo. A vontade que falta, que está paralisada, é fraca, reativa e sem audácia, como aquela do último homem que busca somente sua pequena felicidade e que não é capaz de ir além e distinguir-se, precisa ser superada. “Não se trata de um fideísmo medroso, mas numa certeza fundada de que é melhor caminhar do que ficar deitado. Devemos avançar e influir”.
Valadier ressaltou que os limites da fé e razão são verdadeiramente uma complementaridade. Os momentos de crise, por mais perturbadores que sejam, são criadores e estimulam o vir a ser, nos obrigam “a não dormir deitados em certezas”. Podemos, muitas vezes, nos deixar esmagar por tais tempos e suas agruras, aumentando o pessimismo e fortalecendo o reino do niilismo, mas devemos também adquirir os meios para olhar positivamente para o futuro a construir. A crise só é esmagadora para espíritos falhos e acabados, insistiu Valadier. “Não devemos dar muitos ouvidos à sereia do niilismo. O cristianismo, na verdade, anuncia que através da morte é que chegamos à Ressurreição”.
A percepção de alguns participantes
Confira a opinião de algumas pessoas que acompanharam a conferência de Paul Valadier:
“Gostei da palestra dele, pois não estabeleceu limites entre fé e razão. Ele é muito seguro, um verdadeiro sábio”. Maria de Lurdes Zanon, mestranda em Teologia pela PUCRS
“Valadier trabalhou o elemento da discussão entre fé e razão, abordando a necessidade desse diálogo, que é áspero e difícil, principalmente em meio à configuração atual de pensamento, marcada por fundamentalismos de ambas as partes. Foi interessante que ele destacou o reconhecimento mútuo da liberdade das esferas razão e fé que devem ser livres para sua eficácia complementar na pessoa humana”. Leonardo Dall Osto, graduando em Teologia na PUCRS
“Paul Valadier nos convida a pensar de maneira mais abrangente. Embora tenha uma identidade específica, ele não faz dessa identidade um elemento de fechamento, o que possibilita que se abra ao pluralismo, passando a percepção de que cristianismo tem condições de dialogar com diversas culturas”. Celso Pinto Carias, professor de Teologia na PUC-Rio
Quem é Paul Valadier
Professor emérito de filosofia moral e política nas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres), Valadier é licenciado em Filosofia pela Sorbonne, mestre e doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Lyon. Foi redator da revista Études e é autor de uma vasta bibliografia. Escreveu, entre outros, Nietzsche et la critique du christianisme (Paris: Cerf, 1974); Essais sur la modernité, Nietzsche, l’athée de rigueur (Paris: DDB, 1989); La part des choses. Compromis et intransigeance (Paris: Lethielleux – Groupe DDB, 2010) e Elogio da consciência (São Leopoldo: Unisinos, 2001).
Nesta quinta-feira, às 14h30min, o filósofo falará sobre O Mistério da Igreja, hoje. Uma leitura a partir de Inácio de Loyola. Confira a programação completa em http://bit.ly/rx2xsL.
Texto: Márcia Junges
Foto: Graziela Wolfart
Leia mais...
Paul Valadier já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.
* Investidas contra o Deus moral obsessivo. Publicada na edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-2004
* O futuro da autonomia, política e niilismo. Publicada na edição 220 da Revista IHU On-Line, de 21-05-2007
* “A esquerda francesa está perdida”. Publicada nas Notícias do Dia do site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 27-05-2007
* Narrar Deus no horizonte do niilismo: a reviviscência do divino. Publicada na edição 303 da Revista IHU On-Line, de 10-08-2009
* O desejo e a espontaneidade capciosa. Publicada na edição 303 da Revista IHU On-Line, de 10-08-2009
* A intransigência e os limites do compromisso. Publicada na edição 354 da Revista IHU On-Line, de 20-10-2010
* A filosofia precisa de mais audácia. Publicada na edição 379 da Revista IHU On-Line, de 07-11-2011
* “A Igreja Católica só terá credibilidade se admitir em seu seio o pluralismo”. Publicada na edição 403 da Revista IHU On-Line, de 24-09-2012
Baú da IHU On-Line
Paul Valadier tem duas publicações pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Confira.
* Investidas contra o Deus moral obsessivo. Publicada na edição 15 dos Cadernos IHU em Formação
* A moral após o individualismo: a anarquia dos valores. Publicada na edição 31 dos Cadernos Teologia Pública
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A sereia do niilismo. Paul Valadier debate a crise da racionalidade e da religião - Instituto Humanitas Unisinos - IHU