Por: Jonas | 09 Agosto 2012
Os desafios e interrogações que o presente e o futuro apresentam à pastoral da Igreja, na Argentina, são esmiuçados nesta entrevista pelo padre Lucio Gera. Um padre de várias gerações de teólogos argentinos e testemunha de importantes momentos da vida da Igreja, tanto em nível internacional, como latino-americano e argentino.
A entrevista é de Oscar Campana, publicada na revista Vida Pastoral (Argentina). A tradução é do Cepat.
Eis a Entrevista.
Nesta situação de crise que a sociedade argentina vive, talvez por sua presença e seu peso social, muitos voltam os olhos para a Igreja. Neste contexto, quais são os principais desafios que se apresentam à pastoral da Igreja, na Argentina?
Hoje em dia, os desafios estão muito ligados a uma crise de espiritualidade, a uma busca de espiritualidade e de formas de espiritualidade. Acredito que o cristianismo argentino também padece disso. Se a convocação é para uma nova evangelização, o primeiro chamado é para uma autoevangelização, ou seja, robustecer o próprio ser cristão na Igreja, em todos os seus membros. Ter um cristianismo sério, decidido, o que significa um crescimento em interioridade, não no sentido “espiritualista”, que é algo apenas interior, mas de que as raízes são interiores. Crescer no cristianismo é crescer no amor, e saber que a vida acontece aí e que a história do país se dá aí, passando ou não pelo amor, e que isso vai estabelecer a justiça. Se não há amor, não haverá justiça. Se não existir uma base de amor social, dessa capacidade de vínculo e de solidariedade, não haverá justiça.
Acredito que isso que digo está coerente com aquilo que o Papa pede, que a evangelização comece por um chamado à santidade, recordando o capítulo sexto da Lumen Gentium que nos fala da vocação de todos os cristãos à santidade. “Santidade” é uma palavra um pouco rara, estranha. No fundo é o amor: a capacidade de ligação com Deus e entre nós. Se não há essa capacidade de vínculo básico, que se traduz na solidariedade e, portanto, na justiça, não apontamos para o centro das coisas, e corremos o risco de apontar para uma mera exterioridade: chamar os outros para uma nova evangelização passando ao alto.
Em função desse desafio, que potencialidades possui a Igreja na Argentina?
Em geral, acredito que a Argentina possui um bom clero. Não que não poderia ser melhor, mas é um bom clero, simples, cotidiano, que não busca o extraordinário, bastante pobre e dedicado em sua tarefa. Acredito que o episcopado, passado vinte ou trinta anos, tem melhorado e amadurecido; encontra mais acertadamente seus caminhos pastorais e, também, sobretudo, a maneira de lidar com o Estado, com os governos. Tem-se “destacado”, separado. Neste momento, talvez, o questionamento é se não precisaria dizer uma palavra mais forte a respeito da situação. É algo que eu me pergunto, porque não é fácil neste momento acertar uma palavra justa. Uma palavra muito intensa desmancharia, arriscaria quebrar um pouco mais. No entanto, uma palavra muito distante, que convida a fazer, mas que não se expõe um pouco mais, que não indique caminhos mais concretos, poderia ser muito geral, muito distante da situação.
Acredito que hoje seja difícil dizer uma palavra. Assim como o Papa é um pouco mais concreto quando fala, por exemplo, da situação do Oriente, eu tenderia a ser um pouco mais concreto. Isto não quer ser uma crítica, porque compreendo a dificuldade da situação e também compreendo que o episcopado atua sobre uma história da Igreja, na Argentina, que em décadas passadas intervinha de uma maneira muito mais direta, concreta, empírica sobre as situações do país, e isso nem sempre trouxe um equilíbrio.
Neste momento, o que gostaria que fosse mais forte na Argentina é o laicato. Não digo que não existam leigos excelentes. Contudo, é o momento em que o país necessita da voz do leigo, a proposta do leigo cristão, que ainda que não tenha “escudo”, tenha inteligência leiga. O leigo que, como disse o Concílio, está na realidade secular, que está no interior do mundo, onde nós padres não estamos. Eu gostaria escutar uma palavra do laicato argentino, uma postura um pouco mais decidida, mais forte. É o que mais desejaria neste momento. É toda a questão de um laicato que participa nos ministérios, em serviços dentro da Igreja (liturgia, catequese,...). Tudo isso me parece certo, é necessário ampliar e assumir isto com generosidade, entretanto, neste momento da história, penso que seria interessante que o leigo aparecesse do outro lado, do lado tipicamente secular: com a sua palavra e sua condução neste mundo, nesta sociedade argentina, nesta crise.
Não é que desconheçamos a crise em nosso país. Ao longo de minha vida, continuamente, presenciei a crise. Porém, esta possui alguns traços fortes que se conjugam. Em outras circunstâncias, foram outros tipos de crises, não sei se melhores ou piores. A crise de 1970 foi muito séria, em certo sentido, mais cruel, embora agora a crueldade seja com menos violência, se você quiser, mas com um avanço sobre a pobreza que é muito forte, com desequilíbrios na justiça que são muito notáveis. Como nunca, no país o tema da pobreza é o grande assunto, com tudo o que ele tem por trás. A crise de 1930 ocorreu num tempo muito diferente, onde o nível de pobreza era medido com outros parâmetros. Agora, que aumentou a qualidade de vida e os serviços, hoje, a situação de pobreza se torna muito chamativa, com carências muito fortes.
Igreja e diálogo social
Nos últimos tempos tem havido muitos chamados ao acordo e diálogo social. A Igreja, nesse marco, pode se posicionar de uma maneira neutra e distante, acima dos conflitos que levam o país à situação que impera nos últimos anos?
Acredito que num chamado a um acordo, a Igreja deve tratar a todo custo de conseguir que pactuem, não com ela fixando os pontos do acordo, mas que entre os outros haja concordância. Ela se assume como mediadora. Pode apresentar propostas, mas os que decidem são os que entram em acordo. Ela pode sugerir caminhos à fantasia política e econômica. O Papa não apenas convida para o diálogo, mas também dá certas sugestões, certos pontos que devem ficar estabelecidos. Não é fácil neste momento, porque se para todo o país é difícil encontrar propostas e caminhos de concordância, a Igreja também não pode inventá-los de um dia para o outro. Penso que isso pode estar em gestação, talvez ocorra. Talvez nas declarações possa parecer que esteja muito distante. Como a Igreja convoca para um acordo? O que deve oferecer? Apenas um lugar? Acredito que mais do que isso. Ela é um pouco a que dirige e que incentiva um diálogo, a que sintetiza e fixa pontos de encontro. E para isso é preciso se reunir. Por que a intervenção da Igreja, em 1981, foi mais eficaz com a comunidade nacional, apesar de não ter ocorrido atos convocatórios? Porque fixou certos pontos onde parecia que o país todo concordava.
Assim como a Igreja e comunidade nacional marcaram prioridades políticas, hoje as prioridades parecem imperar do lado social. E ao pensar num pacto recordo aquela frase do Documento de São Miguel, de 1969: “A Igreja deve discernir acerca de sua ação libertadora e salvífica a partir da perspectiva do Povo e de seus interesses”. Quero dizer: a Igreja, mesmo promovendo, incentivando, sintetizando e iluminando o diálogo com todos os setores sociais, pode ficar em posição neutra?
Não. Ela se posiciona a partir dos pobres, dos que sofrem a injustiça. Parece-me óbvio. E, portanto, no pacto coloca, evidentemente, um elemento de crítica.
A expectativa do laicato
A experiência do passado mostra que o laicato, que individualmente ou de forma institucional se comprometeu fortemente com o sociopolítico, em algum momento teve conflito com a Igreja. Fica alguma lição daqueles anos? Isto dentro da sua expectativa de um laicato comprometido no propriamente secular.
Para começar, dentro de uma reflexão, não se escuta a palavra do leigo. Nota-se pouco o leigo que pensa o país. Quem aparece em nosso jornalismo? A Europa do pós-guerra tem leigos que representam um pensamento político, com o qual se poderia concordar ou não, mas que teve muita importância, que foi criativo. Entre nós não vemos isso. Acredito que isto é comum em toda a América Latina.
Hoje muitos leigos estão trabalhando numa infinidade de organizações intermediárias, de organismos de direitos humanos. A consulta popular da Frente Nacional Contra a Pobreza parte de instituições que tem uma presença laical muito forte. Talvez o que esteja ocorrendo é que esse leigo, que chegou a um processo de inserção e compromisso, se encontra fortemente desvinculado da Igreja instituição.
Não importaria muito que se encontre mais ou menos institucionalmente vinculado. A questão é que representasse – junto com a sua característica de ser cristão –, sobretudo um pensamento político. O que você diz, vejo que existe, mas não percebo um pensamento político. Parece-me positivo o que estão fazendo. No entanto, às vezes, são ações que não se pode integrar numa certa reflexão orgânica sobre a marcha da história do país.
O Concílio Vaticano II e o episcopado argentino
Recentemente, escutei alguém dizendo que hoje se encontrava com um episcopado muito mais próximo do Concílio Vaticano II. Neste ano, completam-se 40 anos do início do Concílio. Em que medida o Vaticano II continua aparecendo como um programa e uma tarefa para nossa Igreja?
O Vaticano II não acabou seu próprio ciclo de realização. Ainda falta, por exemplo, este campo dos leigos. Um dos grandes temas do Vaticano II é o encontro da Igreja com o mundo. E nisto o leigo é fundamental. Se não encontramos o leigo no local onde mundo e Igreja se encontra, significa que o Vaticano II ainda não se realizou completamente, embora em outros assuntos, em grande parte, tenha se realizado. Porém, ainda está em execução e continuará por um tempo. Acredito que sim, sem dúvida, agora o nosso episcopado está muito mais próximo do Vaticano II do que podia estar há 15 ou 20 anos. Ele tem se renovado. É um episcopado muito mais simples, mais acessível, mais preocupado com o país, embora nem sempre encontre no dia a palavra justa, mas acredito que acompanha. Tem crescido no sentido de se desapegar dos governos, de cobrar certa independência. O contrapeso é como, nessa independência, permanecer presente. Isto é o que precisa ser buscado agora.
Nesse sentido, encontra-se diante de um novo caminho.
É um novo caminho que é preciso ir fazendo, e compreender que não é feito dentro de um ano ou dois. E que estas circunstâncias críticas irão fazendo entender como se faz. Neste momento, há uma série de elementos profundamente “técnicos” na economia, que não são fáceis de perceber e os que não entendem precisam ter cuidado de não colocar palavras que não correspondem. O episcopado não é um perito em economia, mas tem que responder a partir dos interesses de um povo: o que apresenta é o anseio dos povos. Como estruturar isto e dar cabimento é outro problema.
Teologia e pastoral
Por anos, eu ouvi você dizer do temor a certo anti-intelectualismo que às vezes se espalhava nos ambientes mais diretamente ligados com a pastoral, inclusive no clero. Certas ideias como a de que o pensamento, o estudo e a reflexão nos distanciam das pessoas. E que resulta no duplo drama de uma pastoral sem pensamento e de uma teologia pouco vinculada com a ação pastoral. Hoje, como você vê esta questão? Que vínculo seria desejável entre o pensamento teológico e a pastoral na Argentina?
Acredito que nisso se avançou muito. É uma das grandes características do caminhar da teologia e da pastoral, a partir do Vaticano II, em nosso país e na América Latina. Por alguma razão, na América Latina surgiram temas como a teologia a partir da práxis, do povo, etc. Buscou-se unir a reflexão teológica com a prática pastoral. E é importante para que a prática pastoral não seja puramente empírica, o que seria como dar receitas a um doente e não compreender a enfermidade. Acredito que nisso ganhamos, embora sempre seja possível avançar mais, como também não se pode intelectualizar a realidade.
Pensar a ação não é algo simples. Existe o risco de querer planificar a ação, que possui sua própria liberdade, porque depende de fatores que não são simplesmente os planejados. Ao juntar teologia e pastoral é necessário cuidar de não querer ser extremadamente minucioso em programar tudo, e deixar espaço para a improvisação, para a liberdade. Acredito que isso o argentino tem, às vezes até em excesso: prefere deixar as coisas para o improviso. É como no futebol: alguns não querem ter diretores técnicos, e outros acreditam que tudo está no técnico. É necessário planejar o jogo, mas também é preciso deixar a iniciativa de criar para o que joga no momento.
Minha preocupação é que o mundo contemporâneo requer maiores níveis de complexidade para ser compreendido em seus processos sociais, culturais, etc., e se por um lado não se pode pretender que a formação teológica dê conta de toda a realidade, do outro ela pode oferecer elementos mínimos de compreensão e de aproximação desses fenômenos tão complexos.
Assim como há uma globalização da economia, da informação e da cultura, há também uma globalização das disciplinas do pensamento. Agora é preciso pensar na própria disciplina, sem pensar no que é estritamente teológico, mas acessando um conjunto de disciplinas diferentes: a estética, a economia, a moral. São campos muito vastos que exigem um particular esforço.
Gostaria de acrescentar algo mais?
Sim. Parece-me importante tudo o que alguém pode fazer em nível de vínculos. Por exemplo, em nível de família, um dos pontos críticos são as dificuldades nos vínculos familiares. Hoje em dia, a família apresenta um forte questionamento e, em nosso país, ainda há sentido de família; em outros está mais desagregado. Porém, também os vínculos sociais. Em nosso país, o tecido social está dilacerado. Como recriar os vínculos sociais? De uma luta de classes, passamos de um domínio de um setor sobre o conjunto da população. Como criar vínculos aí? E, sobretudo, acredito que na Argentina a Igreja tem que se abrir e enfocar com decisão o tema das ligações interculturais: já temos islâmicos, orientais, a contribuição asiática provavelmente aumentará. Seria o momento de a teologia argentina entrar no diálogo com as religiões da Ásia. Isto já não pode ser muito postergado.
Vivemos uma civilização intercultural, que talvez seja o fenômeno fundamental da globalização, mais do que o econômico. É necessário fazer um esforço nesse sentido: como vincular culturas diferentes, porque toda a ameaça é de luta. É muito arriscado. Neste sentido, é um questionamento muito sério o caminho que seguirá a história universal. E como a América Latina se posicionará, diante desse panorama, é uma interrogação pela qual já é necessário começar a abrir os olhos.
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“A Igreja apresenta o anseio dos povos”, afirma Lúcio Gera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU