04 Junho 2012
A libertação do ser humano – o sentido do cristianismo – não pode não libertar também a família; até mesmo de si mesma, se for preciso. E, então, a família pode realmente se tornar um Teatro do Mundo e do universal humano.
A opinião é do escritor italiano Claudio Magris, ex-senador da Itália, ex-professor das universidade de Turim e de Trieste, e prêmio Príncipe de Astúrias de Letras de 2004. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 03-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As grandes religiões universais, e especialmente o cristianismo, não são coisa de family day. Cristo veio mudar a vida dos seres humanos e proclamar valores mais altos do que o imediato círculo dos afetos, ou, melhor, a chicotear duramente estes últimos quando regressivamente se opõem a um amor maior. Até mesmo o laço mais forte, o entre o filho e a mãe, é tratado bruscamente quando Maria quer interferir: "Mulher, que há entre mim e ti?", ele lhe diz.
Enquanto está falando para uma multidão, quando lhe vêm dizer que a sua mãe e os seus irmãos o estão procurando, Cristo responde: "Quem é minha mãe? E quem são os meus irmãos?", acrescentando que só é seu irmão quem faz a vontade do Pai.
Se há conflito entre a relação de parentesco e o mandamento, a escolha é clara: ele afirma que veio para separar, onde seja necessário, "o filho do pai, a filha da mãe". O seu próprio nascimento, além disso, escandaloso com relação às regras, certamente não se encaixa no modelo da ordem familiar.
Naturalmente, Cristo não pretende negar o amor entre e pelos esposos, os filhos, os irmãos, os pais. Ele quer potencializá-lo, libertá-lo da sua tão frequente degeneração egoísta, conservadora e redutora que empobrece aqueles laços universais humanos em um fechamento pávido e árido, barrando a porta para a vida e para os outros, entrincheirando-se em um pequeno mundo limpo e decente, mas indiferente à miséria e ao sofrimento, que talvez começam fora da porta barrada.
Há uma colorida expressão vêneta que retrata essa falsa e mesquinha harmonia familiar baseada na rejeição dos outros: "far casetta"."Eu tenho família" é a melhor desculpa para se esquivar perante um dever que nos chama a nos pôr em risco. A esse propósito, Noventa – grande poeta católico, um dos grandes poetas do século XX – respondia no seu dialeto vêneto a quem curva vilmente a cabeça ("son vigliaco" [sou velhaco]), alegando ter os pais idosos, a esposa ainda jovem e os filhos para manter: "Copé la mare, / Copé el pare, /La mugier zóvene / e i fioi — (…) No' saré più vigliachi" [matem o mar, matem o pai, a mulher jovem e os filhos (…) Não serão mais velhacos].
A família certamente é uma realidade histórica, embora de uma duração particular, e como tal está sujeita a transformações e a mutações, nunca tão intensa e confusamente como hoje, em um emaranhado de libertações ora justas, ora grosseiramente ideológicas e estúpidas, conformismos travestidos de transgressão ou de sagrados princípios, exibicionismos arrogantes, em um tumulto de tradições seculares, costumes, valores, formas de agregação familiar.
A família foi e dificilmente poderá deixar de ser uma célula primária do universal humano; o Teatro Mundial em que o indivíduo vem ao mundo, cujas vozes lhe chegaram desde quando ele ainda estava na primeira estação da sua viagem, no ventre da mãe; em que o indivíduo descobre o mundo, faz a experiência fundante do amor ou devastadora do desamor, aprende com os irmãos o jogo, a aventura, a luta, a ambivalência de afeto e rivalidade; em que o pai e a mãe lhe transmitem não só a vida, mas também o seu sentido. Não se equivocava Francesco Ferdinando, o herdeiro do trono de Habsburgo morto em Sarajevo, quando quis que, em seu túmulo, fossem inscritas apenas três datas: do nascimento, do casamento e da morte.
A família pode ser o encantador cenário da descoberta do mundo, como em Guerra e Paz, de Tolstoi, e pode ser tragédia e abjeção, ódio e violência, Caim e Abel, os Átridas e a estirpe de Édipo. Pode ser um lugar de opaca estranheza, de mesquinhos ressentimentos, de violência e de opressão; violência de pais ou de maridos chefes sobre filhos e sobre esposas, sórdida vingança feminina de sufocantes tiranias domésticas, incumbentes clãs parentais que transplantaram a tribo para a civitas e reabsorvem o indivíduo, como escrevia Kafka, na papa informe das origens.
A palavra família já é um Jano bifronte: indica o mundo que nos é mais caro e pode indicar o bestial laço mafioso. Gide podia dizer: "Famílias, quanto vos odeio". As novas formas de família radicalmente diferentes da tradicional, que se anunciam até se acenando com ênfase, podem trazer valores ou desvalores, mas certamente não estão protegidas das degenerações da convivência.
A libertação do ser humano – o sentido do cristianismo – não pode não libertar também a família; até mesmo de si mesma, se for preciso. E, então, a família pode realmente se tornar um Teatro do Mundo e do universal humano: quando, brincando com nossos próprios irmãos e amando-os, damos o primeiro e fundamental passo em direção a uma maior fraternidade, que sem a família não teríamos aprendido a sentir tão fortemente; quando os pais nos fazem entender concretamente o que significa sermos levados pela mão na selva do mundo, por uma mão que continua soerguendo mesmo quando não a aperta mais fisicamente.
Em uma família livre e aberta, o Eros também encontra a sua maior aventura, misteriosa e conturbadora; comer em paz o próprio pão com a mulher amada na juventude, como diz uma passagem bíblica muitas vezes citada por Saba, é uma experiência de grandes amantes. E os filhos, em um universo de relações libertadas do familismo (ansioso, autoritário, fraco, obsessivo, de acordo com os casos), tornam-se realmente a maior paixão que a vida nos faz conhecer.
A civilização grega nos deu Édipo e os Átridas, mas também Heitor, que, sem se preocupar com a própria morte, sobre os muros da Troia sitiada, brinca com o seu filho Astianax, e o seu maior desejo é que este cresça melhor e mais forte do que ele.
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Família, teatro do mundo. Artigo de Claudio Magris - Instituto Humanitas Unisinos - IHU