29 Mai 2012
De Pacelli a Ratzinger, todos os pontificados foram atravessados pelo fio dourado do confronto entre a Igreja e a modernidade. Por isso, merecem uma atenção especial para se entender qual é a essência da crise sistêmica que ocorre debaixo dos nossos olhos.
Publicamos aqui o editorial de Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica, publicada no jornal La Repubblica, 27-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A velha Itália afundou durante um dia repleto de tempestade e de presságios, no outono de 1958: o Papa Pio XII morria em meio a uma corte desfeita de cardeais decrépitos, de alcoviteiros de negócios, de freiras fanáticas, de parasitas. No palácio papal de Castel Gandolfo, enquanto o temporal enchia as águas do lago e o vento sul escancarava as persianas e se engolfava entre as tendas e nos corredores, dignitários leigos e eclesiásticos se preparavam para ir embora.
Cada um tentava levar embora, até mesmo fisicamente, o máximo que podia. Mas, acima de tudo, cada um brigava para conservar algum benefício, um cargo lucrativo, uma fatia, por menor que fosse, daquele poder que, até aquele momento, há mais de dez anos, havia sido administrado sem escrúpulos e sem concorrência.
O afã era visível em toda parte, nas salas de recepção, nas antessalas e até mesmo ao redor do leito do moribundo que, já em agonia, era impudicamente fotografado pelo seu médico assistente e pela sua irmã assistente, com o tubo de oxigênio na boca, e os traços do rosto devastados pelas sombras da morte. Não era o afã da piedade. Era o afã da ganância e do medo, porque todos sabiam, dentro do palácio, que não morria um papa, mas acabava um reino.
Na sala privada do papa, circundado pelos purpurados mais idosos e poderosos, pelos chefes do Santo Ofício, das Missões, do Tesouro, dos Seminários, o Camerlengo da Igreja representava o último elo de uma continuidade que estava prestes a se despedaçar definitivamente. Ele tinha, como sempre, um rosto absolutamente inexpressivo; não era um homem, mas sim um cargo, uma função, uma pausa do cerimonial. Mas, em torno desse cargo e do homem que estava dentro dele, ia se tecendo, precisamente nessas horas e naquele lugar, a trama do conclave.
Aloisi Masella, o Camerlengo, foi o primeiro e talvez decisivo mediador, juntamente com Agagianian, o prefeito do Propaganda Fide, entre o grupo dos cardeais estrangeiros e os curiais. Começou ali a busca que se concluiria algumas semanas depois sob as abóbadas da Capela Sistina, com um resultado que abalaria todos os programas, de um terceiro homem, um papa que teria que ser, ao mesmo tempo, bastante pastoral para absorver as inquietações da catolicidade, bastante diplomático para não esquecer as leis do poder, bastante humilde para restituir ao Colégio e aos Episcopados as prerrogativas que Pacelli havia confiscado. E bastante velho para não durar por muito tempo.
Naquela aurora de trovões e de ventos, quando o médico do papa, Galeazzi Lisi, declarou a sua morte clínica, dignitários, curiais, camareiros secretos, banqueiros, políticos, fugiram para Roma em grandes automóveis pretos para preparar o futuro incerto. Um bando de corvos abandonava as estruturas corroídas de um lugar do qual uma monarquia absoluta havia governado um país.
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O trecho que vocês leram foi retirado de um livro meu intitulado L'autunno della Repubblica, de 1969, no auge do movimento estudantil. O capítulo aqui citado intitula-se "O fim de um reino" e relata justamente a morte do Papa Pacelli, Pio XII, que personificou por longos anos a Igreja triunfante e combatente que continha, porém, desde então, aquela crise sistêmica da qual fala o católico Alberto Melloni, um dos historiadores da Igreja mais credenciados nessa matéria.
Os acontecimentos em andamento marcam o momento culminante dessa crise: a destituição de Gotti Tedeschi da liderança do IOR, a prisão do mordomo do papa, Paolo Gabriele, a surda luta em curso entre as diversas facções curiais e anticuriais, a posição cada vez mais vacilante do secretário de Estado, Tarcisio Bertone. Por fim, o desespero do Papa Ratzinger, fechado em seus aposentos e manifestamente incapaz de segurar firme o leme em um mundo invadido por ganâncias, ambições, complôs e visões conflitantes da Igreja futura.
Não vou me ocupar, todavia, das investigações em curso, que o nosso jornal já abordou amplamente nestes dias e também hoje, com todas as atualizações noticiosas. Interessa-me, ao invés – e espero que interesse aos nossos leitores –, dar uma olhada de conjunto sobre os pontificados que se sucederam de Pacelli a Ratzinger. Todos foram atravessados pelo fio dourado do confronto entre a Igreja e a modernidade. Por isso, esses pontificados merecem uma atenção especial para se entender qual é a essência dessa crise sistêmica que ocorre debaixo dos nossos olhos.
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O conclave que elegeu João XXIII ocorreu depois da monarquia absoluta, mas muito astuta, de Pio XII, um diplomata por excelência, que governou a Igreja em tempos duríssimos, com a guerra em curso e, depois, a guerra que encerrou com a reconstrução da democracia e o governo da Democracia Cristã de De Gasperi.
Pacelli teve todos os defeitos e todas as qualidades dos grandes pontífices. Dissemos que se destacou nas capacidades diplomáticas, e ele demonstrou isso amplamente, sobretudo no atormentadíssimo período da ocupação nazista de Roma. Mas não lhe faltava pastoralidade e nem grandes capacidades cênicas. Ainda está nos olhos de todos os seus contemporâneos a sua visita ao bairro de San Lorenzo, em Roma, destruído pelo bombardeio norte-americano, onde a sua veste branca ficou manchada de sangue, quando avançou por entre as ruínas para abençoar os mortos e socorrer os feridos ainda estendidos pelas ruas devastadas.
O Partido Conservador também estava, naquela época, barricado na Cúria. O papa teve o cuidado de não dispersá-lo. Ao contrário, o reforçou para que se submetesse. Era ele quem decidia quando era o de fazê-lo emergir ou de fazê-lo calar. Além disso, quem falava por ele era o padre jesuíta Lombardi, chamado de "o microfone de Deus", que combatia os social-comunistas com espada desembainhada. Uma outra espada estava nas mãos de Gedda e dos comitês cívicos que renegavam até mesmo a política de De Gasperi, que nunca foi recebido em audiência privada no Vaticano.
Mas Pacelli também era nepotista no sentido clássico e familista do termo. Era um príncipe e, como tal, se comportou e, como todos os príncipes, se entregou também ao populismo: recebia todos os tipos de categorias da sociedade civil: médicos, advogados, jornalistas católicos, ciclistas e jogadores de futebol, donas de casa, policiais e militares, atores e operários, empresários e barbeiros. O populismo de Berlusconi faz rir em comparação ao de Pio XII, que agora está em predicado de santidade.
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O Papa João foi o extremo oposto, embora com alguns condicionamentos. Ele foi eleito com uma condição: que restituísse à Cúria a sua independência funcional. Ele se manteve fiel a esse mandato, mas os curiais não contaram que o papa também era capaz de proceder novas nomeações quando a morte abrisse espaços vazios na hierarquia. Havia a necessidade de um papa sobretudo pastoral, e o tiveram no sentido mais pleno da palavra. João foi muito mais pastor do que Romano Pontífice. O físico o ajudava, e o discurso também, mas foi sobretudo a sua alma que o ajudou ou, se se quiser, o Espírito Santo. Ele amava as crianças, as mães, as famílias, os pobres, os excluídos.
Ele chamou Montini novamente para a Secretaria de Estado e convocou o Concílio Vaticano II, para onde afluíram os bispos de todo o mundo católico. Havia passado um século desde o Vaticano I, que se reuniu a pouca distância de tempo desde o fim do poder temporal dos papas. Ali, foi proclamado o Papa-Rei, infalível quando fala ex cathedra, e foi elevada a dogma a virgindade de Maria.
O Vaticano II, ao contrário, proclamou a necessidade de que a Igreja se confrontasse com a modernidade. Foi uma revolução, iniciada, mas obviamente completada. Foi a escolha de um tema que devia ser levado adiante, começando pela modernização da Igreja, pelo abalo da liturgia, a missa recitada nas línguas correntes e não mais em latim, com o sacerdote voltado para os fiéis e não mais de costas, a abertura do debate sobre o papel dos leigos e das mulheres. Por fim, o desinteresse do Vaticano com relação à política italiana e, portanto, a autonomia dos católicos comprometidos.
Mas em um ponto os curiais estavam certos: no seu quarto ano de pontificado, o papa adoeceu e, no quinto ano, morreu.
Ainda me lembro do funeral: uma multidão imensa que, da praça, chegava ao Tibre e além, todas as ruas apinhadas, desde a Piazza Cavour e a Villa Pamphili, todo o Borgo Pio. Não se via um papa como ele há muito tempo e não se viu desde então.
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Depois, veio Montini. Dizer que ele teve qualidades pastorais seria pouco. Diplomático, certamente. Nenhuma sombra de populismo. Foi um político, talvez até demais. Mas não conservador.
Ele não levou adiante o confronto com a modernidade, mas impediu que houvesse novos retrocessos. Foi um pontificado com fases dramáticas naqueles anos de chumbo que culminaram com o assassinato de Aldo Moro, do qual que ele oficiou a missa fúnebre em Latrão.
Foi um papa de interregno.
Talvez, o Papa Luciani tinha alguma semelhança distante com o Papa João, mas morreu depois de apenas um mês. Depois dele, subiu à cátedra um cavalo de raça, uma grande, grandíssimo ator. Não sei se a Igreja precisava de um ator, mas ele o foi da cabeça aos pés, no momento da eleição, no momento do atentado, no momento da revolução na Polônia, no momento da queda do Muro, nas suas viagens contínuas ao redor do globo, no Jubileu do ano 2000 e na longa fase da doença e depois da morte.
Quando o Camerlengo pronunciou o seu nome depois da fumaça branca da chaminé da Capela Sistina, toda a praça pensou que haviam eleito um papa africano. Só quando ele se assomou, entendeu-se que era um branco, mas não italiano. "Se eu me equivocar, corrijam-me": recebeu uma ovação de estádio e assim começou.
Até o Solidarnosc e depois da queda do Muro de Berlim, Wojtyla foi o papa da liberdade religiosa contra o totalitarismo comunista. No Ocidente, ele teve o apoio dos conservadores, dos liberais, dos democratas. Derrubado o comunismo, ele acentuou a sua crítica contra o capitalismo, mas, ao mesmo tempo, reprimiu a "nova teologia" e a experiência dos padres operários. A indiferença com relação ao assassinato do bispo Romero enquanto rezava a missa em El Salvador foi uma das páginas desagradáveis do seu pontificado, compensada, contudo, pela sua peregrinação ininterrupta a todos os cantos do mundo onde lhe foi possível chegar.
Ele tentou iniciar a reunificação das Igrejas cristãs, mas sem dar passos significativos. Ele reconheceu a culpa histórica da Igreja, começando pela acusação de deicídio contra os judeus e pela condenação de Galileu e de Giordano Bruno.
A agonia foi muito longa e cenicamente grandiosa. Certamente não por cálculo, mas por autêntica vocação. "Santo subito" foi a invocação da multidão imensa que, também para ele, ocupou meia cidade.
Um balanço? Os problemas da Igreja na sua morte eram os mesmos: poder da hierarquia, marginalização do povo de Deus, crise das vocações, crise da fé em todo o Ocidente, nenhuma modernização dentro da Igreja. Mas uma modificação, sim, havia sido verificada nesse meio tempo: a mensagem do Vaticano II não só não dera passos à frente, mas havia dado passos para trás. Não por acaso, no Conclave, os martinianos foram marginalizados desde a primeira votação, e, a partir da segunda, emergiu Ratzinger, enquanto Ruini estava pronto para intervir se Ratzinger fosse derrotado.
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Bento XVI não é um grande papa, embora o talento e a doutrina não lhe faltem. Não é um ator, ao invés, é o seu contrário. Wojtyla tinha um guarda-roupa grandioso, porque tudo era grandioso nnele. O guarda-roupa de Ratzinger, ao contrário, é lânguido, porque o próprio papa é lânguido, como se veste, como fala, como caminha. Escreve bem, isso sim. Os seus livros sobre Cristo são bons de ler, as suas encíclicas possuem aberturas, assim como alguns de seus discursos. A sua reavaliação de Lutero causou surpresa e alguma esperança de progresso em direção à modernidade, contrariadas, no entanto, pelas suas escolhas operativas, da confirmação de Sodano na Secretaria e, depois, à substituição por Bertone: do medíocre ao pior. Bertone: um Ruini sem a inteligência e a flexibilidade do ex-vigário e ex-presidente da CEI [Conferência dos Bispos da Itália]. A hierarquia se tornou novamente todo-poderosa, mas dividida em muitos pedaços. O ecumenismo já é uma flor murcha antes do tempo.
Bento XVI re-exumou plenamente a tomística de Tomás de Aquino com tantas saudações a Orígenes, Anselmo de Aosta e Bernardo. Agostinho parecia ser um dos inspiradores de Ratzinger, mas qual Agostinho? O maniqueísta, o coadjutor de Ambrósio ou o autor das Confissões? Agostinho foi muitas coisas ao mesmo tempo, chegando até Calvino, a Jansen e a Pascal. Se quisesse dizer algo verdadeiramente atual, o Papa Ratzinger deveria dar início à beatificação de Pascal, mas me dou conta de que, no mundo dos Bertone, da Cúria Romana e das atuais Congregações, isso sim seria um gesto radical rumo à modernidade. Nunca o farão.
O pontificado lânguido seguirá adiante enquanto puder, depois não haverá o dilúvio, mas sim uma chuva de pântano cheio de rãs, mosquitos e alguns patos selvagens. O que há de pior para todos.
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De Pacelli a Ratzinger: a grande crise da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU