25 Mai 2012
Para "submeter" a terra, ela deve ser degradada pelo ser humano a um objeto que pode ser investigado cientificamente e dominado tecnicamente. Ela deve ser roubada de sua subjetividade e perder a sua "alma do mundo", respeitada desde a antiguidade. A nova teologia ecológica parte do fato de que a terra é a nossa "casa".
Publicamos aqui a terceira parte da análise do teólogo alemão Jürgen Moltmann, em artigo publicado no sítio Teologi@Internet, 21-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Leia também a primeira e a segunda partes.
Eis o texto.
3. "Submeter a terra" – "que é a mãe de todos nós"?
A teologia moderna sempre viu na terra apenas aquilo que o ser humano, segundo o primeiro relato da criação, deve "submeter" a ele. No livro do Eclesiástico 40, 1, no entanto, a terra é chamada de "a mãe de todos nós". É possível submeter a própria mãe, pode-se explorá-la, destruí-la e vendê-la?
A nova teologia ecológica parte do fato de que a terra é a nossa "casa": "A humanidade faz parte de um universo continuamente em evolução. A nossa casa, a Terra, oferece o espaço vital para uma comunidade de seres vivos, única no seu gênero e multiforme... Proteger a capacidade devida, a variedade e a beleza da Terra é um dever sagrado" (Carta da Terra, 2000).
a) Para "submeter" a terra, ela deve ser degradada pelo ser humano a um objeto que pode ser investigado cientificamente e dominado tecnicamente. Ela deve ser roubada de sua subjetividade e perder a sua "alma do mundo", respeitada desde a antiguidade.
Isso aconteceu com a imagem mecanicista do mundo, que as ciências da natureza difundiram há 400 anos [15]. Robert Boyle, ao qual remonta a química moderna, ao invés de natureza, queria falar somente de "mecanismo". Isaac Newton delineou a imagem do mundo como uma máquina cósmica, que funciona como um relógio. Ela é tão perfeita que o seu tempo pode correr para trás e para frente.
O pressuposto metafísico da imagem mecanicista do mundo é o mundo criado de uma vez por todas, já pronto e perfeito. A ideia de Deus é o deísmo, segundo o qual Deus, como arquiteto, criou o mundo de modo tão perfeito que não precisa de outras intervenções divinas. Deus contradiria a sua própria perfeição se tivesse que corrigir a sua obra em um segundo momento com milagres. Não admira que o físico francês Laplace, à pergunta de Napoleão sobre Deus, respondeu: "Senhor, eu não tive nenhuma necessidade dessa hipótese". O mecanismo do mundo, se é perfeito, pode se explicar por si mesmo.
Mas, se o mundo não é perfeito e ainda não está acabado, então a imagem mecanicista do mundo não funciona, porque ela descreve apenas a realidade do mundo, mas não a sua potencialidade. Olhando para a biologia evolutiva, pode-se dizer: da potencial multiplicidade das formas de vida, apenas uma pequena parte se desenvolveu. As formas de vida possíveis são incalculáveis. Em uma natureza aberta ao futuro, até mesmo as leis naturais não são eternas, mas sim mutáveis habits of nature [16].
As novas astrociências demonstraram as interações entre os âmbitos inanimados e os animados do nosso planeta Terra. Daí deriva a ideia de que a biosfera da Terra forma, com a atmosfera, os oceanos e as planícies, um sistema complexo, único no seu gênero, que possui a capacidade de produzir vida e de criar espaços vitais. É a muito discutida teoria de Gaia, de James Lovelock [17]. Apesar do nome poético da deusa grega da Terra, não se pretende com isso fazer uma divinização da Terra. Mas a Terra é concebida como um organismo vivo que produz vida e cria espaços vitais.
Se entendemos a vida em sentido puramente biológico, então a terra não é "viva", porque não se reproduz. No entanto, deve se dizer que ela é mais do que viva, porque produz vida. Ela não é nem um "organismo", no sentido em que conhecemos os organismos biológicos. Ela é mais do que um organismo, porque produz organismos. A Terra é um sujeito de tipo particular, incomparável e único. Não é um conglomerado aleatório de matéria e energia, não é nem cega, nem muda. É inteligente, porque produz inteligência.
Em um ponto específico da sua evolução, a Terra começou a sentir, a pensar, a tomar consciência de si mesma e a merece respeito [18]. Nós, seres humanos, somos criaturas da Terra. Portanto, não estamos diante da Terra como seus sujeitos, mas, na nossa dignidade de seres humanos, somos parte da Terra e membros da comunidade terrena das criaturas. Nós mesmos somos "cocriaturas", juntamente com os outros seres vivos.
Esse sentimento cósmico de comunhão é mais amplo do que todos os âmbitos da natureza que podemos conhecer e dominar. Por isso, hoje é tempo de colocar no centro a santidade da Terra e de nos integrarmos conscientemente à comunidade da Terra.
b) A teoria de Gaia corresponde absolutamente às ricas tradições bíblicas que se referem à terra. A terra, segundo o primeiro relato da criação, não é uma súdita dos seres humanos, mas sim uma grande criatura, um grande fruto da criação, e nisso ela é única. Ela produz vida, ela "produz seres vivos segundo sua espécie: animais domésticos, répteis e feras" (Gn 1, 24). A evolução da vida e a história da terra estão entrecruzadas uma com a outra. A terra não só fornece espaço vital para uma multiplicidade de seres vivos, mas é também vital o seu útero vital que lhes dá à luz.
A terra encontra lugar na aliança de Deus. Por trás da aliança com Noé "com vocês e com seus descendentes, e com todos os animais que os acompanham (…) com todos os animais que vivem sobre a terra" (Gn 9, 9-11), está o pacto de Deus com a terra: "Colocarei o meu arco nas nuvens, e ele se tornará um sinal da minha aliança com a terra" (Gn 9, 13). Essa aliança introduz a terra em uma ligação direta com Deus. Esse vínculo é o mistério divino da terra.
Os direitos da terra, na sua aliança com Deus, são reconhecidos na legislação sabática: "O sétimo ano será um sábado, um descanso absoluto para a terra, um sábado em honra do Senhor" (Lv 25, 4). A terra tem o direito ao repouso sabático, para que ela possa regenerar a sua fecundidade. Quem despreza o sábado da terra transforma o país em um deserto e deverá deixar o país (Lv 26, 33).
O Espírito de Deus é a força criadora de vida: Spiritus vivificans. Ele é "derramado sobre toda a carne" (Jl 3, 1), isto é, de todos os seres vivos. Se em nós "será derramado um espírito que vem do alto", como se diz em Isaías 32, 15.16, "então o deserto se tornará um jardim (…) No deserto habitará o direito, e a justiça reinará no jardim. Praticar a justiça dará paz".
Não por último, a terra esconde em si o mistério da salvação: "Que a terra se abra e produza a salvação, e junto com ela brote a justiça" (Is 45, 8). O profeta Isaías chama até o Messias de Israel de " um fruto da terra" (Is 4, 2).
Segundo a doutrina cristã da reconciliação, Deus, mediante Jesus Cristo, "reconciliou o cosmos consigo" (2Co 5, 17). Deus "reconciliou" o universo pelo fato de que ele quis "conduzir a Cristo (...) todas as coisas, as dos céus e as da terra" (Ef 1, 10; Col 1, 20). O Cristo ressuscitado é o Cristo Cósmico, e o Cristo cósmico é o "mistério do mundo", ele está presente em todas as coisas. O Cristo cósmico é, enfim, o Cristo que vem, que vai redimir o mundo e vai encher céu e terra com a sua justiça. Segundo o evangelho apócrifo de Tomé, Cristo diz:
"Eu sou a luz, que está sobre todos.
Eu sou o todo, o todo saiu de mim
e o todo retorna para mim.
Cortai um pedaço de madeira: eu lá estou.
Levante uma pedra e me encontrareis" (Logion 77).
(Continua...)
Notas:
15. M.WHITE, Isaac Newton. The Last Socerer, Londres, 1998.
16. R. SHELDRAKE, Das Gedächtnis der Natur. Das Geheimnis der Enstehung der Formen in der Natur. München, 2001 9, 9-15.
17. J. LOVELOCK, Gaja – A New Look at Life on Earth. Oxford, 1979; Id., The ages of Gaja. A Biography of our Living Earth. Oxford, 1988 ; Id., The Revenge of Gaja. Why the Earth is Fighting Back – and how we can still save Humanity. Londres, 2008. Sobre a discussão, cfr. CELIA DEANE-DRUMMOND, God and Gaja. Myth or Reality?, in Theology 95 (1992) 277-285.
18. L. BOFF, La terra come gaia: una sfida etica e spirituale, in Concilium 3 (2009) 33-44.
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''Submeter a terra, que é a ''mãe de todos nós?'" Artigo de Jürgen Moltmann - Instituto Humanitas Unisinos - IHU